Boric e Kast em último debate presidencial: eleição no Chile é a primeira presidencial desde os protestos que chacoalharam o país em 2019 (Elvis Gonzalez/Getty Images)
Carolina Riveira
Publicado em 18 de dezembro de 2021 às 08h00.
Última atualização em 18 de dezembro de 2021 às 11h00.
Faz pouco mais de dois anos que o Chile surpreendeu o mundo. Naquele fim de 2019, o então país modelo da América Latina se viu envolto, quase de uma hora para outra, em alguns dos maiores protestos de sua história, que começaram contra um aumento de 30 pesos na passagem do metrô em outubro e terminaram levando milhões de chilenos às ruas.
As manifestações - também chamadas de "Revolta de Outubro", "Primavera chilena" ou "Estallido Social" - só pararam com a pandemia, cinco meses depois. Nos anos que se seguiram, porém, deixaram como herança, de um lado, a aprovação popular para escrever uma nova Constituição e, de outro, uma reorganização completa das forças políticas, da esquerda à direita.
É essa a soma de fatores que culmina neste domingo, 19, em uma disputa presidencial incomum. Após um primeiro turno em que os partidos tradicionais perderam força, concorrem o ultradireitista José Antonio Kast, advogado e deputado de 55 anos, e o esquerdista e também deputado Gabriel Boric, de apenas 35.
Há dois anos, ter essa configuração em um segundo turno pareceria impossível: nos 30 anos de democracia desde o fim da ditadura de Augusto Pinochet (1973-90), se revezaram no poder no Chile grupos de direita ou centro-direita (como o atual presidente Sebastián Piñera) e de centro-esquerda (com nomes como a ex-presidente Michelle Bachelet). Pois nem Kast, nem Boric, vêm dessas coalizões.
"Certamente, é uma eleição sem precedentes no Chile", resume a cientista política Isabel Castillo, da Escola de Governo da Pontificia Universidad Católica (PUC-Chile) e do Centro de Estudos de Conflito e Coesão Social.
Ex-líder estudantil, Boric defende maiores investimentos sociais e serviços públicos, uma mudança de 180 graus no Estado liberal e de amplo livre mercado construído pelo Chile desde os anos 1980. No espectro oposto, Kast pautou sua campanha em segurança e críticas à imigração crescente, enquanto defende posições que a direita tradicional não endossava abertamente, como elogios à ditadura Pinochet.
A campanha terminou oficialmente no Chile na quinta-feira, 16, e o resultado é incerto. Kast venceu com margem de somente dois pontos (28% dos votos) no primeiro turno em novembro. Já as primeiras pesquisas de segundo turno deram vantagem a Boric, mas Kast tem ganhado terreno e a diferença é muito pequena, de menos de um ponto percentual em algumas sondagens.
"Os protestos de 2019 - e a violência que apareceu ao lado de manifestações pacíficas - empurraram muitos chilenos na direção de priorizar a ordem pública. A retórica de Kast conversa com essas demandas", diz Paul Angelo, pesquisador de estudos latino-americanos no Council on Foreign Relations, think-tank sediado nos Estados Unidos.
"Muitos eleitores não sentiram que os partidos de centro estavam atendendo a suas preferências, ou não rápido o suficiente", diz.
Apesar dos bons números que marcaram a economia do Chile nas últimas décadas, os protestos que explodiram há dois anos não aconteceram de forma totalmente repentina.
A insatisfação com parte do então elogiado modelo econômico chileno já vinha se construindo ao menos desde a década anterior, quando ocorreu a chamada Revolución Pingüina em 2006, liderada por estudantes secundaristas, e grandes protestos universitários em 2011.
A principal demanda dos estudantes era por reformas que caminhassem no sentido de gratuidade na educação, quase totalmente privada e com custos altos após regras estabelecidas pela equipe de Pinochet nos anos 1990.
"Muito da classe média chilena acabou se endividando para bancar a educação dos filhos", diz o cientista político André Kaysel, especialista em estudos latino-americanos no Departamento de Ciência Política da Universidade de Campinas. "Foi-se criando uma insatisfação generalizada por anos com a forma como o Estado chileno se desenhou, e que de certa forma explodiria em 2019."
Os protestos dos anos 2010 levariam à ascensão de Boric como líder estudantil e figura conhecida no Chile. Daquela geração vieram também uma série de nomes que hoje são o resto da nova esquerda chilena, como as deputadas Camila Vallejo e Karol Cariola, do Partido Comunista, e o deputado e porta-voz da campanha de Boric, Giorgio Jackson.
"A candidatura de Boric é a expressão desse movimento que vinha se construindo", diz Kaysel, da Unicamp.
O agora candidato à Presidência, no entanto, não está entre as vozes mais à esquerda de sua coalizão. Boric, entre outros motivos, terminou vencendo as primárias e se tornando candidato exatamente por ser visto como um nome mais palatável ao eleitor.
Sua coalizão Apruebo Dignidad tem dois grandes grupos, o Frente Amplio, do qual faz parte o Convergencia Social, partido de Boric, e o Chile Digno, liderado pelo Partido Comunista, frente mais radical. No segundo turno, a candidatura também ganhou apoio dos grupos de centro-esquerda, incluindo da ex-presidente Bachelet.
A plataforma da coalizão traz muitas das insatisfações que marcaram os protestos há dois anos. Entre os projetos, estão pautas como uma previdência pública em substituição ao modelo de capitalização, ampliar a gratuidade na educação e expandir o sistema público de saúde.
O plano é financiar os investimentos com impostos sobre os mais ricos e setores como a tradicional indústria mineradora chilena. Há ainda amplo foco em temas ambientais, como mais regulações na extração de cobre e frentes como a gestão da água, hoje privada. São pontos nos quais governos de centro-esquerda não tocaram, e que podem tornar um possível governo Boric instável.
Entre os setores financeiros e empresários no Chile, o apoio é majoritário a Kast. O candidato promete dobrar a aposta no modelo liberal chileno, com cortes de impostos, desregularização para empresas e revogação de reformas de gratuidade na educação da era Bachelet. No dia seguinte ao primeiro turno, com a vitória de Kast, o principal índice da bolsa chilena chegou a subir mais de 9%.
Apesar da instabilidade recente, o Chile tem projeção de crescimento de 12% neste ano, com preços altos do cobre e outros minérios no mercado internacional, vacinação rápida (mais de 80% da população está totalmente vacinada) e gastos públicos emergenciais que incentivaram o consumo no ano passado.
Como o resto da América Latina, porém, o país também sofre com desafios como a alta da inflação, uma taxa de desemprego que saltou de menos de 8% para quase 12% na pandemia e os potenciais impactos do mercado internacional.
Mas para além dos planos econômicos específicos, analistas apontam que, de forma mais ampla, o que esteve em discussão nos protestos - e, na prática, está em debate nesta eleição - é a chamada "transição pactuada", a saída da ditadura rumo aos governos democráticos.
Desde então, presidentes chilenos à esquerda ou à direita mudaram pouco o modelo de participação mínima do Estado estabelecido por Pinochet. Com esse trajeto, o produto interno bruto do Chile cresceu mais de 3% por ano, em média, desde o fim dos anos 1990.
Na outra ponta, uma das principais críticas da nova geração que foi às ruas é que o modelo de transição gerou crescimento desigual. As taxas de pobreza no Chile caíram, mas a desigualdade chilena é ainda uma das maiores da OCDE, clube dos países ricos.
A pobreza também é maior entre os idosos do que no Brasil, e o modelo de previdência por capitalização foi um dos alvos mais criticados nos protestos.
"Por isso, quem olha apenas para os indicadores macroeconômicos favoráveis não consegue entender o porquê da explosão social que ocorreu no Chile", diz o professor Jales Dantas da Costa, do Departamento de Economia da Universidade de Brasília.
Embora traga promessas de benefícios aos mais pobres, Boric tem enfrentado dificuldade de alcançar grupos para além de seu nicho.
Há, primeiro, um claro conflito geracional: com jovens da classe média urbana e progressista, e muitas mulheres, escolhendo Boric, enquanto Kast é preferido por eleitores mais velhos de bairros mais ricos da capital Santiago e áreas rurais nas fronteiras do país.
Além disso, uma vez que a eleição no Chile é facultativa, menos de 50% dos 15 milhões de eleitores votaram no primeiro turno. Um dos principais esforços de campanha nos últimos dias tem sido tentar convencer potenciais eleitores a votar de fato.
Dados do primeiro turno e de pesquisas mostram que o comparecimento foi maior em redutos eleitorais de Kast. "O segundo lugar de Boric em novembro reflete sua inabilidade de atrair de forma mais ampla a classe trabalhadora no Chile", argumenta Angelo, do Council on Foreign Relations.
Na onda dos protestos, a esquerda chilena havia obtido uma série de vitórias. Primeiro veio a aprovação, por quase 80% dos eleitores, da substituição da Constituição que datava ainda do governo Pinochet. Depois, a eleição dos membros da Convenção Constituinte teve maioria de nomes progressistas. Tudo parecia caminhar para que algum nome de oposição substituísse o presidente Sebastián Piñera - que, por sua vez, termina o governo com popularidade em baixa e escapando de um impeachment por sua presença nos Panama Papers.
Mas a ascensão de Kast mostra que nem todos que apoiaram a nova Constituição ou que rejeitam Piñera apoiam também as pautas da esquerda. Após a derrota na Convenção Constituinte, a direita tradicional conseguiu se reorganizar. As eleições para o Congresso, por exemplo, tiveram cadeiras divididas quase meio a meio.
"Há uma reação conservadora ao que se havia produzido de transformação com a revolta social", argumenta o sociólogo chileno Carlos Ruiz Encina, doutor em Estudos Latino-americanos pela Universidad de Chile e presidente da Fundación Nodo XXI, ligado ao Frente Amplio.
Ruiz também avalia que, embora paralelos com a eleição brasileira de 2018 sejam "tentadores" para os analistas, há claras diferenças entre o Chile e o Brasil. "O crescimento de um nome como o de Kast não é uma surpresa como foi Bolsonaro", diz. "Se Kast ganhar, não terá a dificuldade de governabilidade que teve Bolsonaro, por exemplo, porque a direita é historicamente muito mais orgânica no Chile, e está muito unificada em apoio a ele."
Ainda assim, o eleitor chileno de fato mudou algumas crenças em seu âmago. A tendência é que parte significativa dos eleitores tenda a cobrar o candidato eleito por alguma ampliação de serviços sociais, dizem os analistas.
Essa nova demanda não é, no entanto, garantia de vitória de candidatos à esquerda. "Nas pesquisas, é perceptível que as pessoas seguem priorizando as soluções dos problemas sociais, aposentadoria, saúde", diz Castillo, da PUC-Chile. "Mas a violência surge como outra das grandes preocupações. Então, nesse sentido, pode ser que muitos estejam apoiando Kast mesmo que queiram maior participação do Estado."
Qualquer que seja o presidente eleito, a expectativa é que nenhum dos pontos mais extremos dos programas de governo consigam se cumprir, em meio a um Congresso dividido, rejeição do lado derrotado e os desafios que se impõem, como a recuperação pós-pandemia.
O futuro chileno permanece, neste momento, uma incógnita - e dois caminhos muito distintos serão trilhados a depender de quem vencer neste domingo. "Com a mobilização social em 2019", conclui Castillo, "a política chilena com certeza está entrando em um novo ciclo. E que não sabemos onde vai terminar."