Carregamento de comida enviada pelos EUA em Kalehe, na República Democrática do Congo, em 2023 (Gali Nkinzo/WFP/Divulgação)
Repórter de macroeconomia
Publicado em 29 de junho de 2025 às 08h05.
Ribeirão Preto, São Paulo* - No começo deste ano, entidades internacionais foram surpreendidas por uma mudança vinda dos Estados Unidos. O presidente Donald Trump decidiu reduzir drasticamente a ajuda internacional dada pelo país e praticamente fechar sua agência de apoio a outros países, a Usaid.
Com isso, entidades como a ONU, que realiza diversos programas sociais em países pobres e depende do financiamento dos países ricos para isso, tiveram de lidar com dois desafios: de um lado, encerrar programas que eram custeados com dinheiro americano. De outro, lidar com maiores questionamentos vindos de outros doadores.
"Não são apenas os Estados Unidos que questionam o valor de seus investimentos em uma instituição como as Nações Unidas", disse Beth Bechdol, vice-diretora geral da FAO, em entrevista à EXAME. Ela veio ao Brasil para participar da Ifama World Conference, em Ribeirão Preto, interior de São Paulo.
"Cada vez mais, muitos de nossos doadores tradicionais, do Norte Global, os países da OCDE, estão vivenciando o mesmo tipo de reflexão. Como esse investimento em um programa da FAO na Somália pode beneficiar meu país? Como meu agricultor e meu consumidor são beneficiados? Como meu consumidor é beneficiado?", afirmou.
Beth Bechdol, vice-diretora da FAO, durante o Ifama World Conference 2025 (Divulgação)
Neste ano, os Estados Unidos reduziram os gastos em ajuda internacional, sobretudo ao praticamente fechar a agência Usaid. Como isso tem impactado o trabalho da FAO?
Como muitos outros no sistema da ONU, fomos impactados pelos cortes de financiamento vindos dos Estados Unidos e o que agora podemos chamar oficialmente de desmantelamento da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (Usaid). Em janeiro, quando esta ordem executiva dos EUA entrou em vigor para reduzir a assistência externa, a FAO tinha mais de 125 projetos em todo o mundo apoiados por financiamento da Usaid, e quase 100 deles foram encerrados. Trabalhamos incansavelmente nos últimos três meses para encerrar alguns programas e projetos que considero bastante importantes. Além disso, o corte atrapalha a prestação de suporte técnico e assistência aos agricultores em muitos países ao redor do mundo, algo que a FAO tem conseguido fazer.
Outros países também estão cortando recursos para a área?
Não são apenas os Estados Unidos que questionam o valor de seus investimentos em uma instituição como as Nações Unidas. Viajo para muitos outros países porque supervisiono nossa mobilização de recursos e arrecadação de fundos. Cada vez mais, muitos de nossos doadores tradicionais, do Norte Global, os países da OCDE, estão vivenciando o mesmo tipo de reflexão. Como esse investimento em um programa da FAO na Somália pode beneficiar meu país? Como meu agricultor e meu consumidor são beneficiados? Como meu consumidor é beneficiado?
Como isso tem mudado a postura da ONU?
Muitos na ONU precisam lembrar que cada dólar dado a nós por um governo nacional, é um dólar do cidadão, do contribuinte. Talvez tenhamos ficado um pouco confortáveis demais em esperar, ano após ano, que o mesmo nível de apoio continuasse a chegar ao nosso trabalho. Da perspectiva da FAO, estamos respirando fundo, encarando a mudança e o ritmo, mas tentando refletir sobre como podemos garantir que os cidadãos dos países que apoiam a ONU e a FAO vejam o valor do seu investimento. Que eles entendam que a FAO está trabalhando em todo o mundo para garantir que os padrões de segurança alimentar sejam elevados ao mais alto nível, e que isso é bom para os consumidores e agricultores do mundo todo.
Como a atuação da FAO beneficia os americanos e outros países desenvolvidos?
Lidamos com muitos dados e análises. Quando temos as informações certas em mãos, isso permite que os agricultores tomem as decisões certas e que os formuladores de políticas entendam o que está acontecendo no mundo. Quando prestamos assistência emergencial a agricultores na Somália, no Sudão, no Iêmen ou em outros países que estão em conflito, talvez haja maneiras de, mantendo as pessoas envolvidas na agricultura, desencorajá-las a sair de seus países e cruzar fronteiras. Precisamos demonstrar aos nossos parceiros e doadores a importância de nossa proposta de valor.
A senhora também tem falado sobre a importância das mulheres na agricultura. Quais são os principais desafios que elas enfrentam no setor?
Globalmente, as mulheres representam cerca de 36% de todo o sistema agroalimentar, da força de trabalho. Mas quando você vai para continentes como a África, ou para uma região como o Sudeste Asiático, esses números podem chegar a 60 a 70% de toda a economia agrícola sendo sustentada por mulheres. No entanto, para cada dólar ganho por homens, as mulheres ganham apenas 82 centavos.
Quais são as razões desta disparidade?
Elas têm obstáculos muito significativos no acesso à terra. Muitas vezes, as leis de propriedade da terra e os direitos de posse em certos países são muito proibitivos para as mulheres, impedindo-as de construir e desenvolver seus próprios negócios. O acesso a financiamento e capital costuma ser difícil para elas. Muitas vezes, também falta o acesso à tecnologia.
Temos um problema atual no mundo de forte alta no preço dos alimentos. Quais são as estratégias da FAO para lidar com a questão?
O desafio em torno dos preços atuais vem das tensões entre oferta e demanda. Vivemos em um momento cada vez mais volátil, desde o que vimos em decorrência da Covid e o aumento nos preços das commodities que ocorreu naquela época. Há países que estão experimentando suas próprias restrições nacionais às exportações, tentando se distanciar um pouco do comércio global. Na FAO, estamos constantemente defendendo que os mercados permaneçam abertos. Os produtos alimentícios e agrícolas precisam permanecer no mercado para garantir que não criemos pressão extra sobre os alimentos.
O problema é mais de falta de alimentos ou de distribuição?
Não é um problema de disponibilidade de alimentos. É de acessibilidade e de preço. Precisamos encontrar maneiras de manter os mercados de commodities funcionando e de incentivar uma produção mais localizada em algumas partes do mundo. Isso está chegando com novos programas em torno de diferentes sementes, tentando nos afastar das tradicionais seis a sete commodities básicas que compõem algo como 80% do que é produzido e consumido no mundo. Realmente precisamos tentar diversificar em um nível mais local e regional, especialmente na África, onde precisamos aumentar a produtividade.
A estratégia, então, inclui estimular os aumentos da circulação internacional de mercadorias e a produção local?
Sim. E também precisamos priorizar mais o comércio intra-regional. Muito foco tem sido dado ao cenário do comércio global, mas incentivar a produção localizada, o comércio inter-regional e trazer uma abordagem mais sistêmica aos setores agrícolas será uma grande parte da estratégia de como chegara um sistema mais resiliente e eficiente.
Qual o papel do Brasil neste processo?
O governo do Brasil aborda a segurança alimentar e a disponibilidade de alimentos, pensando na pobreza e na fome, porque isso é uma parte tão importante para o sistema alimentar quanto o aumento da produtividade e os avanços tecnológicos. A FAO, como parte das Nações Unidas, é muito parecida com a Assembleia Geral da ONU. Temos 194 membros, dos quais o Brasil é um. Mesmo baseada em nossa sede em Roma, vejo uma tremenda liderança do Brasil no trabalho que fazemos. Não há um modelo que sirva para todos na agricultura. Tem o pequeno agricultor, um camponês, alguém de uma comunidade indígena ou uma grande empresa agrícola, muito modernizada, muito comercial. O Brasil tem todos esses setores, o que o torna o país único. Há também os compromissos para tentar encontrar um equilíbrio entre produção agrícola, agrofloresta e pecuária sustentável. Esta também é uma característica marcante. Nem todos os outros países do mundo têm esse tipo de dinâmica em que você tenta encontrar o caminho com foco ambiental e atenção aos impactos climáticos.
O Brasil sediará a reunião do Brics e a COP30 este ano. Como o país poderá avançar a pauta da segurança alimentar nestes eventos?
Esperamos ver uma liderança e um comprometimento mais contínuo no cenário global por parte do Brasil, para realmente se destacar e não apenas demonstrar seu conhecimento técnico e seus compromissos com políticas nacionais, mas continuar a pressionar outros países a demonstrar o mesmo comprometimento. Muito disso vem do lançamento da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. É realmente construir algo que seja um compromisso global com um conjunto compartilhado de práticas. Espero que esse mesmo tipo de impulso chegue à Cúpula do Brics.
Quais ações o país poderia fazer na prática?
O Brasil é um parceiro muito significativo da FAO na captação de conhecimento e recursos que vêm do Sul Global. Em alguns casos, poderia misturar isso com tecnologia, pesquisa, inovação ou capacidade técnica do Norte Global e, por fim, transmitir isso para um programa de agricultores na África ou no Sudeste Asiático, por exemplo. Tem muita gente falando sobre déficits de financiamento. A FAO reconhece que nem sempre precisa ser apoio financeiro. Há uma necessidade enorme de conhecimento técnico, de projetos, de treinamento prático para agricultores e de bons modelos de políticas.
*O repórter viajou a convite da organização do Ifama World Conference.