Banca de jornal nesta segunda-feira, 6: vitória do "rechazo" faz carta vigente no Chile seguir sendo a da ditadura Pinochet, até que novas mudanças sejam feitas (JAVIER TORRES/AFP/Getty Images)
Carolina Riveira
Publicado em 5 de setembro de 2022 às 18h09.
Última atualização em 5 de setembro de 2022 às 20h15.
O texto do que seria uma nova Constituição do Chile, preparado por mais de um ano, foi rejeitado por 62% da população na noite de domingo, 4 de setembro.
Embora o resultado seja visto majoritariamente como uma derrota do presidente de esquerda Gabriel Boric, o historiador Alberto Aggio, especializado em estudos sobre a política do Chile e história contemporânea da América Latina, aponta que a rejeição não significa que os chilenos são necessariamente favoráveis à Constituição atual, herdada da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).
"Não é que o 'pinochetismo' derrotou a esquerda. Não há possibilidade de imaginar que 62% da população que votou é de direita puramente, ou a favor da Constituição de Pinochet", diz Aggio, professor da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp, em entrevista à EXAME sobre os resultados.
Foram às urnas 13 milhões de chilenos, dos quais só 38% votaram pelo apruebo (a aprovação ao texto constitucional). Com o resultado, a carta chilena segue sendo a de 1980, aprovada no regime Pinochet e vista como uma das mais liberais economicamente da América Latina, enquanto também é associada a um regime que estima-se ter deixado 40 mil mortos.
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O resultado do referendo chamou atenção pela redução no público potencial de aprovação em relação a 2020, quando 78% dos eleitores haviam votado a favor de começar a escrever uma Constituição substituta, e de 2021, quando 56% votaram em Gabriel Boric no segundo turno das eleições.
"O que os eleitores rejeitaram foi esse texto, além de todo um processo constituinte marcado por muitos problemas. Mas o que tem de ficar claro é que o sentimento de uma nova Constituição ainda é um sentimento majoritário no Chile", diz Aggio.
A ideia de uma nova Constituição chilena começou a ser gestada sobretudo nos protestos massivos de 2019, chamados de estallido social, quando a população pediu mudanças em frentes como saúde, previdência e desigualdade - o que exigiria uma Constituição mais próxima de um Estado de bem-estar social aos moldes europeus do que do neoliberalismo dos anos 1980.
Mas o professor aponta que a rejeição à Constituição nesta semana foi maior, por exemplo, do que a base eleitoral tradicionalmente de direita no Chile nas votações anteriores.
O próprio Pinochet teve só 44% dos votos no plebiscito de 1988 que questionou a população sobre a convocação de eleições - o "não", contra a manutenção do regime Pinochet, venceu e terminou encerrando a ditadura chilena. Ou que, na eleição presidencial de 2021, que deu a vitória a Boric, seu oponente, o ultradireitista José António Kast - que chegou a elogiar Pinochet na campanha - também teve 44% dos votos.
Assim, o resultado mostrou que a rejeição ao texto incluiu eleitores não só da direita, mas do centro e também de parte da centro-esquerda tradicional.
A centro-esquerda, com nomes da antiga coalizão Concertación (que apoiou presidentes à esquerda pós-Pinochet, como Ricardo Lagos e Michelle Bachelet) rachou durante o processo e parte do grupo passou a reprovar a nova Constituição.
A derrota tende a levar o presidente Boric a uma reformulação em seu gabinete para incluir mais nomes de centro.
Boric, um ex-líder estudantil de somente 36 anos, venceu as eleições em 2021 com amplo apoio do eleitorado mais jovem e progressista das áreas urbanas. O presidente tomou posse em março deste ano tendo na Constituição uma de suas máximas prioridades e ferramenta base para realizar promessas progressistas, como um sistema de saúde universal, maior equidade de gênero e reformas na Justiça e na Previdência.
Com a rejeição no referendo, a Constituição da era Pinochet segue regendo o Chile, mas, daqui para a frente, o debate sobre mudanças - seja com uma nova Constituição, seja com reformas específicas nas leis atuais - sai da Constituinte e migra para o Congresso, onde a direita tem maioria.
Em discurso após a votação, Boric já afirmou que "o Congresso Nacional deverá ser um grande protagonista" a partir de agora.
O Congresso chileno tem mais de 50% de parlamentares de direita, ao contrário da Constituinte, que tinha parlamentares independentes (eleitos entre a população comum) e maioria alinhada à esquerda.
Nesta manhã, Boric já teve uma reunião com os presidentes do Senado e da Câmara para discutir os próximos passos e prometeu "ajustes".
Aggio aponta que "até mesmo a direita quer uma nova Constituição hoje", incluindo a que domina o Congresso. "Só não quer [uma nova Constituição] a direita mais extremada, mas que é só em torno de 15% a 20% do Chile", diz.
A diferença, agora, será qual Constituição sairá da nova fase do processo, diz o historiador. "Está claro que Boric foi derrotado e que tem de resguardar seu mandato com uma mudança de gabinete - capaz de resgatar sua popularidade e capacidade de direção política, que sai muito abalada."
*Uma versão anterior deste texto afirmava que o "sim" saiu vitorioso no plebiscito chileno de 1988, contra a ditadura Pinochet. O correto é que o "não" saiu vitorioso. A informação foi corrigida.