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Ganhe ou perca, Trump veio para ficar

Lourival Sant’Anna  Independentemente de sua vitória ou derrota — decisão que ficou ainda mais embaralhada após o FBI reabrir as investigações sobre os emails de Hillary, nesta sexta —, não há dúvida de que o Partido Republicano, a política americana e os próprios Estados Unidos não serão mais os mesmos depois do fenômeno Donald Trump. […]

TRUMP: Trump acusou a China de desvalorizar sua moeda para aumentar a competitividade com as empresas americanas / Carlo Allegri (Carlo Allegri/Reuters)

TRUMP: Trump acusou a China de desvalorizar sua moeda para aumentar a competitividade com as empresas americanas / Carlo Allegri (Carlo Allegri/Reuters)

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Da Redação

Publicado em 28 de outubro de 2016 às 18h33.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 17h52.

Lourival Sant’Anna 

Independentemente de sua vitória ou derrota — decisão que ficou ainda mais embaralhada após o FBI reabrir as investigações sobre os emails de Hillary, nesta sexta —, não há dúvida de que o Partido Republicano, a política americana e os próprios Estados Unidos não serão mais os mesmos depois do fenômeno Donald Trump. Mas, para avaliar o impacto do trumpismo, é preciso distinguir duas coisas.

De um lado, o que está sendo criado pelo candidato republicano. Do outro, em que medida ele é apenas o resultado do que já vinha acontecendo nos EUA e em outras partes do mundo: a polarização; a idealização do senso comum, mesmo quando tecnicamente errado; a aceitação social da ofensa, do desrespeito e do preconceito; a confusão entre mentira e verdade, versão e fato, diversão e informação; a ascensão do populismo turbinado pelas redes sociais. Noutras palavras, em que medida Trump está mudando os EUA, e em quais aspectos apenas revelando aquilo em que eles se transformaram, ou mesmo o que sempre foram.

As atitudes de Trump “reforçam nossa polarização e tornam mais difícil chegar a acordos”, disse a EXAME Hoje o cientista político George Terry Madonna, diretor do Franklin & Marshall College, em Lancaster (Pensilvânia). “Não se pode descartar a possiblidade de as campanhas ficarem mais sujas e imprevisíveis no futuro.” Pesquisador de opinião pública e especialista em comportamento eleitoral, Madonna observa que “muitos eleitores de Trump não acreditam que ele realmente pensa o que diz”, mas que está simplesmente “atacando o sistema que na visão deles serve às elites”. O sentimento dessas pessoas é o de que “a América que elas conhecem está saindo do controle, no que se refere ao emprego, à sociedade como um todo”.

Por outro lado, há uma visão positiva, segundo a qual o bilionário do ramo imobiliário está interpretando o clamor de uma parte dos americanos e pressionando por uma limpeza na política. “Trump não surgiu do nada”, defende Chris Buskirk, âncora de rádio e editor de um site conservador no Arizona chamado American Greatness (Grandeza Americana), que apoia o candidato republicano. “Ele amplificou coisas que já estavam acontecendo. Em dois anos, os políticos vão olhar para Trump e dizer: ‘Talvez eu possa ser mais transparente, mais autêntico’.”

Ecoando a análise de Madonna, de que os eleitores de Trump não levam necessariamente a sério tudo o que o bilionário diz, Buskirk reconhece que “todos gostariam de ter um nível mais alto de discurso político” e o que se valoriza não são os palavrões ou a “vulgaridade” do candidato. Sua principal contribuição, considera Buskirk, é mostrar que “uma pessoa comum” pode impulsionar mudanças, “fazer a diferença”. Embora um bilionário não seja tão comum, Buskirk assinala que Trump vem do distante bairro do Queens, de Nova York, e “fala como o americano médio”.

“Trump e seus seguidores são um golpe nas elites, tidas como as controladoras da cultura popular”, disse ao jornal The Washington Post David Nevins, diretor do canal de TV Showtime, que exibe séries que refletem os sentimentos da sociedade americana, como Homeland. “As pessoas que se sentem deixadas para trás agora têm um campeão, embora ele pertença na verdade ao esquema de poder da mídia de Nova York.” Seu canal está produzindo a série Billions, que mostra a luta de um promotor de justiça contra um inescrupuloso operador do mercado financeiro.

Segundo Nevins, o programa “não teria pegado” sem Trump. “Dois anos atrás, eu não o teria colocado no ar. Mas com o bilionário Trump concorrendo contra a classe dos bilionários, estamos reparando como nossa aspiração e nossa adoração pela riqueza e pelos negócios entram em conflito com nossa raiva de os grandes sempre se safarem.”

John McWhorter, especialista em opinião pública da Universidade de Colúmbia (Nova York), lembra que, antes de Trump lançar sua candidatura em meados do ano passado, já havia comentários racistas e sexistas em público, e rejeita a tese de que foi o candidato americano que introduziu a “licença” para se falar dessa forma. “Online, muitos americanos já tinham passado anos nadando em um oceano virtual de pornografia, palavrões e desvios sexuais — muito antes de a linguagem chula de Trump sobre as mulheres e as alegações sobre seus assédios se tornarem temas de campanha”, recorda o jornalista Marc Fisher, do Washington Post. “Mesmo se perder, Donald Trump não irá embora.”

Ecos do passado 

Nas duas últimas décadas, houve várias manifestações de frustração dos americanos com os sistemas político e econômico. Isso inclui candidatos a presidente. Bilionário como Trump, e financiando a própria campanha, Ross Perot se lançou à presidência duas vezes, como independente, em 1992, e pelo Partido da Reforma, em 1996. Ele rejeitava a democracia representativa, e propunha que o povo decidisse diretamente sobre os temas, por meio de votações eletrônicas. Outro exemplo foi Pat Buchanan, que disputou a presidência pelo Partido da Reforma em 2000, depois de ser derrotado nas primárias republicanas de 1992 e 1996. Dono de uma língua afiada, Buchanan questionou o Holocausto e se colocou contra o multiculturalismo, além de pautas conservadores mais convencionais, como a imigração, o aborto e o casamento de gays. Diferentemente de Trump, que nunca exerceu cargo público, ele foi assessor dos presidentes republicanos Richard Nixon, Gerald Ford e Ronald Reagan.

Ainda no campo conservador, o Tea Party, ala radical do Partido Republicano, que surgiu como reação à eleição de Barack Obama, é outra demonstração da impaciência com a política convencional. Do outro lado do espectro, está o movimento Occupy Wall Street, iniciado em setembro de 2011, contra a desigualdade e outros aspectos do capitalismo. A própria eleição de Obama foi, em grande medida, expressão da desilusão e do desejo de mudança.

“A recalcitrância republicana não começou com Trump”, adverte Steve Levine, veterano jornalista de política, em artigo na revista online Quartz. Ela já estava expressa nas constantes obstruções das maiorias republicanas na Câmara e no Senado, na imensa dificuldade de Obama de aprovar qualquer coisa no Congresso, e até de manter o governo funcionando. “Ela vai fundo, e líderes republicanos continuarão procurando mostrar ao pessoal em casa como eles enfrentam a vil nova presidente”, continua Levine, presumindo a eleição de Hillary Clinton. “Segundo algumas avaliações, os EUA nunca pareceram tão ingovernáveis desde o período que antecedeu a Guerra Civil (1861-65).”

O jornalista acha que isso continuará assim no próximo governo, considerando a vitória democrata. Uma das batalhas à frente é a nomeação de um juiz para a Suprema Corte. Uma das nove cadeiras está vaga desde a morte do juiz conservador Antonin Scalia, em fevereiro deste ano. Prevendo a dificuldade de obter a aprovação no Senado, Obama nomeou em março Merrick Garland, juiz do Tribunal de Apelação do Distrito de Colúmbia (onde fica a capital americana), considerado um moderado e centrista, e que já tinha tido o sinal verde dos líderes dos dois partidos. Mesmo assim, até hoje o Senado não marcou a audiência que precede a ratificação de um novo membro da Suprema Corte. Além da vaga de Scalia, é provável que surjam mais uma ou até duas no mandato do próximo presidente. Atualmente, há quatro conservadores e quatro liberais na Corte. De maneira que as próximas nomeações mudarão a balança para um lado ou para o outro sobre temas ultracontroversos, como aborto, controle de armas e imigração.

Quanto ao futuro do Partido Republicano (GOP), há duas visões opostas. A mais comum é a de que Trump representa um desastre, por dois motivos. Primeiro, porque atropela algumas de suas posições, como a defesa do livre comércio e a visão de que a Rússia é um inimigo dos EUA. Segundo, porque transforma em caricatura suas posições, em favor do corte de impostos e de gastos e contra a imigração, o aborto e o controle de armas, por exemplo, ao fazer defesas mal formuladas, exageradas e incoerentes.

E também por sua biografia controvertida de empresário que teria sonegado 916 milhões de dólares, feito transações obscuras no mercado imobiliário, desviado doações recebidas em seu programa de TV. E ainda pelas acusações de machismo, assédio às mulheres, ofensas a muçulmanos, imigrantes, deficientes físicos e assim por diante.

“Muitos especialistas têm levantado a possiblidade de que, depois do que parece ser uma grande derrota presidencial, mais significativas perdas de outros cargos eletivos, o GOP possa se fraturar em duas alas beligerantes, ou mesmo dois partidos separados”, analisa Richard Born, especialista em polarização política do Vassar College, em Poughkeepsi (Nova York). “Pessoalmente, sou cético em relação a ambos cenários. Previsões igualmente sombrias foram dirigidas ao Partido Republicano depois de sua derrota avassaladora em 1964, e ao Partido Democrata depois de seu desastre comparável em 1972.”

Born lembra que alguns analistas em 1964 chegaram a dizer que havia sobrado um sistema de “um partido e meio”. “Mesmo assim, ambos os partidos reagiram com grandes vitórias de meio de mandato (quando é eleita toda a Câmara e um terço do Senado) dois anos mais tarde, e a captura da Casa Branca quatro anos depois.” Este ano, o especialista prevê que o GOP “rapidamente reagirá repudiando Trump e minimizando sua candidatura como uma anomalia”. Talvez a culpa será colocada nos eleitores independentes, não filiados ao partido, nos Estados em que eles puderam participar das primárias, estima Born.

E a vida continuará. Não sem a polarização e a agressividade personificadas em Trump, mas espalhadas pelo país, com ou sem o bilionário fazendo das suas nos palanques. Até porque ele pode estar fazendo escola. “Não se pode descartar o surgimento de outro Trump”, pondera George Terry Madonna. “Ele tem um conjunto de atributos que tornou possível sua ascensão, como empresário rico e celebridade da TV. Mas todo movimento de renegados precisa de um líder. Um novo poderia aparecer certamente, mas só o tempo dirá.”

No futuro mais imediato, continuaremos ouvindo de Trump. Se sua derrota se confirmar, sua voz ecoará pelos quatro cantos, denunciando que uma enorme fraude roubou dele a eleição. Depois, tirará proveito da extraordinária exposição que teve, talvez lançando um canal de TV próprio, conforme foi noticiado. Trump veio para ficar. Assim como o trumpismo e tudo o que ele representa. Se Trump vencer, bem, a história americana pode vir a ser divida entre a.T. e d.T. (antes e depois de Trump).

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