SURFISTAS EM COX’S BAZAR: o movimento de turistas caiu 40% na temporada entre dezembro de 2016 e maio de 2017 e ainda não se recuperou totalmente / Allison Joyce/Getty Images
Da Redação
Publicado em 7 de abril de 2018 às 07h18.
Última atualização em 7 de abril de 2018 às 16h00.
Cox's Bazar – Faz sol em Cox’s Bazar, mas Shohag Kumar anda preocupado pela praia. De câmera a tiracolo, busca aflito turistas dispostos a pagar seis centavos de dólar pelo seu clique. No geral, tudo está como sempre esteve no balneário mais caro de Bangladesh: famílias e jovens curtem o sol do fim de tarde em pé admirando o mar e alguns poucos tomam banho vestidos nas águas calmas e sob o vento frio de inverno. Praticamente todos fazem selfies e riem alto.
Mas o fotógrafo sabe que há algo errado por ali, e não é de hoje. O movimento de turistas caiu 40% na temporada entre dezembro de 2016 e maio de 2017 e ainda não se recuperou totalmente. A razão não é segredo. Além de abrigar a segunda praia mais longa do mundo e hotéis luxuosos em suas ruas pobres, a cidade é o local mais próximo da área onde 900.000 refugiados da etnia muçulmana Rohingya encontraram abrigo após fugirem de a pé de Mianmar, o país vizinho nas últimas décadas.
Nem 30 quilômetros separam colinas cobertas por barracos e histórias de horror de resorts 5 estrelas à beira do mar. E o contraste aumentou recentemente. Em 2016 o exército da Birmânia destruiu vilas, forçando 65.000 pessoas a partir para Bangladesh. Agosto de 2017 marcou um ponto de inflexão no cada vez mais violento tratamento dispensado aos Rohingya no país vizinho e 688.000 pessoas fugiram pela fronteira. Cerca de 7.000 não escaparam a tempo e foram mortas pelos militares e budistas nacionalistas.
Com a tragédia crescendo na vizinhança, o turismo tomou um tranco considerável no balneário. O número anual de visitantes caiu de cerca de um milhão para 600.000 entre 2016 e 2017, segundo levantamento do Departamento de Turismo da Universidade de Daca.
A invasão de Cox’s Bazar desde agosto de 2017 por centenas de ONGs internacionais, pelas agências da ONU e por jornalistas impediu que a ocupação hoteleira despencasse ainda mais. O estigma de país pobre normalmente afasta os estrangeiros, que representam apenas 16% do total de turistas no país, contando os que vão a negócios. Mas, focados no trabalho nos acampamentos, os novos visitantes não costumam ir à praia e nem consumir os mesmos serviços dos locais.
Um dos mais idiossincráticos é oferecido por dezenas de fotógrafos profissionais e sobrevive estoicamente à revolução dos celulares. O segredo está em explorar a vaidade masculina, inspirada na marra e nos Ray-Ban dos atores de Bollywood, para fazer de 80 a 100 fotos por vez, com direito a direção para as poses. Casais apaixonados são outro alvo fácil. As imagens são transferidas ironicamente para os smartfones com câmeras dos clientes.
Porém, a queda no movimento da praia foi demais para quem já precisa disputar espaço com a tecnologia e com a concorrência. Frustrado após horas buscando trabalho, Shohag decidiu que essa será a sua última temporada atrás de clientes na areia. “Tenho 49 anos, dois filhos para sustentar e o movimento só cai aqui. Ouvimos dizer que muitos estrangeiros estão vindo para ajudar os refugiados, mas por aqui nada”, conta.
Já Sone Abdullah, 38, procura sem muito ânimo clientes dispostos a dar uma volta de jet-ski. De pasta d’água sobre a pele escura, lamenta a falta de turistas. “Até o ano retrasado vinham muito mais pessoas, agora está parado”, queixa-se, apontando para os dois lados para indicar onde deveria estar quem não veio. “Estrangeiros são raros na praia e nunca andam de jet ski”, diz.
Passar o dia com refugiados desnutridos em acampamentos ora enlameados ora empoeirados não combina muito com um banho de mar no fim do expediente. “Para mim foi meio estranho ver tantos turistas naquela praia suja, indiferentes ao um milhão de refugiados logo ao lado. Mas até aí não é muito diferente do que meus amigos e familiares estão fazendo”, diz o fotógrafo americano Mike Kai, 29, que viajou até Bangladesh como voluntário freelancer em ONGs.
Vocação local
Para os moradores de Bangladesh que não se deixam afetar pela tragédia dos Rohingya, a cidade carrega uma dupla vocação turística: é ao mesmo tempo destino romântico obrigatório para recém-casados que não conseguem bancar uma viagem internacional, e um lugar para visitar em grupo de amigos. Homens, predominantemente. Mulheres, devidamente acompanhadas, têm para si 50 metros exclusivos de restinga para tomar banho, delimitados por bóias e placas.
Sagib Sarker, 29, é dos que reúnem os amigos e percorre cerca de 500 km da cidade de Mymensingh para Cox’s Bazar todos os anos. Neste ano, porém, a tradicional visita a um dos principais atrativos, a paradisíaca ilha de St. Martin, a 100 km, na divisa com Mianmar, foi cancelada. “Nosso guia de viagem e o gerente do hotel falaram que está perigoso ir para lá por causa dos refugiados”, diz.
O medo de Rohingyas que legalmente nem podem sair dos acampamentos está por trás da má fase do turismo de Cox’s Bazar e é sinal de que a hospitalidade de Bangladesh para com eles diminui proporcionalmente à chegada de mais e mais famílias. Segundo levantamentos da ONU, o número total de membros da etnia no país já chegou a 1,2 milhão.
Cerveja na praia, festas na piscina do hotel e a badalação comumente associada a destinos como esse também estão fora de questão para Sagib e seus amigos. “É um país muçulmano, há muitas restrições”, explica ele. Para estrangeiros o acesso ao álcool não chega a ser explicitamente proibido, mas o caminho até uma garrafa pode ser tortuoso.
Sobra o passeio de carro pela Marine Drive, estrada arborizada e deserta que costeia 75 dos 130 quilômetros de orla de Cox’s Bazar, promovidos pela Junta de Turismo do país a maior trecho ininterrupto de areia do mundo. Um exagero que costuma colar justamente porque a praia mais longa está do outro lado do planeta. O posto pertence à Praia do Cassino, no Rio Grande do Sul.
Assim como a irmã brasileira, Cox’s Bazar não prima exatamente pela beleza. Nem pela limpeza. Cascas de amendoim, embalagens de suco, pacotes de cigarro e cascas de banana delimitam a linha que divide areia e mar.
Copinhos plásticos com café doce e creme servidos aos turistas por meninos são dispensados ali mesmo sem cerimônia. Vendedores de pipoca de arroz preparam misturas elaboradas em cima de latas de tinta e as servem em cones de papel que também terão como destino o mar.
Quem não teme os milhares de Rohingya nos acampamentos do entorno geralmente é indiferente a eles. Mohammad Shahid Ulla, 30, morador de Daca, nunca esqueceu a sensação de ver o mar pela primeira vez da janela do ônibus escolar aos 13 anos. Deu um jeito de voltar a Cox’s Bazar outras dez vezes e este ano trouxe a esposa em lua de mel.
“Claro que lamento pela situação dos refugiados, mas nosso país já está fazendo muito por eles. Acho que continuar visitando trazendo dinheiro para cá pode ter um impacto positivo também”. O casal hospedou-se no Hotel Royal Tulip, um dos mais luxuosos da região, de frente para a praia, com spa e onde um quarto pode custar até mil dólares.
Otimismo hoteleiro
O luxo dos resorts e suas piscinas iluminadas, cozinhas internacionais e salas de conferência oferece um contraste poderoso em relação ao entorno. Fora da areia, mas às vezes também nela, uma diversificada fauna local de bodes, ovelhas, cavalos, vacas, galinhas, cachorros e gatos habita terrenos baldios, construções abandonadas e ruas de terra com lixo e esgoto a céu aberto. Na rua principal tuk tuks a gasolina e elétricos, vans e picapes de ONGs se engarrafam, sem carrões à vista.
Mesmo sendo uma praia tão particular, Cox’s Bazar virou referência turística no país. E viveu seu auge já como vizinha dos acampamentos de refugiados Rohingya, que têm fugido de Mianmar desde o início década de 90.
O relativo otimismo do setor frente ao então crescente movimento e a esperança, ou indiferença, quanto à situação dos acampamentos, atraiu até a rede Radisson, que está licenciando a marca para um mega resort com 250 quartos na beira da praia em um terrenos de 9.000 metros quadrados.
Mesmo com a crise recente empreendimentos imponentes como os hotéis The Cox Today, Heritage Hotel e White Orchid conseguiram, apesar dos refugiados, manter a taxa de ocupação de suas centenas de quartos em 85% durante essa temporada, principalmente por conta do aumento da ajuda humanitária nos acampamentos.
“Não sabemos exatamente quantos dos nossos hóspedes estão trabalhando nos campos, mas o movimento de gente de ONGs estrangeiras aumentou bastante desde agosto”, diz Sarowar Hasan, gerente do hotel Long Beach, da mesma categoria.
Parte dos hotéis e operadores de turismo de Cox’s Bazar também dá como certa a execução de um plano de realocação dos Rohingya aventado periodicamente pelo governo de Bangladesh. A ideia é levar quem não puder ser devolvido a Mianmar como parte de um acordo de repatriação assinado em novembro de 2017 para a ilha remota e abandonada de Bhasan Char, a 400 km dos acampamentos.
O local já estaria sendo preparado para isso a um custo de 23 bilhões de takas, cerca de 277 milhões de dólares. Só há um pequeno detalhe: a ilha passa parte do ano completamente submersa, o que gera críticas internacionais sobre a viabilidade da iniciativa.
“Após os Rohingya serem acomodados em Bhasan Char, Cox’s Bazar vai voltar ao volume anterior de turistas sem chance de ser prejudicada pela chegada de refugiados”, afirma Mohammad Shaifullah Rabbi, pesquisador do Departamento de Turismo e Gestão de Hospitalidade da Universidade de Daca.
Ainda assim, o turismo engatinha em Bangladesh. Movimenta 300 bilhões de takas, cerca de 361 milhões de de dólares, menos de 1% do PIB. De acordo com o Conselho Mundial de Viagens e Turismo, a atividade responde por 6,6% do PIB em Mianmar e por 9,6% na Índia, para ficar nos países vizinhos.