Mundo

Cristina Kirchner vive ‘morte lenta’ na política, diz analista argentino

Felipe Noguera aponta que peronismo precisa se reinventar, enquanto Milei dependerá de alianças com governadores para avançar agenda

Cristina Kirchner, presidente da Argentina, acena da sacada do apartamento onde cumpre prisão domiciliar (Emiliano Lasalvia/AFP)

Cristina Kirchner, presidente da Argentina, acena da sacada do apartamento onde cumpre prisão domiciliar (Emiliano Lasalvia/AFP)

Rafael Balago
Rafael Balago

Repórter de macroeconomia

Publicado em 28 de outubro de 2025 às 10h47.

Buenos Aires - O peronismo, que saiu derrotado das eleições de domingo, 26, na Argentina, precisa se reinventar. Um caminho para isso é deixar o kirchnerismo para trás e buscar pontos em comum com a agenda do presidente Javier Milei. A avaliação é do analista político Felipe Noguera.

“A liderança de Cristina Kirchner claramente acabou. Ela está em prisão domiciliar. Digamos que ela esteja morrendo uma espécie de morte política, uma lenta agonia”, diz, em entrevista à EXAME.

Kirchner, que governou o país de 2007 a 2015 como presidente e foi vice de 2019 a 2023, está atualmente em prisão domiciliar, após ser condenada por corrupção. Ela é considerada uma das principais lideranças do peronismo do país.

Os peronistas são o principal grupo opositor de Milei e ficaram em segundo lugar nas eleições de domingo. Eles levaram 31,7% dos votos para a Câmara dos Deputados, ante 40,6% de A Liberdade Avança, partido do governo.

"Outro erro que o peronismo cometeu foi separar as eleições na província de Buenos Aires das eleições para autoridades locais, como prefeitos etc. Eles as realizaram em setembro e venceram lá. Os prefeitos são normalmente os responsáveis pelo voto regional, por levar as pessoas a voltarem. Mas, uma vez que o prefeito foi eleito e eles elegeram seus vereadores, eles não investem mais seu dinheiro ou sua energia nisso", diz o analista. Na Argentina, os governos locais têm autonomia para mudar as datas de eleições.

Noguera é analista e consultor político e atua na área há décadas. Ele trabalhou em mais de 100 campanhas eleitorais na Argentina e em outros países e teve cargos de direção em entidades como a Associação Internacional de Consultores Políticos (IAPC) e a Associação Latinoamericana de Consultores Políticos (Alacop), da qual foi o primeiro presidente.

Veja a seguir mais trechos da conversa:

Como avalia o desempenho de Milei na eleição?

A base deste resultado, em primeiro lugar, é que Milei tinha uma mensagem clara: ‘continuamos avançando ou a Argentina retrocederá’. É muito, muito simples. E aqueles que se opuseram a Milei não tinham uma mensagem alternativa. Geralmente, optavam por uma mensagem como: "Precisamos impedir Milei".

Em campanhas eleitorais, geralmente é um erro aceitar os termos propostos pelo oponente. O próprio peronismo não tinha nenhuma agenda significativa além de tentar reter seu eleitorado leal.

Houve também uma mudança no sistema eleitoral, em que agora votamos com uma única cédula, ou seja, uma única folha de papel, o que torna muito mais difícil cometer fraude. O peronismo na Argentina tradicionalmente alcançava entre 5% e 10% a mais de votos por meio de fraude nas seções eleitorais sob o antigo sistema. Então, acho que eles perderam essa vantagem, o que muitas vezes significava várias cadeiras em nosso sistema eleitoral.

Outro erro que o peronismo cometeu foi separar as eleições na província de Buenos Aires das eleições para autoridades locais, como prefeitos, etc Eles as realizaram em setembro, e venceram lá. Mas os prefeitos normalmente são os responsáveis pelo voto regional, por levar as pessoas a voltarem. Mas, uma vez que o prefeito foi eleito e eles elegeram seus vereadores, eles não investem mais seu dinheiro ou sua energia nisso.

Após esta derrota, como o peronismo poderá se reorganizar? Qual poderá ser o papel de Cristina Kirchner neste processo?

O peronismo precisa começar a se reinventar. A liderança de Cristina Kirchner claramente acabou. Ela está em prisão domiciliar. Digamos que ela esteja morrendo uma espécie de morte política, uma lenta agonia.

O governador Axel Kicillof, da província de Buenos Aires, venceu as eleições de setembro, mas agora perdeu esta. Seu poder para ser o próximo líder diminuiu. Então, os peronistas deveriam primeiro buscar alguns pontos de acordo com a Milei, para dizer, vamos ver, quais pontos eles têm que ceder para ganhar mais apoio da população e quais novas lideranças podem surgir.

Nesse processo, há vários líderes peronistas que, como dizemos na Argentina, serão punidos. E esse processo vai levar tempo. Acho que o peronismo nunca deve ser descartado. Lembro que em 1983, quando venceu [o presidente] Raúl Alfonsín, muitas pessoas disseram que o peronismo estava morto. E aqui estamos, 42 anos depois, e ainda nos perguntamos se o peronismo morreu. Então, temos que ter um pouco de cuidado com isso. Mas o peronismo, em sua fase kirchnerista, acho que chegou ao fim.

Do lado de Milei, quais foram seus erros?

Ele poderia ter se saído muito melhor se, um ano atrás, tivesse proposto uma política de alianças e de fazer amigos. Ele passou muito tempo brigando com todos, e isso lhe custou caro. Olhando para os resultados das eleições, Milei garantiu seu poder de veto porque, digamos, ele terá representantes suficientes nas câmaras para impedir que as câmaras tenham dois terços dos votos para anular seu veto, mas isso não garantiu a governabilidade de ter maioria para aprovar leis.

Portanto, o verdadeiro desafio para Milei começa agora, buscando formar alianças com outros setores para garantir os votos necessários para aprovar leis, especialmente nas três áreas-chave que seu programa precisa para ter sucesso.

Quais são estas áreas?

Uma delas é a mudança nas leis trabalhistas que permite que as pessoas encontrem emprego. A Argentina não cria um único emprego formal no setor privado há mais de 10 anos. Em segundo lugar, a reforma tributária, que não envolve apenas a redução de impostos, mas também tornar mais clara a relação entre a nação e as províncias.

A Argentina tem um sistema federal, em que a principal arrecadação é feita pelo governo nacional, especialmente por meio do imposto sobre valor agregado (IVA) e depois tem que distribuí-la às províncias para que elas gastem. Portanto, as províncias não são tanto responsáveis por obter fundos, mas apenas por gastá-los.

Além disso, à medida que o governo federal reduz impostos, as províncias inventam impostos provinciais. Esse será um primeiro teste muito importante para chegar a um acordo com os governadores para mudar a situação fiscal da Argentina. A Argentina tem uma carga tributária muito alta.

E a terceira questão é uma reforma previdenciária do sistema previdenciário. Há dezessete anos, o peronismo desmantelou o sistema de associação de fundos de pensão, chamado AFP, em favor do modelo chileno. Eles mudaram todo o sistema para um sistema público de solidariedade, ou seja, um sistema de repartição, mas ele está basicamente quebrado e depende de verbas vindas dos impostos, pois não tem verbas próprias.

E assim, a Argentina tem uma grande crise no sistema previdenciário que precisa ser resolvida. A Argentina precisa dos três, porque eles estão de alguma forma relacionados entre si.

Como vê as chances de aprovação das reformas?

Milei precisará de maioria nas Câmaras de Deputados e Senadores e, para isso, precisará de uma aliança, especialmente com deputados e senadores que respondam aos governadores provinciais. O próprio Donald Trump, quando apoiou Milei com seus US$ 20 bilhões em swaps e a compra de pesos pelo Tesouro, disse a ele que, em troca ele tinha que conseguir duas coisas: ter um bom desempenho nas eleições, o que ele conseguiu, mas também que tinha que começar a trabalhar em aliança com os governadores.

Em geral, os governadores tiveram um desempenho ruim nas eleições.
Então, estão em posição mais fraca, e acho bastante viável que possa haver algum tipo de aliança. Mas Milei não tem sido um político habilidoso nesse sentido até agora. Ei, ele briga com todo mundo, até com seu próprio povo.

Milei deverá fazer mudanças em seu governo após a eleição?

O modelo presidencial latino-americano normalmente faz coalizões pré-eleitorais. Os partidos se unem nas eleições para obter mais votos. No modelo parlamentar europeu, cada partido obtém um certo número de votos e então negocia um acordo programático. Não seria estranho se mudássemos para uma versão um pouco mais europeia.

As negociações com os governadores poderão incluir algumas mudanças em seu gabinete. Há pelo menos dois ou três mudanças de ministros que já são conhecidas. O Ministro das Relações Exteriores renunciou. Há dois ministros que se tornaram senadores, Patricia Bullrich (Segurança Pública) e Luís Petri (Defesa). Então, ele tem uma série de oportunidades para definir alianças deste tipo.

Se, ao contrário, ele escolher ter ministros do seu próprio partido e com uma linha econômica muito dura, acho que será mais difícil ter sucesso.

Em que outros pontos devemos prestar atenção nos próximos meses?

A construção política da aliança que apoia Milei será uma questão importante: como eles se organizam e quem aparece como possíveis sucessores da Milei.

Outro aspecto é que Milei teve vários problemas legais com a questão das criptomoedas, incluindo propinas, etc. Não acho que isso vá acabar; quero dizer, uma eleição não define um processo judicial. Claramente, esses processos vão perder força, mas ainda estarão lá por um tempo.

Outra coisa que todos estarão observando é se, agora que esse resultado ocorreu, investimentos estrangeiros significativos começarão a aparecer na Argentina. Temos um regime RIGI para grandes investimentos, Será fundamental ver se esses investimentos começarão a aparecer de fato.

E certamente nas, várias províncias e distritos, começará um processo de busca por novos líderes. Em dois anos, o governador de Chubut não poderá mais ser governador, assim como Kicillof, de Buenos Aires. O prefeito de Buenos Aires, Jorge Macri, primo de Mauricio Macri, não está tendo muito sucesso. Veremos uma série de processos locais que começarão.

Acompanhe tudo sobre:ArgentinaJavier MileiCristina Kirchner

Mais de Mundo

Furacão Melissa: tempestade atinge Jamaica com ventos de 280 km/h

'Nova era de ouro': Trump e Japão anunciam acordo sobre terras raras

Gigante russa do petróleo planeja vender ativos após sanções

Venezuela avalia como 'positivo' Lula tentar mediar crise com EUA