Busca pelo ouro por conta da crise financeira tem ligação com as mortes na Nigéria (Luis Roberto Nogueira/Arquivo)
Da Redação
Publicado em 28 de dezembro de 2010 às 06h42.
Paris - A febre do ouro levou morte ao clã de nove famílias de Umoru Musa em Sunke, um vilarejo de casebres de barro ao norte da Nigéria.
Cinco das 25 crianças, incluindo a filha de menos de um ano de Musa, Nafisa, morreram em maio após moradores terem triturado minério trazido de montanhas próximas, sem saber que o material estava contaminado com chumbo. A alta dos preços do ouro prometia uma pequena fortuna a essas pessoas. Em vez disso, elas ajudaram a deflagrar a crise de envenenamento por chumbo mais mortífera da história da medicina moderna.
À medida que os adultos trituravam as pedras, eles espalhavam poeira de chumbo no chão onde as crianças brincavam e as aves ciscavam. Eles ainda despejaram mais quantidade do veneno, em altas doses, na área do poço comunitário, que foi usado para lavar o minério para fazer a separação do ouro.
“Esse ouro nos custou muito”, Musa, 40 anos, disse no quintal da casa dele no mês passado, enquanto uma equipe de limpeza com máscaras respiratórias brancas retirava terra carregada de chumbo. “Nada que Deus possa nos dar é melhor do que um ser humano.”
Pelo menos 284 crianças com menos de cinco anos morreram envenenadas por chumbo em oito vilarejos do Estado de Zamfara devido à mineração em pequena escala de ouro, de acordo com autoridades do governo nigeriano. Outras 742 crianças estão em tratamento contra níveis elevados de chumbo no sangue, um número que pode chegar a 3.000 até o fim do ano que vem, de acordo com os Médicos Sem Fronteiras.
Lesão cerebral
Os efeitos do envenenamento por chumbo, incluindo lesão cerebral e abortos espontâneos, vão castigar a região por anos, disse Joseph Graziano, professor de saúde ambiental da Escola Mailman de Saúde Pública da Universidade Columbia, em Nova York.
As mortes são consequência de uma corrida ao ouro do século 21. Os moradores dos vilarejos passaram a se dedicar em massa ao garimpo nos últimos dois anos, convencidos pelas visitas frequentes de intermediários que compram o metal. Nesse período, o preço do ouro saltou 58 por cento no mercado londrino, com investidores buscando proteção em meio à crise financeira. A onça do metal chegou ao valor recorde de US$ 1.431,25 em Londres em 7 de dezembro.
Na Nigéria, o solo em 29 vilarejos apresentou níveis de chumbo perigosos para crianças, de acordo com testes preliminares dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, ou CDC, pela sigla em inglês. A crise é “sem precedentes” pelo número de mortes e pela quantidade de chumbo encontrada nas crianças, de acordo com o CDC, sediado em Altanta, que ajudou a estabelecer unidades de teste e tratamento na região. Em alguns casos, a quantidade de chumbo medida era 15 vezes maior do que o nível para o qual se recomenda tratamento imediato, segundo os Médicos Sem Fronteiras, uma organização humanitária internacional também conhecida pela sigla MSF.
‘Novidade mórbida’
“Estou perplexo em saber que há uma epidemia dessa gravidade e magnitude numa época em que o envenenamento por chumbo no mundo desenvolvido está realmente diminuindo”, disse Graziano, que junto com dois colegas descobriu o medicamento que trata o envenenamento por chumbo e está sendo usado agora na Nigéria. “É uma novidade mórbida, na qual gente pobre que tenta encontrar uma fonte de renda acaba se deparando com essa exposição maciça.”
Em junho, o governo federal da Nigéria proibiu todo tipo de mineração em Zamfara, que fica numa área muçulmana, no nordeste do país.
O Instituto Blacksmith, uma instituição de caridade com sede em Nova York que trabalha nos esforços de descontaminação, tem um orçamento aproximado de US$ 950.000 para o projeto, a maior parte vinda do Fundo das Nações Unidas para a Infância, a Unicef, disse John Keith, chefe de operações do Blacksmith na Nigéria.
Descontaminação cara
O Blacksmith tenta levantar outros US$ 2 milhões para estender os esforços a mais vilarejos contaminados e oferecer treinamento de longo prazo para ajudar agências nigerianas a lidar com os problemas.
“Seria uma resposta gentil e apropriada se as pessoas que lucraram tanto com essa corrida tentassem devolver um pouco”, disse Richard Fuller, presidente do Blacksmith. Os mineradores de pequena escala da Nigéria “só estão tentando sair da mais absoluta pobreza e a mineração artesanal é uma das melhores formas de se aprimorar o desenvolvimento econômico local no mundo inteiro”, disse ele.
Em Sunke, o vilarejo de casebres de barro onde a menina de um ano morreu, o pai dela, Musa, disse que aprendeu a triturar minério para extrair ouro em um vilarejo próximo, Dareta. Lá, os moradores ganharam dinheiro suficiente para instalar tetos de metal corrugado em 36 casas, substituindo a palha ou argila, impedindo que as chuvas destruíssem as paredes de barro todos os anos.
US$ 100 por dia
Logo Musa estava na ativa, comprando sacos de 50 quilos de minério para processar perto de casa. A família podia ganhar o equivalente a US$ 100 num dia de sorte, triturando e processando cinco sacas.
Musa viajava três horas de motocicleta até a capital de Zamfara, Gusau, para vender o composto de ouro aos atravessadores. Ele conseguiu dinheiro suficiente para comprar um teto de metal, uma motocicleta e vacas.
Musa disse que, alguns meses depois, percebeu que galinhas e patinhos que ciscavam perto do local onde o minério era triturado estavam desaparecendo. Depois, Nafisa, sua filha de nove meses, ficou gravemente doente, com convulsões fortes. Ela morreu em questão de dias. Quatro outras crianças logo apresentaram sintomas parecidos e morreram dentro de aproximadamente uma semana, disse ele.
A causa das mortes era um mistério e Musa continuou garimpando ouro, mesmo tomado de tristeza.
“Era muito quieto, muito doloroso”, disse Musa no dialeto hausa. “Enquanto eu triturava as pedras, meu coração às vezes doía tanto que minha cabeça começava a pulsar e eu tinha de parar.”
Encerrando
Musa disse que encerrou o trabalho quando os médicos relacionaram as mortes ao garimpo de ouro. A equipe de limpeza descobriu que o chão em volta do poço continha 100 vezes mais chumbo do que o limite definido nos Estados Unidos para áreas públicas, como parquinhos para crianças.
“Só moemos grãos agora”, disse Musa, apontando para o moedor azul, ligado a um gerador do lado de fora de sua casa.
O garimpo de ouro em pequena escala emprega 10 milhões de pessoas em todo o mundo, de acordo com Kevin Telmer, professor associado da Universidade de Victoria, no Canadá, e diretor- executivo do Conselho de Ouro Artesanal.
Para a maioria delas “essa é a melhor chance de escapar da pobreza”, disse ele.
Os garimpeiros começam socando as pedras em um pilão e depois passam à moagem. A areia que resulta desse processo é lavada é lavada para remover as partículas mais leves. Os garimpeiros como Musa, de Sunke, usam então o mercúrio para extrair o ouro.
‘Situações de desespero’
Os riscos à saúde vêm normalmente do mercúrio, que pode causar dano ao sistema nervoso central, segundo conclusões do Projeto Mundial de Mercúrio das Nações Unidas.
Telmer descreveu a crise em Zamfara como a “tempestade perfeita”: mineradores pobres trabalhando com minério tóxico em casa e usando um processo de trituração a seco que espalha a poeira tóxica.
Quando os preços sobem, não importa a commodity, as pessoas começam a entrar em áreas que normalmente não seriam economicamente viáveis, disse Ian von Lindern, presidente da TerraGraphics Environmental Engineering Inc., uma consultoria do estado americano de Idaho que está dando orientação técnica ao trabalho de descontaminação.
“Em muitos casos, a situação é de desespero”, disse ele.
O governo estadual de Zamfara pede que a proibição ao garimpo seja suspensa. É impossível impedir que as pessoas que se acostumaram a um novo modo de vida parem de garimpar, de acordo com Alhaji Sadiq Abubakar, assessor especial do governador de Zamfara. É melhor educá-los sobre como garimpar de forma segura, disse ele.
Filho de Kulu
Kulu Rabiu viu outras mulheres ganharem dinheiro triturando pedras no vilarejo de Tungar Daji antes de começar a encomendar sacos para ela própria em fevereiro. Ela podia ganhar 500 nairas, ou US$ 3,23, por três dias de trabalho - mais dinheiro do que ela já ganhou na vida, disse.
Agora seu filho de 2 anos, Imrana, mostra sinais de lesão cerebral permanente: ele chora, morde a bate na mãe, segundo profissionais dos MSF que tratam o menino num hospital em Anka.
Ele ficou doente em maio, chorando sem parar à noite. Em julho, quando os sintomas pioraram, a temporada de chuvas causou enchentes, que fecharam as estradas para o hospital.
Observando os sintomas
“Ele era um garoto que não parava, tão ativo, agora ele só fica deitado”, Kulu, 30 anos, disse enquanto passava a mão na cabeça do filho, que dormia a seu lado num colchão do hospital. “Mesmo se ele viver, o que vai fazer? Ele não pode andar nem pensar direito.” Rabiu teve alta recentemente e está em tratamento em casa, segundo os MSF.
Durante uma viagem para estimular a vacinação contra meningite na região, médicos dos MSF ficaram assustados quando se depararam com os sintomas de profundo envenenamento por chumbo em março. A Nigéria tem uma alta taxa de mortalidade infantil, causada por doenças como malária, meningite e sarampo. Cerca de 186 crianças em cada 1.000 morrem no país antes dos cinco anos, em comparação com 8 nos Estados Unidos, de acordo com dados da Unicef de 2008.
No primeiro dia do Dr. Anyaji Prince Chinedu num posto na cidade de Yargalma, cinco famílias trouxeram crianças pequenas com convulsões e vômito. Ele e uma única enfermeira só podiam cuidar de uma criança por vez. Algumas ficaram inconscientes enquanto esperavam pelo exame e uma morreu, disse Chinedu.
O médico, que se formou em medicina há dois anos, voltou à base dos MSF em Gusau naquela noite com a sensação de impotência e caiu no choro ao falar com seu supervisor, disse.
Processo de limpeza
“Por favor não me mandem pra lá de novo”, ele se lembra de dizer. “A cena é horrível. Todas são crianças muito pequenas.”
Chinedu voltou e agora está tratando de crianças contaminadas pelo chumbo num hospital em Anka.
Até o fim de janeiro, será completada a limpeza de sete vilarejos, segundo Keith, do Blacksmith. Mas mesmo se todo o chumbo puder ser removido, problemas de saúde vão castigar as comunidades por anos a fio, disse ele.
Quando as meninas que hoje têm entre 6 e 15 anos casarem e ficarem grávidas, o corpo delas vai liberar chumbo armazenado da mesma forma que o cálcio nos ossos, provocando abortos, e as crianças expostas a níveis tão elevados de chumbo terão algum grau de redução na função cerebral, Graziano disse.
“Sabemos que eles ficarão permanentemente prejudicados”, disse ele.