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Em meio à violência da guerra na Síria, nasce uma vila só para mulheres

Jinwar conta com 20 casas e uma escola e irá abrigar mulheres que se rebelam contra os homens em meio à violência da guerra

Mulheres em Jinwar, criada só para mulheres no norte da Síria: vila conta com 20 casas, uma escola e capacidade para até 70 pessoas (YB Rocha/Agência Pública)

Mulheres em Jinwar, criada só para mulheres no norte da Síria: vila conta com 20 casas, uma escola e capacidade para até 70 pessoas (YB Rocha/Agência Pública)

Gabriela Ruic

Gabriela Ruic

Publicado em 5 de agosto de 2018 às 06h00.

Última atualização em 5 de agosto de 2018 às 06h00.

Djila Abdula tem 24 anos, mas já carrega um passado caudaloso atrás de si. Tímida, com os cabelos aloirados cobertos por um véu azul, dificilmente olha no olho de seus interlocutores. Em especial, dos homens. Casada por imposição da família aos 16 anos, Djila se cansou de uma vida que ela conta ter sido marcada pela exploração, pelo desrespeito e pela violência.

Largou o marido há cerca de dez meses e se tornou a primeira moradora oficial de Jinwar, uma vila só de mulheres que está sendo construída no norte da Síria, perto da fronteira com a Turquia, em uma região de domínio curdo conhecida como Rojawa.

O vilarejo, um conjunto de 20 casas e uma escola com capacidade para até 70 pessoas, é um projeto dos comitês de mulheres curdas para abrigar aquelas que se rebelam contra o jugo dos homens, como Djila, ou que preferem ficar sozinhas depois de perderem o marido nos confrontos internos da guerra na Síria.

“Estamos abertas também a mulheres que queiram experimentar viver em comunidade sem a presença dos homens, sem necessariamente terem passado por traumas”, diz Haval (“camarada”, em curdo) Rumaitat, uma militante política ligada ao Partido dos Trabalhadores Curdos (PKK). “A única obrigatoriedade é abrir mão das relações afetivas e sexuais com os homens enquanto estiver vivendo aqui”, conta ela, celibatária por opção.

A vila, batizada de Jinwar (algo como “terra das mulheres” ou “o espaço da vida”, em uma tradução bastante livre do dialeto curdo kurmanji), é um projeto antigo, mas só começou a sair do papel há cerca de dois anos. Agora quase todas as casas feitas de adobe, no estilo tradicional da região, estão prontas.

Só falta a escola para que a vila possa ser oficialmente inaugurada, dando início a uma experiência diferente de vida comunitária. “Essa é uma ideia transformadora. Queremos mostrar aos homens que as mulheres são capazes de viver sem eles, que são tão fortes e capazes quanto eles. Essa foi a lição que Apo nos ensinou e a estamos colocando em prática”, diz Haval.

Apo é o apelido de Abdullah Öcalan, o grande ideólogo e fundador do Partido dos Trabalhadores Curdos (PKK), encarcerado em uma prisão de segurança máxima na Turquia desde 1999. De inspiração marxista-leninista, o movimento criado por Apo não só busca a autonomia dos curdos na Turquia e nos países vizinhos como também prega de forma bastante contundente a igualdade de gêneros, bandeira pouco usual entre os líderes sunitas do Oriente Médio.

A partir de seus livros, discursos e métodos, o PKK se tornou rapidamente um movimento em que as mulheres ocupam papéis tão relevantes quanto os homens. Há batalhões inteiros compostos exclusivamente por mulheres no braço armado do PKK. Lá, como na vila de Jinwar, elas são celibatárias. Apo chegou a criar um movimento específico para discutir a igualdade de gênero, a “jinealojia”.

Neste momento, oito mulheres estão vivendo em tempo integral na vila. Cabe a elas organizar as atividades, cuidar das plantações e supervisionar as obras. Quando a reportagem visitou Jinwar, no início de abril, a maior parte dos trabalhos de construção estava sendo feita por homens.

“Muitos deles apoiam nossa ideia e nos ajudam, estão aqui também como voluntários”, me contava uma jovem alemã de 27 anos que vive em Jinwar desde que a vila começou a ser construída. Ela adotou o nome curdo de Nujin Derya – e se recusa a revelar seu nome verdadeiro – e atua como interlocutora entre as curdas e mulheres de outros países que vêm conhecer a experiência. “Estamos abertas a qualquer mulher que queira vir até aqui viver em uma vila autossustentável. Esperamos não precisar de nenhum dinheiro que não seja produzido por nós mesmas.”

A expectativa é que Jinwar esteja repleta de moradoras e crianças após o verão. Até lá a escola estará pronta e as casas equipadas para receber as novas moradoras. No entorno das casas, plantações de oliveiras, tomates, pepinos e pistache já estão dando os primeiros frutos. “Temos tido muito apoio de organizações de mulheres do exterior, todas querem que esse seja um projeto de sucesso”, diz Haval.

Ela sabe, no entanto, que pode enfrentar problemas nas comunidades locais. “Se os islamistas políticos se opuserem ou tentarem nos atacar, nós sabemos nos defender”, diz. Ao seu lado está Siham Ali, uma ex-guerrilheira de 40 anos que atua como guarda de Jinwar. Passa o dia na portaria da vila, armada com um AK-47. Ela, no entanto, diz que não vai se juntar ao grupo. “Sou casada e feliz, não quero largar meu marido”, conta rindo.

A família de Djila Abdula, a jovem curda que agora está morando permanentemente aqui, não gosta da ideia de ela estar sem marido e morando apenas com mulheres. “Eles não aceitam minha decisão”, diz ela. “Mas aqui sou mais feliz, posso fazer o que quero e não preciso seguir as ordens de um homem, como era com meu marido.”

O maior sofrimento de Djila neste momento é a saudade dos três filhos. Pela tradição local, se a mulher decide abandonar o marido, a família dele pode ficar com os filhos. Foi o que aconteceu com ela. Os dois meninos e uma menina permanecem no Iraque. Ela não os vê desde que terminou o casamento. “Um dia eles virão viver aqui comigo”, diz ela.

As mulheres de Jinwar ainda não decidiram até que idade os filhos homens das moradoras podem permanecer na vila. Algumas defendem que até os 14 anos, outras, até os 16. “Essa é uma questão que vai ser decidida de forma democrática, entre as mulheres, mas em algum momento os meninos terão que partir”, diz Haval.

Reportagem originalmente publicada no site da Agência Pública

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