Jovens mulheres na China: "impressiona o número de jovens mulheres que se juntou ao #MeToo (campanha global contra o assédio e violência sexual)", diz jornalista (Giulia Marchi/Bloomberg)
Da Redação
Publicado em 18 de janeiro de 2020 às 06h00.
Última atualização em 18 de janeiro de 2020 às 07h00.
São Paulo – Perseguição e prisão de ativistas, censura na web. É difícil entender o tratamento conferido pelo Partido Comunista da China às mulheres. Antes aliadas dos revolucionários da década de 1920, cujo movimento originou a China moderna, elas hoje são vistas como uma ameaça à estabilidade política do regime. E a desaceleração da economia, que caminha ao passo mais lento em três décadas, torna o momento ainda mais desafiador para a luta por igualdade de gênero.
A EXAME, a jornalista Leta Hong Fincher, autora do livro “Enfrentando o Dragão – O Despertar do Feminismo na China”, publicado em 2019 no Brasil, explica que a subordinação das mulheres é vista pela cúpula do Partido Comunista como essencial para a manutenção do poder e status quo. E isso faz com que os temas feministas sejam vistos como afronta a objetivos do regime, como “nacionalismo étnico, o planejamento populacional e medidas pró-natalistas”, diz.
Leta já escreveu para veículos como The New York Times e Washington Post. Além da obra lançada ano passado, a jornalista é autora de outro livro que também examina a temática das mulheres na China, o “Leftover Women: The Resurgence of Gender Inequality in China” (de 2014 e não publicado no Brasil). É fluente em mandarim e foi a primeira americana a receber o título de pós-doutorado em Sociologia na Universidade de Tsinghua (Pequim). Veja abaixo a entrevista concedida pela jornalista a EXAME.
Por que o feminismo é uma ameaça ao poder do Partido Comunista na China?
A subordinação das mulheres, o seu confinamento ao papel tradicional de esposa e mãe, é visto pelos líderes como crítico para a manutenção do autoritarismo. Só que o feminismo, que luta justamente para que elas tenham controle sobre seu corpo e sua reprodução, entra em confronto com essa ideia e também com as metas estatais que englobam o nacionalismo étnico, o planejamento populacional e medidas pró-natalistas.
Embora a maioria das mulheres não se identifique como “feminista”, impressiona o número de jovens mulheres que se juntou ao #MeToo (campanha global contra o assédio e violência sexual) na China. E isso em um país onde não há liberdade de imprensa, independência do judiciário e a censura na internet é pesada. Ainda assim, elas continuam trazendo à tona suas histórias, apesar de ser remota a chance de justiça.
São severamente retaliadas por chefes, colegas e ainda enfrentam ondas violentas de abuso online. Muitas ativistas sofreram ameaças de que seriam acusadas de “subversão” por agir como “ferramenta de forças estrangeiras hostis” que estariam tentando interferir em questões domésticas.
As mulheres já foram consideradas aliadas dos revolucionários comunistas e agora são vistas como inimigas, segundo o seu livro. O que deu errado?
Os revolucionários aproveitaram o feminismo e a igualdade de gênero para conquistar o apoio das mulheres e para recrutá-las para o movimento no início da década de 20. Mais tarde, com a fundação da República em 1949, a igualdade foi incluída na Constituição e o regime usou essa retórica para trazê-las para a força de trabalho.
Recentemente, a igualdade de gênero ressurgiu ao lado do crescimento econômico. Hoje, vemos algo bem diferente: são mulheres que não trabalham para o Partido Comunista que estão advogando independentemente por mais direitos e pela liberdade.
Oficialmente, o regime se manifesta a favor da igualdade e contra o assédio sexual. No entanto, é o único responsável por isso, excluindo as mulheres da sociedade dessa conversa. Tudo gira em torno da sobrevivência do Partido Comunista e seus líderes estão sempre debatendo a questão de como permanecer no poder e lidar com as ameaças. Por isso, são totalmente paranoicos com os movimentos sociais.
Há ligação entre a desaceleração da economia da China (a maior desde 1990) e o tratamento dado às mulheres hoje?
Sim. As autoridades em Pequim estão apavoradas com o efeito na economia que a queda na taxa de natalidade, o envelhecimento da população e a retração da força de trabalho podem trazer. Uma desaceleração ainda maior poderá ameaçar a legitimidade do Partido Comunista.
Por isso, o regime começou a permitir que casais tivessem dois filhos a partir de 2016, mas essa política está falhando e os nascimentos continuam caindo. No entanto, ao passo que está incentivando que mulheres da etnia Han (que é a maioria no país e vista pelo regime como “de qualidade”) se casem e tenham filhos, atua para evitar que mulheres de etnias que consideram de “má qualidade”, como Uigures e Cazaques, tenham filhos.
Se o governo realmente quisesse se concentrar em impulsionar o crescimento econômico, estaria agindo para melhorar a participação feminina no mercado de trabalho. No entanto, quer que as mulheres Han fiquem em casa. Mais do que crescimento econômico, o regime quer estabilidade política. E casamento e família estão na base dessa estabilidade.
Quão forte é o movimento feminista na China hoje?
Sofreu um grande golpe depois que as autoridades prenderam cinco ativistas em 2015. Desde então, houve um aumento dramático no nível de censura em tópicos feministas.
Centros de direitos das mulheres foram fechados e a plataforma mais famosa de discussão desses temas, “Vozes Feministas”, fundada pela ativista Lu Pin, foi banida em 2018 justamente na noite do dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher.
Apesar dos obstáculos, há um número cada vez maior de mulheres furiosas com a misoginia e as injustiças. Me impressiona o impulso que o movimento de direitos das mulheres continua a ter na China.
De que maneiras o feminismo está transformando a China?
O movimento já está influenciando o governo chinês, que sabe que precisa ouvir as mulheres jovens de áreas urbanas. Um exemplo foi o caso das universitárias que se mobilizaram China afora exigindo que as instituições de ensino encarassem as denúncias de assédio sexual com seriedade.
Em resposta, o governo anunciou que trabalharia em um novo código civil sobre o assunto e o ministro da Educação divulgou regulamentações sobre como as universidades devem lidar com esses casos.
O governo continua perseguindo ativistas individualmente, mas o movimento está sobrevivendo e está crescendo, o que é extraordinário. Sabemos que a China é o regime autoritário mais poderoso do planeta e pode ser brutal. Impossível prever como as coisas irão caminhar no futuro, mas posso dizer que esse movimento dificilmente será extinto.
Em muitos países, a palavra feminismo e o movimento como um todo enfrentam uma retórica de rejeição. Como é possível reverter esse quadro e mostrar ao mundo a importância da igualdade de gênero?
É um momento perigoso para o feminismo e para as democracias. A opressão das mulheres é uma peça central do autoritarismo em todo o mundo, mas pouca atenção é dada ao levante das mulheres contra governos autocráticos.
Escrevo sobre a resistência do feminismo não só no maior regime autoritário do mundo, a China, mas em vários países. O que estamos vendo é que as democracias estão sendo ameaçadas por autocratas misóginos, como Donald Trump (Estados Unidos), Jair Bolsonaro (Brasil) e Vladimir Putin (Rússia).
Acho que é importante apoiar os direitos das mulheres e o ativismo feminista. Quando as ativistas conseguem se organizar em torno das questões que as afetam, como violência sexual e direitos reprodutivos, até mesmo o todo poderoso Partido Comunista da China, que é dominado por homens, luta para tentar esmagar o movimento. Acho que essas mulheres são uma inspiração para todo o mundo.