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Espionagem no século XXI faz caso Skripal parecer ultrapassado

Com agentes secretos atuando cada vez mais como hackers a história do envenenamento de Sergei Skripal e de sua filha Yulia parece saída da Guerra Fria

SERGEI SKRIPAL: ex-espião durante audiência em tribunal militar de Moscou em 2006 / Kommersant/ Yuri Senatorov (Kommersant/ Yuri Senatorov/Reuters)

SERGEI SKRIPAL: ex-espião durante audiência em tribunal militar de Moscou em 2006 / Kommersant/ Yuri Senatorov (Kommersant/ Yuri Senatorov/Reuters)

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Da Redação

Publicado em 1 de maio de 2018 às 12h06.

Última atualização em 1 de maio de 2018 às 12h43.

No dia 4 de março, o ex-espião russo Sergei Skripal e sua filha Yulia foram envenenados em Salisbury, no sudoeste da Inglaterra. Eles foram encontrados inconscientes em frente ao shopping onde fica o restaurante Zizzi, duas horas depois de almoçar no local, onde havia vestígios de uma substância neurotóxica.

Skripal, de 66 anos, vive discretamente na Inglaterra há cerca de oito. Em 2006, ele foi condenado e preso na Rússia por ser um agente duplo: repassava à inteligência britânica informações militares e sobre espiões russos que atuavam na Europa. Em 2010 ele foi libertado e mudou-se para a Inglaterra, onde quase foi morto no mês passado. Sua filha Yulia teve alta no dia 9 de abril, e Sergei está se recuperando rapidamente.

A história, que parece enredo de filme de espionagem, desencadeou uma grande crise diplomática digna dos tempos da Guerra Fria. O Reino Unido acusou a Rússia de ser responsável pelo envenenamento, e o governo britânico, entre outras medidas, expulsou 23 diplomatas russos do país, alegando que eles eram “agentes de inteligência não declarados”, ou seja, espiões. Mais de 25 países adotaram a mesma medida e mais de 120 funcionários de embaixadas russas estão sendo convidados a deixar inúmeros países da União Europeia, Austrália, Canadá e EUA, que expulsou 60 diplomatas. A resposta de Moscou foi expulsar do país 60 diplomatas norte-americanos e fechar o consulado geral dos EUA em São Petersburgo.

Expulsar diplomatas estrangeiros é um dos atos mais severos de retaliação entre dois países, e a desavença levanta a possibilidade de espiões estarem atuando disfarçados de diplomatas. “É comum oficiais de inteligência atuarem sob esse tipo de cobertura, pois assim eles têm imunidade diplomática e fácil acesso aos alvos de seu interesse, com justificativa aparentemente legítima”, esclarece a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), órgão da Presidência da República vinculado ao Gabinete de Segurança Institucional e principal responsável pelas atividades de inteligência e contrainteligência no país.

Esses oficiais são os chamados agentes legais, que não podem ser presos porque são protegidos pela Convenção de Genebra. Eles podem no máximo ser declarados persona non grata e expulsos do país. Além deles, há também os agentes ilegais, que operam com identidade falsa. Para Jorge Bessa, que atuou em órgãos de inteligência do governo brasileiro por 25 anos e é autor dos livros “Contraespionagem Brasileira na Guerra Fria” e “O Escândalo da Espionagem no Brasil”, a animosidade entre EUA e Rússia vem recrudescendo. “Autoridades norte-americanas e inglesas afirmam que centenas de espiões russos operam hoje dentro de suas fronteiras em uma escala maior do que durante a Guerra Fria. Acredita-se que eles estejam atrás de segredos econômicos, militares e políticos dos EUA, da Grã-Bretanha e dos países da Comunidade Europeia.”

 James Bond ficou no passado

O caso ocorrido na Inglaterra confirma que, para além das relações diplomáticas oficiais, há interesses e informações ocultas e nem sempre explícitas nas relações entre os países, e é aí que entram os serviços de inteligência. Espionagem é um termo popular para designar um campo maior chamado de coleta de inteligência, que pode ir desde a mera pesquisa de informações em publicações até as atividades mais secretas e ilegais de invasão física ou eletrônica de instalações privadas de outros países com fins militares, tecnológicos, científicos, políticos ou empresariais. “O objetivo é sempre conseguir o máximo de informação sobre os outros países, sejam amigos ou inimigos, para estar em melhores condições de influenciar o comportamento deles no futuro”, explica Angelo Segrillo, historiador da USP e autor dos livros “Os Russos” e “De Gorbachev a Putin”.

Entretanto, fugas em carros esportivos, disfarces, armas mirabolantes, perseguições em lanchas e mulheres sedutoras são coisa do passado ou de cinema. À medida que o mundo se tornou digital, os espiões também se transformaram. O protagonismo se deslocou do agente que atuava em campo para o analista de dados que trabalha internamente e à distância.

O espião do século XXI está mais para um hacker nerd do que para James Bond ou Ethan Hunt. É um sujeito que passa muito tempo sentado, invadindo redes e contas bancárias, roubando senhas, bisbilhotando documentos e e-mails, guiando drones ou criando vírus. Muitos são ex-hackers que cometiam crimes virtuais e agora são contratados pelas agências de inteligência. Ao contrário dos tempos da Guerra Fria, quando a espionagem tinha objetivos mais ideológicos, o foco hoje é mais econômico, e com a tecnologia a atividade pode ser feita com segurança, a qualquer distância e de forma anônima.

Ciberespionagem

Em 2017, as empresas em todo o mundo gastaram cerca de US$ 22 bilhões em fusões e aquisições relacionadas à Inteligência Artificial, cerca de 26 vezes mais do que em 2015. Isso afeta praticamente todas as áreas do conhecimento e das relações humanas, inclusive a espionagem, fazendo com que a ciência, a tecnologia e as armas cibernéticas tomem parte do lugar dos agentes secretos. “Não existem números e estatísticas confiáveis a respeito dessa atividade, obviamente, mas a espionagem vem crescendo nos últimos anos principalmente na Rússia, que está ampliando muito a sua capacidade ofensiva”, afirma Bessa.

Exemplos não faltam. Em 2010, um vírus chamado Stuxnet infectou os sistemas da planta de enriquecimento de urânio em Natanz, no Irã, causando prejuízos que atrasaram o programa nuclear do país. Segundo um artigo do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e diversos especialistas em segurança cibernética, a maior suspeita pelo incidente é uma equipe de especialistas israelenses e americanos. O uso de vírus, a derrubada de sites, a invasão em sistemas operacionais de governos e empresas e o phishing – que leva a vítima a entrar em sites falsos – são alguns dos métodos de ciberataque que podem ser usados na espionagem. No Iraque, os norte-americanos paralisaram a rede bancária e outros sistemas antes de invadir o país, e o uso de drones foi decisivo na captura e morte de Osama Bin Laden. Edward Snowden, o famoso ex-analista da Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA) que hoje vive em Moscou, revelou o uso de cyber cafés para espionar a cúpula do G20 em Londres, em 2009. Outro exemplo foi a descoberta de que os EUA grampearam o celular da chanceler alemã Angela Merkel, o que levou à expulsão do chefe da base da CIA em Berlim em 2014.

A ABIN pondera, no entanto, que o ambiente cibernético tem sido um campo a mais de atuação, mas sem detrimento de outras técnicas. Além da interceptação de comunicações eletrônicas a agência, órgão central de um sistema que engloba outras 37 entidades, destaca também a obtenção de informações por meio de fontes humanas (espiões), a coleta de dados em fontes abertas e a obtenção de informações por meio de satélites e fotos aéreas, entre outras.

A espionagem tradicional ainda existe, mas os espiões hoje têm que conhecer e utilizar os meios digitais para executar seu trabalho. Mas, assim como ficou quase impossível para os cidadãos comuns fazer qualquer coisa em segredo com tanta vigilância na vida cotidiana, para os profissionais de inteligência, manter sigilo e criar identidades falsas atualmente também é uma tarefa mais árdua. As mesmas vulnerabilidades que tornam mais fácil roubar segredos de outras pessoas também pode ser um ponto fraco dos próprios espiões. Qualquer computador ou smartphone conectado à Internet corre o risco de ser invadido. Nenhuma comunicação, seja eletrônica ou não, está 100% segura. Tudo se resume a quanto esforço o agente está disposto a empregar para conseguir seu objetivo.

A Rússia e a eleição de Trump

Para as agências de inteligência americanas, a Rússia é uma ameaça para os seus interesses militares, diplomáticos e comerciais. Seis agências de inteligência dos EUA afirmam que a Rússia interferiu nas eleições americanas de 2016 para denegrir a imagem de Hillary Clinton e favorecer Donald Trump. Para isso, teriam invadido computadores, publicado notícias falsas em meios de comunicação do governo russo e até pago pessoas para escrever e divulgar essas mensagens em redes sociais. “Parece que isso realmente aconteceu, mas é importante diferenciar o que é informação do que é desinformação. A Rússia tem canais de televisão e rádio como a RT e a Rádio Sputnik, que são canais legítimos de informação e passam a visão russa dos acontecimentos mundiais, podendo eventualmente favorecer seus candidatos preferidos – como fazem muitas estações de TV e rádio ocidentais. O problema é quando se lança mão das fake news, que são instrumentos ilegítimos de projeção e influência no exterior”, afirma Angelo Segrillo, acrescentando que Trump, desde o início da campanha eleitoral e ao contrário de seus concorrentes, se dispôs a dialogar com a Rússia. “Isso fez o governo russo vê-lo com bons olhos.”

Todos os países possuem algum tipo de serviço de inteligência que, em tese, dá suporte aos objetivos estratégicos nacionais, seja na defesa contra possíveis ameaças ou identificação de oportunidades. Geralmente estão subordinadas diretamente ao presidente e têm a função de proteger o Estado, a sociedade e as instituições. Podem também participar do planejamento de ações policiais, militares ou fiscalizações, apoiar as forças armadas ou a busca de criminosos. Nos EUA, as principais são a Agência Central de Inteligência (CIA) e a já citada NSA. Enquanto o papel da CIA é coletar informações de fontes humanas e avaliar se elas ameaçam a segurança nacional, a NSA se dedica à chamada inteligência de sinais (SIGINT), fazendo interceptação e criptoanálise de comunicações, eletrônicas ou não. Já o FBI é uma espécie de Polícia Federal e órgão de inteligência interna (contraespionagem). No Brasil, quem cumpre esse papel é a ABIN, por meio do Programa Nacional de Proteção ao Conhecimento Sensível (PNPC), que visa prevenir a espionagem estrangeira fortalecendo os sistemas de proteção e detecção de ameaças, e também do Centro de Estudos e Pesquisa em Segurança das Comunicações (CEPESC), que cuida da integridade e inviolabilidade das comunicações governamentais brasileiras.

A espionagem russa

Os dois principais serviços de inteligência russos são o Serviço Federal de Segurança (FSB) e o Serviço de Inteligência Estrangeiro Russo (SVR). A primeira é uma força policial que se dedica à segurança interna, contraespionagem, contraterrorismo, crimes econômicos e guarda de fronteiras. Já a SVR atua na coleta de inteligência no exterior, incluindo espionagem. Ambas podem ser consideradas sucessoras do KGB, o serviço secreto soviético que atuou de 1954 a 1991 e englobava todas essas atividades. O primeiro-ministro russo Vladmir Putin trabalhou por 15 anos como agente da KGB. No livro “A Nova Nobreza”, sobre a FSB, os autores Andrei Soldatov e Irina Borogan dizem que Putin expandiu os poderes do órgão ao permitir o envio de agentes para missões especiais no exterior, inclusive para coleta de informações de inteligência. Hoje, muitos membros da elite da FSB enfrentam sanções da União Europeia e dos EUA devido à anexação da Crimeia pela Rússia em 2014. Muitos deles adquiriram grandes fortunas e controlam recursos chave na região.

Uma das técnicas de espionagem mais utilizadas por Moscou é a “kompromat”, contração em russo das palavras material comprometedor, que marcou a Guerra Fria e consiste na coleta de qualquer material constrangedor que possa ser usado para chantagear o inimigo. O curioso é que atualmente as principais vítimas dessa tática são os próprios russos. A prática é instrumento de chantagem entre os oligarcas, que brigam pelo controle de grandes empresas e utilizam seus impérios de comunicação para divulgar as piores acusações uns contra os outros. O próprio Putin conseguiu destruir vários adversários políticos dessa forma, como no caso do procurador-geral Yury Skuratov, que vinha investigando o presidente, mas foi forçado a se demitir depois que a televisão o mostrou numa orgia sexual com duas prostitutas. Na opinião de Jorge Bessa, a estrutura de inteligência da Rússia está mais ativa e com mais respaldo governamental do que nos últimos anos da URSS. “Eles formam ótimos agentes secretos e são comprovadamente autores das mais ousadas e efetivas ações de espionagem dos últimos tempos, em vários países. Atualmente, Vladimir Putin usa seu aparato de inteligência para fazer com que a Rússia reviva os dias de glória da extinta URSS e seja um ator de peso nas relações internacionais.”

Cenário mundial turbulento

Outro país que está ganhando importância e protagonismo na espionagem mundial é a China. A espionagem chinesa se expande rapidamente, a par e passo com seu crescimento econômico. “Os interesses chineses são os mesmos dos outros países, como a segurança nacional, mas com ênfase na espionagem industrial. Eu diria que a espionagem chinesa, nas áreas econômica e tecnológica, já é mais forte que a russa”, opina Segrillo.

Ao contrário da época da Guerra Fria, quando o cenário era um pouco mais previsível, a conjuntura internacional hoje é mais turbulenta. À medida que a Rússia se fortalece e desafia o Ocidente, mais importante se torna a espionagem política. Quando Trump decide fazer os EUA grandes novamente, ele decreta uma guerra econômica, o que implica utilizar o aparato de inteligência para auxiliar as empresas americanas a vencer a competição global. Quando Putin anuncia que vai fortalecer seu arsenal bélico e desenvolver novas e mortíferas armas, mais importante se torna a espionagem militar. “Além disso, saber antecipadamente as intenções dos países em relação às organizações internacionais, como a União Europeia (UE), a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) é um trabalho permanente para os espiões, bem como acompanhar as atividades das organizações terroristas e proteger informações de defesa nacional que possam interessar a esses grupos”, acrescenta Bessa. Em resumo, a espionagem continua sendo um instrumento fundamental para assessorar as maiores autoridades governamentais e apoiar a tomada de decisões que ditam os rumos do mundo.

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