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Os EUA são gente como a gente?

Os Estados Unidos estão cada vez mais parecidos com um país como outro qualquer - é assim o mundo do século 21

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DR

Da Redação

Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h11.

Diz um antigo provérbio de Wall Street que quem deve 1 milhão está nas mãos do banco, mas quem deve 1 bilhão tem o banco em suas mãos. Em tempos de turbulência global e hipertrofia das dívidas, não deixa de ser interessante olhar o mundo sob esse prisma - e é o que fazem os economistas americanos Stephen Cohen e Bradford DeLong em um pequeno livro recém-lançado, The End of Influence ("O fim da influência", numa tradução livre). Num momento em que os Estados Unidos estão atolados até o pescoço em dívidas, boa parte da qual pertencente ao governo chinês, quem está nas mãos de quem? Pode ser tentador afirmar que os americanos estão de joelhos frente aos chineses, mas a conclusão é mais complexa, como sugere o ditado. Hoje, China e Estados Unidos, dizem os autores, encontram-se abraçados numa dependência mútua. Os americanos, ávidos por consumir mais do que produzem, não podem viver sem o dinheiro chinês. E os chineses, sentados sobre uma montanha de títulos do Tesouro dos Estados Unidos, precisam dos americanos em boa forma. Trata-se de uma situação delicada para o gigante da Ásia, mas absolutamente constrangedora - humilhante? - para a maior potência econômica e militar da história humana.

Não é exatamente novidade constatar a interconexão crescente entre os dois países. Mais interessante é a forma como os dois economistas reconstituem a gênese do estado da economia atual. Trata-se de um relato que não vai agradar a todos, especialmente no meio acadêmico. Cohen e DeLong, professores da Universidade Berkeley, um dos departamentos de economia mais conceituados do mundo e pertencente ao chamado mainstream econômico, apontam o dedo para os neoliberais, que teriam dominado o pensamento nos últimos 25 anos. A crítica vai muito além das palavras de ordem que costumamos ouvir por aqui - nos Estados Unidos, ao contrário do Brasil, não dá para construir uma carreira na base da repetição de chavões de grêmio estudantil. O ponto, dizem, é que o mundo se deixou seduzir, não sem certa razão, pelo que chamam de sonho neoliberal. No charmoso prognóstico dos economistas dessa linha, os países deveriam reduzir o papel do governo a áreas clássicas da ação estatal, e assim alcançar dois objetivos centrais. Por um lado, promover a eficiência econômica, a integração e, por fim, o crescimento. Por outro, limitar a corrupção e o favorecimento de amigos do rei. Com isso, as fronteiras entre economia e política ficariam bem delimitadas e os países se desenvolveriam mais e melhor. Quem haveria de ser contra?

Infelizmente, a realidade mostrou-se bem menos rósea. Nações do Leste Europeu abraçaram a versão mais liberal do capitalismo, mas os resultados foram ambíguos. A economia modernizou- se, mas a desigualdade de renda aprofundou-se de forma dramática. Países como a Argentina transitaram de heróis do neoliberalismo ao paraíso do populismo. Os mercados financeiros, tidos como peças-chave na construção do novo mundo econômico, produziram uma dolorosa sequência de crises nos últimos 15 anos. O próprio Alan Greenspan, condutor do banco central americano durante todo o período de desregulamentação de mercados e liberalização, parece hoje um homem cercado de dúvidas. Já distante dos holofotes e do status de deus do mercado, um amargurado Greenspan afirma: "Eu encontrei uma falha (no meu pensamento). Eu não sei o quão importante ou permanente ela é. Mas fiquei muito perturbado. O paradigma moderno de gerenciamento de risco perdurou por décadas. Todo o edifício intelectual, porém, implodiu com a crise de 2007".


Onde as coisas deram errado? A resposta a essa questão é ancorada no profundo conhecimento de DeLong, um dos mais respeitados historiadores econômicos da atualidade. Segundo a versão contada no livro, os Estados Unidos desempenham hoje um papel de certa forma tradicional à nação líder - o de absorver o crescimento econômico do resto do mundo. Ser o número 1 tem lá o seu ônus. Faz parte aceitar o excesso de produção de outros países, ainda que ele seja também devido a uma taxa de câmbio artificialmente competitiva. Em troca, os americanos usufruem as delícias de uma vida baseada no consumo. Podem ainda exportar seus valores e seu jeito de ser - o soft power de que fala o cientista político americano Joseph Nye. Para que a liderança se mantenha, porém, é fundamental permanecer na ponta da produção mundial. É do jogo abrir mão de certas indústrias e importar mais dos países emergentes, ainda que isso gere tensões nas regiões mais afetadas pela concorrência externa. Aliás, é também o que fazem os outros países, cada um em seu estágio de desenvolvimento. A própria China, de longe quem mais se beneficia do consumo americano, já começa a produzir bens mais sofisticados, abrindo espaço para que a manufatura mais simples migre para os vizinhos.

Mas a estratégia só faz sentido se a nação líder consegue manter a economia voltada para os setores do futuro. Para os autores, foi aí que o trem saiu dos trilhos. Segundo eles, os americanos fizeram uma péssima escolha ao eleger o setor financeiro como sinônimo de modernidade. "Se as finanças eram o setor do futuro, agora parece não haver mais futuro para esse setor", dizem. Ou seja, a reestruturação econômica das últimas décadas acabou por mostrar-se uma aposta errada. Os americanos não perderam a capacidade de inovar. Também não é verdade que não haja vida inteligente fora do mundo financeiro - quem de nós não se encantou com os últimos brinquedinhos da Apple? Mas o ponto é que há uma profunda reforma econômica a ser feita, uma reforma que contrabalance o peso de Wall Street na economia americana.

As escolhas do passado têm consequências, e talvez a mais importante seja a transformação dos Estados Unidos num país "normal". Não é algo que acontecerá da noite para o dia. Os americanos continuarão a dominar a cena. Mas perderam a capacidade de ignorar os demais, em especial os chineses. Terão menos condições de agir unilateralmente mundo afora. Numa relação de dependência externa, a busca de alguns consensos torna-se inevitável. Além disso, a posição econômica tende a declinar com o tempo, especialmente com o recrudescimento das políticas industriais em diferentes países. Por fim, decresce também o fascínio pela cultura americana. Já há mesmo quem fale do nascimento do Consenso de Pequim (é este o título de outro livro que merece leitura, do americano Stefan Halper). Não é exatamente um cenário tranquilizador - o subtítulo do livro de Halper é Como o modelo autoritário chinês vai dominar o século 21.

Livros sobre o mundo pós-crise não andam em falta. Vale a pena ler mais este? O tamanho certamente conta a favor. A mensagem foi condensada em menos de 150 páginas. A linguagem foi mantida na forma coloquial. As ideias centrais são enfatizadas até o limite da repetição. Não é uma leitura recomendada para especialistas, mas, sim, para o público geral interessado em política e economia internacional. Não para especular sobre como será o mundo em 30 anos - francamente, quem pode saber? -, mas para entender os dias de hoje. Vivemos um daqueles raros momentos em que antigas verdades estão abaladas. Convém manter o espírito aberto e acreditar que, hoje, tudo passou a ser possível.

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