Eleições americanas: um sistema melhor também ajudaria a solidificar a confiança nas instituições públicas (Kevin Lamarque/Reuters)
Isabela Rovaroto
Publicado em 9 de novembro de 2020 às 08h00.
No ano passado, os canadenses escolheram um novo Parlamento em uma votação organizada – de norte a sul – por uma única agência apartidária federal, conhecida como Elections Canada. Filas do lado de fora das cabines de votação nas cabines de comunidades étnicas minoritárias não duravam horas a mais do que a espera em outros lugares. Não havia enxurradas obscuras de dinheiro jorrando para cofres sem fundo de campanhas, nenhum alerta sobre fraudes em massa, nenhuma confusão sobre regras de votação diferentes, nenhum debate tóxico sobre exigências de título de eleitor. Em uma palavra, foi chato. Que é algo que poucas pessoas diriam sobre o voto para presidente no país vizinho, os EUA. E, quando se trata de mecanismos internos de eleições democráticas, é bom que não tenha graça.
Os americanos se orgulham de ter a democracia constitucional mais antiga do mundo. Porém, mesmo que as ameaças de Donald Trump de questionar a contagem ou o resultado não deem em nada, a eleição presidencial de 2020 expôs de modo cruel falhas estruturais que marcam o sistema eleitoral americano como estando entre os mais fracos de qualquer democracia desenvolvida. Se isso soa injustamente cruel, não deveria. Um volume surpreendente de dados é coletado no processo mais amplo de se realizar eleições, e, para os americanos, rende um material de leitura péssimo.
O índice mais detalhado, elaborado por uma organização sem fins lucrativos sediada em Harvard chamada Projeto Integridade Eleitoral (Electoral Integrity Project, no original em inglês), categoriza as eleições com base em 49 critérios – inclusive término dos pleitos e precisão da contagem de votos — a partir das impressões de uma mistura de especialistas locais e de outros países. O último índice, de 2019, posicionava os EUA em 57º no mundo. Entre as principais democracias ocidentais, o país ficou no fim da lista. À medida que democracias mais antigas e mais recentes avançavam, “A América não tem demonstrado vontade de aprender e não tem sentido necessidade de aprender”, diz Pippa Norris, palestrante sobre política comparativa em Harvard, que administra o projeto. “Os EUA sequer olham para o outro lado da fronteira, no Canadá ou México, para ver como outros países têm realizado eleições de modo muito mais eficiente.”
Sem dúvida, não existe sistema eleitoral perfeito, e os EUA dificilmente estão sozinhos na briga para administrar desafios à sua democracia neste momento. No entanto, melhorar o modo como presidentes e legisladores americanos são escolhidos importa por mais motivos do que simplesmente assegurar que a maioria dos eleitores tenha as lideranças que deseja. Um sistema eleitoral mais robusto tornaria os EUA menos vulnerável a manipulações por parte da Rússia e de outros adversários geopolíticos, à medida que eles se aproveitam de fraquezas para desestabilizar e distrair o que resta da única superpotência militar e econômica do mundo.
Um sistema melhor também ajudaria a solidificar a confiança nas instituições públicas, elemento crucial sem o qual governos tendem a fracassar, segundo Ivan Krastev, cientista político búlgaro cujo livro sobre a pandemia de covid-19, Is It Tomorrow Yet?(“Já é amanhã?”, em tradução livre do inglês), foi lançado em 29 de outubro. Muitas democracias ocidentais que tiveram as piores notas em seus processos eleitorais – incluindo EUA, Reino Unido, Itália e Espanha – também tiveram desempenhos ruins em termos de sua gestão do coronavírus, medida pelas mortes a cada 100 mil habitantes até o momento. “Se não houver confiança, não dá para conseguir nada, porque política tem a ver com ação coletiva”, diz Krastev, notando a resistência que muitos americanos têm demonstrado às orientações dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças sobre o uso de máscaras.
Sendo assim, o que seria um processo eleitoral bom e sem graça no caso dos EUA? Para começar, seria algo uniforme, tornando o acesso, experiência e poder de voto de um cidadão da Geórgia muito mais parecido ao de um morador de Maine quando eles depositarem seus votos no mesmo candidato a presidente. Isto é algo que outros países com sistemas federais, como é o caso da Alemanha, têm conseguido fazer, mas os EUA não. De fato, os sistemas eleitorais dos 50 Estados da América estão divergindo, algo que de novo está tendo consequências. A maioria dos Estados liberou o início da contagem dos votos enviados mais cedo antes do fechamento das urnas em 3 de novembro, mas um punhado de Estados disputados pelos dois lados não. Isso atrasou o resultado geral e abriu espaço para Trump pedir a suspensão das contagens tardias.
A Comissão Eleitoral Federal, órgão central e bipartidário formado em 1974 para conter abusos financeiros em campanhas, ficou congestionada à medida que o clima político mais amplo se polarizou cada vez mais. Novamente houve esforços de mudança gradual após o fiasco do caso das “cédulas não validadas” de 2000, quando George W. Bush perdeu o voto popular mas ganhou a Casa Branca, graças a meros 537 votos na Flórida, depois que a Suprema Corte americana interveio para vetar uma recontagem. Mais recentemente, a percepção de interferência do governo Trump nas regras democráticas tem alimentado um novo – embora bipartidário – desejo de por melhorias. No ano passado, a Câmara dos Deputados americana, controlada pelos democratas, votou a H.R. 1, projeto amplo de reforma eleitoral chamado de Lei para o Povo. A proposta passou na Casa mas foi barrada no Senado, controlado pelos republicanos.
Alguns Estados não esperaram. Vermont está entre os vários posicionados acima do Canada nos índices mais recentes do Projeto Integridade Eleitoral, marcando 82 pontos de 100 contra os 75 do Canadá. Outros Estados americanos têm caído no ranking, inclusive a Geórgia, que com apenas 49 pontos se saiu comparavelmente pior do que seu par pós-soviétivo de mesmo nome no Mar Negro.
Apesar de todas as barreiras constitucionais e políticas para mudar, alguns ajustes poderiam ser feitos. Um simples seria copiar outros países e declarar feriado nacional durante as eleições federais, para que quem trabalha não seja punido ou desencorajado por ter de esperar na fila. Outro ajuste mais difícil: os EUA poderiam tornar o voto obrigatório, como é na Austrália, onde o comparecimento em geral é superior a 90%. O comparecimento da eleição americana de 3 novembro foi de quase 67%, mas mesmo assim isso torna este ano um ponto fora da curva, com o maior percentual desde 1900 e cerca de 10 pontos percentuais acima do comparecimento de 2016.
Os EUA também poderiam se juntar às principais democracias ao implementar um cadastro eleitoral nacional automático. Ainda que seja difícil obter dados exatos, até 24% dos eleitores aptos a votar nos EUA – cerca de 50 milhões de pessoas – não tinham sido cadastrados em 2012. Desde então, 19 Estados mais o distrito de Colúmbia vêm adotando variações do cadastro automático, embora a maioria ainda não o tenha feito. É algo que a H.R. 1 busca consertar – juntamente com a garantia de direito a voto pleno para ex-criminosos fora da prisão e em todo o Estado para os moradores que tendem a votar em candidatos democratas de Colúmbia.
A Índia, assim como os EUA um Estado federal altamente descentralizado, cadastra todos os habitantes aptos a votar quando completam 18 anos. A Comissão Eleitoral Indiana então envia um título de eleitor grátis com uma foto que é comparada ao cadastro eleitoral. Adotar um sistema semelhante eliminaria de uma tacada só o debate tóxico sobre a colcha de retalhos da América, de promover exigências (em alguns casos discriminatórias) de identificação eleitoral. “Se a Índia pode fazer, com 800 milhões de pessoas indo às urnas em eleições tremendamente complexas, os EUA também conseguem”, diz Norris, do Projeto Integridade Eleitoral.
Outra prática a ser seguida seria indicar órgãos independentes para definir limites às eleições para a Câmara dos Deputados, algo que a Califórnia já vem fazendo. Isto acabaria com a grotesca manipulação de distritos eleitorais que os dois partidos políticos praticam em alguns Estados à medida que tentam desequilibrar a aritmética eleitoral a seu favor. A H.R. 1 inclui medidas para cuidar justamente disso. E também fortaleceria as leis de financiamento eleitoral para reforçar a transparência dos doadores dos chamados super PACs (na sigla em inglês, PACs são comitês de ação política; a diferença é que super PACs, ao contrário dos PACs normais, não têm limites de doações de campanha) e das vaquinhas de fontes nebulosas que permitem a executivos e empresas americanas ricas – e, potencialmente, interesses estrangeiros – fazer doações anônimas e efetivamente ilimitadas às campanhas de futuros presidentes.
Só transparência pode não ser o bastante para pôr fim à percepção corrosiva de que os maiores lances podem comprar os políticos americanos e sua atuação legislativa. Uma forma comum de abordar este problema é definir um teto de quando os candidatos podem gastar para se eleger. O Canadá define o teto em cerca de C$ 100 mil (US$ 76,1 mil) por candidato, com um adicional para os partidos e anúncios de TV. Na França, que tem um sistema presidencial não muito diferente do americano, os orçamentos da campanha de 2017 de Emmanuel Macron e sua adversária Marine Le Pen foram limitados a €16,85 milhões (US$19,73 milhões) para cada um no primeiro turno e €22,5 milhões para o segundo, duas semanas depois. Trump, em comparação, gastou US$ 647 milhões para vencer a Casa Branca em 2016, uma das campanhas presidenciais mais baratas da história americana; Hillary Clinton gastou US$ 1,2 bilhão. Ajustada pelo tamanho da população, isto deu ao dinheiro um papel quase quatro vezes maior na eleição dos EUA comparada à de Macron.
Devia haver menos disparidade entre o peso que um voto para o Senado tem em diferentes Estados, hoje em níveis nunca imaginados pelos fundadores, diz Laura Thornton, diretora de programas globais no Instituto Internacional pela Democracia e de Assistência Eleitoral (IDEA, na sigla em inglês), organização intergovernamental sediada em Estocolmo. Uma solução seria incluir senadores para os maiores Estados, como a Califórnia, em que o voto tem quase 89 vezes menos poder representativo que no Wyoming. A meta de observadores internacionais que analisam as eleições no mundo todo é manter tais discrepâncias a no máximo 10%, diz ela.
Por motivos semelhantes aos do critério uma-pessoa-um-voto, uma eleição presidencial americana que se preze não teria colégio eleitoral, instituição para a qual não há equivalente na grande maioria dos outros países com presidentes eleitos pelo voto popular. Esta é uma mudança que pode não acontecer de uma hora para outra, dada a extrema dificuldade de modificar a Constituição Americana de 233 anos. Quatorze Estados têm atuado para minimizar o potencial que o colégio eleitoral tem de distorcer resultados, concordando em apoiar qualquer candidato que vença o voto popular em todo o país. Em 3 de novembro, o Colorado votou para se juntar a eles. No entanto, a abordagem fatiada à reforma mais uma vez tem causado divergência sobre o que significa votar no mesmo candidato a presidente em partes diferentes do país.
“Parte do problema é que é antiga”, diz Thornton sobre a Constituição, acrescentando que, à época em que foi feita “não tínhamos mulheres juízes, havia escravos, e a Califórnia não existia”. O documento surgiu como uma série de compromissos adotados na luta para formar uma república federal em vez de ser um esboço para a democracia, diz ela. De fato, o grande debate entre os fundadores era quão longe ir em termos de conceder votos iguais aos americanos que sequer tinham propriedades. Demorou até 1920 para uma emenda constitucional dar às mulheres o direito ao voto. A Constituição governa hoje um país que seria tanto geográfica quanto demograficamente irreconhecível para Thomas Jefferson.
Mas talvez a mudança mais significativa, ainda que improvável, que os EUA poderiam implementar é a que o Canadá fez em 1920, a Austrália em 1984 e o Reino Unido em 2001. A saber, colocar uma comissão eleitoral independente responsável por realizar as eleições federais, do começo ao fim, em todo o país. Tal medida ajudaria muito a afastar a política partidária da definição dos limites, localização das zonas eleitorais, apresentação e contagem das cédulas eleitorais, regras sobre identificação de eleitores e resolução de disputas, de modo muito semelhante ao que a independência do banco central fez para tirar um pouco da política da definição das políticas monetárias. Ao remover totalmente a gestão eleitoral das mãos de políticos locais, tal medida também poderia evitar a necessidade de restabelecer as proteções antidiscriminatórias da Lei do Direito ao Voto de 1965, perdidas há sete anos, quando a Suprema Corte decidiu invalidar as principais disposições da lei por 5 votos a 4.
Os EUA ainda têm uma democracia efetiva e, pelo menos até agora, tem se saído bem em termos de contar votos de modo preciso e em honrar o resultado – dois grandes abismos que separam democracias em busca de conserto do tipo de teatro eleitoral cínico visto em países como Belarus. Lá, as eleições servem como ferramentas para legitimar a retenção de poder em vez de permitir à população que troque de líderes. Como disse recentemente o opositor russo envenenado Alexey Navalny, em um tuíte de 4 de novembro: “Acordei e olhei no Twitter para ver quem tinha ganhado. Nada estava claro ainda. Isso sim é que é eleição”.
No entanto, não se pode disfarçar que algo vá muito mal no sistema eleitoral americano, fragmentado e politizado, que parece estar carregando excesso de peso por cracas não raspadas do passado. Paradoxalmente, o status há tempos assegurado à América como líder do mundo livre pode ter contribuído para esta ossificação. Após sair do lado vencedor da Segunda Guerra Mundial e, depois, da Guerra Fria, parecia natural que os EUA dessem conselhos ao mundo sobre como construir instituições democráticas e melhorar as eleições à medida que as democracias cresciam de 26% dos países em 1997 para 62% em 2019, segundo o índice do Estado Global da Democracia do IDEA. As próprias instituições americanas conseguiram passar.
“Como alemão, é claro que eu cresci admirando a democracia americana, mas, após vir para cá, isso deu lugar a um choque real”, diz Michael Bröning, que em junho se mudou de Berlim para Nova York como diretor-executivo do Friedrich-Ebert-Stiftung, um think tank político alemão. Das finanças de campanha à aceitação do resultado, cada camada do processo eleitoral parece disfuncional, afirma ele. “É como ver alguém tentando ganhar uma corrida de Fórmula 1 com uma carroça puxada por cavalos que foi construída no século 19.”
Tradução por Fabrício Calado Moreira