Protestos no Equador em 2019: popularidade do atual governo despencou após acordo com FMI (Agustin Marcarian/Reuters)
Carolina Riveira
Publicado em 16 de abril de 2021 às 06h00.
Os países latino-americanos têm flertado com o liberalismo econômico nas últimas décadas. Boa parte das vezes as promessas liberais ficaram apenas no discurso ou foram testadas de forma errática na realidade. Mas um pequeno país com 17 milhões de habitantes pode ser o novo laboratório para essas ideias na América Latina, a ser comandado em breve por um liberal raiz.
Em sua posse em 24 de maio, o novo presidente eleito do Equador, o ex-banqueiro e empresário Guillermo Lasso, receberá um país de "tecido social completamente rompido". E precisará provar que um choque de liberalismo (e de boa política pública) é capaz de mudar isso.
A análise é do cientista político e jurista Pedro Donoso, diretor geral da consultoria Icare Inteligencia Comunicacional. Baseado em Quito, Donoso acompanha com profundidade o processo político no país, e sua tese é de que as propostas liberais vendidas durante a campanha irão, a partir de agora, se moldar a uma realidade que é menos favorável.
Lasso é o primeiro presidente eleito sem apoio do correísmo em 14 anos, desde quando Rafael Correa (2007-2017) chegou ao poder pela primeira vez. Mas o placar apertado da eleição de domingo, 11, com 53% dos votos para Lasso contra o economista de esquerda Andrés Arauz – somado ao alto número de votos nulos – mostram como o presidente eleito não venceu por unanimidade, e somente capitalizou parte da rejeição ao adversário.
Esse é o problema imediato com o qual outros políticos latino-americanos economicamente liberais têm tido de lidar: a rejeição ao governo anterior não necessariamente se traduz em apoio ao novo mandato.
Entre a oposição ao correísmo e um apoio concreto ao presidente eleito, há um abismo. Lasso terá pouca base no Congresso e precisará aglutinar os grupos diversos que o apoiaram. "O espectro que ele representa, um espectro anticorreísta, é muito amplo. Isso gera muita expectativa, e o inimigo principal dos políticos é sempre a expectativa", diz Donoso.
Na campanha, o presidente eleito disse que deseja abrir a economia, reduzir o tamanho do Estado, fazer acordos bilaterais, atrair investidores, reduzir impostos, investir no agronegócio e criar 2 milhões de empregos.
Mas o histórico não lhe é promissor. Com desigualdade alta (e crescendo na pandemia), a América Latina tem dificuldades para encontrar modelos ideais de governos liberais. Mandatários, mesmo que à direita, costumam terminar empregando gastos públicos amplos – alguns justificados, outros, nem tanto. As reformas prometidas em campanha, com frequência, não saem do papel, ou dão imensamente errado.
Os exemplos recentes são vários: da Argentina de Mauricio Macri, que não conseguiu retomar a economia após o kirchnerismo, ao Brasil de Bolsonaro e Paulo Guedes, onde as reformas ainda não engrenaram. Entrou na lista até mesmo o Chile, bandeira de sucesso do neoliberalismo e cuja população passou a questionar o modelo de estado mínimo nos últimos anos.
Dentro do Equador, o atual presidente, Lenín Moreno (que venceu o próprio Lasso em 2017), rompeu com Rafael Correa na metade do mandato e viu sua popularidade cair após cortes de subsídios que levaram a uma onda de protestos indígenas em outubro de 2019. As medidas foram contrapartida a um empréstimo junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI), criticado pela oposição. A pandemia terminou de devastar o governo, que encerra o mandato com popularidade na casa dos 10%.
Aos 65 anos, Lasso foi presidente do Banco Guayaquil do Equador por quase 20 anos, além de ter tido passagem pela Coca-Cola e outras organizações do setor privado. Mas nunca teve um cargo eletivo, após ter perdido as eleições presidenciais em 2013 e 2017. Antes disso, atuou por somente alguns meses no governo do ex-presidente Jamil Muhuad, ainda nos anos 90.
O novo presidente assume um país de economia devastada, com desemprego em mais de 30% (sem contar os trabalhadores informais sem salário na pandemia) e queda de 8% do produto interno bruto em 2020. No começo da pandemia, o Equador viu o sistema de saúde e funerário colapsar, chegando a ter corpos nas ruas. Agora, a segunda onda que assola a América do Sul é nova preocupação.
A vacina chegou a menos de 3% da população. Em uma promessa "à la Biden" – que disse que aplicaria 100 milhões de doses de vacina em 100 dias de mandato, e depois dobrou a meta –, Lasso prometeu vacinar 9 milhões de pessoas em seus primeiros 100 dias.
Os diversos parabéns que o presidente eleito recebeu de líderes de direita na América Latina mostram que todos os olhos estarão voltados ao Equador. Se tiver sucesso no complicado cenário do país, o ex-banqueiro poderá lançar as bases para outros governos liberais na região, hoje amplamente questionados. "Lasso deve tentar fazer políticas de choques fortes, tomar decisões, aproveitando que é um presidente novo. E isso pode lhe gerar algum tipo de positividade", diz Donoso. "Mas será um desafio."
Veja abaixo os principais trechos da entrevista concedida à EXAME.
A vitória de Lasso no Equador chamou muita atenção por ser a primeira de um candidato não correísta em 14 anos. Quais desafios ele enfrentará?
O Equador vive diferentes crises profundas que é preciso entender. A primeira é uma crise de pessimismo, nunca antes visto. Nove em cada dez equatorianos se sentem pessimistas sobre o presente. Há também uma crise econômica, um déficit fiscal, uma crise social. Sete de cada dez não têm emprego pleno, estamos em um nível de pobreza extrema que não vivíamos desde 2007. Vimos também uma crise política de legitimidade. E por fim, a pandemia. Além da crise, tivemos aumento de feminicídios, de mortes violentas. O tecido social está completamente rompido.
A crise é tão profunda que o modelo de qualquer um dos dois candidatos no segundo turno, Lasso ou Arauz, seria invariavelmente devorado pela realidade. Tudo isso que Lasso propôs vai encontrar limites. Cada voto que ele ganhava no segundo turno representava também uma perda em margem de governabilidade: o espectro que ele representa, um espectro anticorreísta, é muito amplo. Há muitas visões aí. Isso gera muita expectativa, e o inimigo principal dos políticos é sempre a expectativa.
Passada a comemoração pela vitória, o presidente eleito terá apoio para fazer o governo liberal que propôs?
Lasso não tem maioria na Assembleia. Não me surpreenderia que nas negociações prévias a partir de agora ele comece a tentar chegar a acordos de modo a equilibrar e ter um bloco importante. É importante notar que ele também não tem outras bases, tem poucos aliados nas prefeituras, por exemplo, e seu partido foi um dos grandes perdedores dos protestos de 2019. Não necessariamente esse anti-correísmo vai ser aliado do Lasso. Não há uma conexão direta. Vai depender muito de como ele fará essa coordenação para governar.
O anti-correísmo foi forte na eleição, mas até que ponto esse grupo apoia o presidente eleito?
Se olharmos a Assembleia, há mais representação de um progressismo do que de um conservadorismo. Por mais que consiga também rachar parte da esquerda democrática e leve alguns votos para seu bloco, a soma do correísmo mais o movimento indígena representa uma maioria interessante. Lasso vai buscar os votos soltos, partidos locais, vai buscar aliança com o partido cristão que o apoiou na eleição. E isso vai ter consequências, porque ele terá de fazer concessões diversas.
Há espaço para passar reformas liberais na Assembleia?
O primeiro passo é eleger os postos chave. Não seria estranho, por exemplo, que se escolha alguém do movimento indígena como presidente da Assembleia. Há uma lei que ordena que em 60 dias após formada a Assembleia tem de ter uma agenda legislativa, então este começo será importante para dar o tom do que pode acontecer. E o terceiro ponto é que o acordo que Moreno [Lenín Moreno, presidente atual] celebrou com o FMI estabelece que o Equador tem de fazer três reformar: tributária, trabalhista e da previdência. Mas acredito que essas reformas não vão contar com os votos progressistas.
No Brasil, o atual governo foi eleito com promessas liberais, sobretudo na figura do ministro da Economia, Paulo Guedes. No entanto, muita coisa não foi concretizada. Há esse histórico de dificuldade para governos liberais na América Latina?
A pandemia mudou ainda mais a agenda, ela amplia desigualdades e exige mais ações dos governos uma vez que eles chegam lá. No Equador, fica claro que o Lasso do segundo turno já é diferente do Lasso do primeiro turno. São personagens diferentes, no segundo turno essa realidade da qual falei já se impôs muito mais, e foi necessário para fazer alianças. Teremos de ver o quanto governará o Lasso do primeiro turno e quanto será o Lasso do segundo.
Há muitas visões distintas sobre como recuperar a economia agora. Os exportadores têm uma visão diferente dos importadores, os empresários grandes têm uma, os pequenos têm outra. O Lasso será o para raio de todas essas demandas. Mais do que as promessas, só a realidade mostrará qual vai ser o modelo do governo.
O correísmo ainda tem força no país apesar da derrota? Pode ser oposição forte a Lasso durante o governo?
O correísmo continua vigente, assim como o anti-correísmo. A eleição foi pautada por isso. Os candidatos que tentaram sair dessa dualidade terminaram sendo absorvidos. Tanto que a própria esquerda democrática, depois, apoiou Lasso.
Temos de ver como o correísmo se configura agora. Não sei se o Arauz será a figura que vai instaurar o “correísmo sem Correa” [o ex-presidente, impedido de concorrer por condenações por corrupção, vive hoje na Europa]. Creio que o discurso de Arauz foi de aceitar o resultado, foi um discurso tão potente, que não deveria ter sido o último. Temos que ver como se ressignificará o correísmo, se Arauz vai ser o líder, como eles vão lidar com os próximos anos.
A eleição do Equador foi um "referendo de rejeição" do correísmo, assim como outras eleições na América Latina. Nessa nova era, de primeiro eleito que não um candidato do ex-presidente Rafael Correa, há chance para que uma próxima eleição fuja dessa lógica?
O voto nulo chegou a 16%, o pior desde os anos 90. E nisso creio que há um movimento importante a observar, que foi essa terceira via que desejava romper com o correísmo. O movimento indígena foi o que melhor entendeu esse processo, não teve uma visão de curto prazo, mas apostou no futuro, em solidificar sua votação na Assembleia, ganhou espaço importante ao não ficar de nenhum dos dois lados [Yaku Pérez, líder do movimento indígena, pediu voto branco no segundo turno]. Então depende muito de como esse movimento pela terceira via vai se posicionar agora.
Como está o combate à pandemia no Equador e como ele impacta os planos de Lasso?
A pandemia, como sabemos, não tem só o efeito sanitário, porque a covid é um fenômeno que atravessa tudo, é um tema social, de educação, de violência contra a mulher. E a situação do Equador é muito ruim. A aprovação de Moreno chegou a ficar abaixo de 10%, nove em cada dez consideram que a atuação do presidente na pandemia foi ruim. Já temos níveis de contágio que nos fazem lembrar a onda anterior. E há ainda uma diferença da mortalidade real para a oficial com a subnotificação.
Lasso vai herdar, além da crise da covid, a necessidade de cumprir o acordado com o FMI. Ele já disse que deve seguir o combinado. Como fazer isso em meio à crise?
O Moreno já fez todo o trabalho duro que poderia beneficiar Lasso, como a negociação com o FMI. Mas ele ainda têm alguns dias no mandato, então não me surpreenderia se houvesse algum acordo, alguma pressão de Lasso para que o governo atual tome decisões mais complexas. Mas Lasso deve tentar fazer políticas de choques muito fortes, tomar decisões, aproveitando que é um presidente novo. E isso pode lhe gerar algum tipo de positividade. Na campanha, ele falava em tomar decisões já nos primeiros minutos de seu mandato. Ele fez, por exemplo, a promessa de vacinar 9 milhões de pessoas nos 100 primeiros dias. Mas será um desafio.