Mundo

Convenção oficializa candidatura Biden e expõe divisões do partido

A segunda noite da convenção nacional democrata foi marcada pela participação do ex-presidente Bill Clinton e novas críticas ao governo Trump

Biden no segundo dia da Convenção Democrata, 2020 (Brian Snyder/Reuters/Bloomberg/Getty Images)

Biden no segundo dia da Convenção Democrata, 2020 (Brian Snyder/Reuters/Bloomberg/Getty Images)

Isabela Rovaroto

Isabela Rovaroto

Publicado em 19 de agosto de 2020 às 06h27.

Última atualização em 19 de agosto de 2020 às 06h31.

A segunda noite da convenção nacional democrata indicou formalmente Joe Biden como o candidato do partido à Presidência e, com o tema oficial “Liderança”, mais uma vez enumerou uma longa lista de ocasiões em que essa qualidade fez falta no governo de Donald Trump. Mas a programação de terça-feira não se concentrou somente no adversário. Ela também serviu para apresentar aos americanos a possível primeira-dama, Jill, e expôs divisões latentes entre o mainstream e a ala esquerdista do partido,

Sally Yates, ministra da Justiça interina na transição entre os governos Obama e Trump, foi a primeira a discursar e deu o tom dos ataques da noite. “Em 10 dias, fui demitida por me recusar a defender a vergonhosa e ilegal proibição de viagens [de cidadãos de sete países muçulmanos]”, disse Yates. “Trump usa o ministério da Justiça para obter ganhos pessoais. Ele trata o pais como o negócio da família. Mas nosso país não pertence a ele, pertence a todos nós.”

Na sequência, sobre uma montagem de cenas de Biden, o ex-presidente Jimmy Carter e sua mulher, Rosalyn, declararam seu apoio. Na sequência, veio um dos pesos-pesados mais controversos entre os democratas: Bill Clinton.

Clinton abriu sua fala atacando a ética de trabalho de Trump: “Você tem de decidir se renova o contrato [de Trump] ou contrata outra pessoa. Se quiser alguém que passa horas vendo TV ou criticando os outros nas redes sociais, [Trump] é o cara”.

O ex-presidente também criticou a condução da crise de saúde pública e a falta de empatia de Trump pelas mais de 170.000 vítimas de Covid-19 até aqui, lembrando a frase “É o que é” dita por Trump quando questionado sobre o número de mortes no país.

Clinton então passou a listar algumas das propostas de Biden – algo que não costuma se ver no horário nobre das convenções, mais dedicadas a inflamar a militância e cristalizar a imagem pública do candidato.

Falando de política externa, o ex-secretário de Estado John Kerry lembrou que Trump abandonou dois acordos internacionais costurados durante o governo Obama: um para evitar que o Irã construa armas nucleares, outro para conter a mudança climática, o Acordo de Paris. “[Trump] rompe como nossos aliados e manda cartas de amor para ditadores. Os Estados Unidos precisam de um presidente que seja admirado, não motivo de piada”, afirmou Kerry.

Colin Powell, ex-secretário de Estado e ex-chefe do Estado Maior das Forças Armadas, foi mais um republicano a aparecer entre os democratas. Em vez de criticar o presidente, Powell fez elogios à experiência internacional de Biden e aos seus valores, “muito parecidos com os meus”. “Apoio Joe Biden porque ele vai restaurar as alianças de que precisamos para lidar com os perigos que ameaçam nosso país, da mudança climática à proliferação nuclear.”

Agora é oficial

Na noite de ontem também foi realizada a oficialização da candidatura de Joe Biden. Normalmente, essa é uma das partes mais ruidosas das convenções: os representantes estaduais vão ao microfone e fazem discursos exaltando seus estados e divulgando a contagem de delegados atribuída pelas primárias. Ontem, em vídeo, o clima foi menos festivo.

A pessoa escolhida para apresentar o nome de Biden foi Jacquelyn Brittany, segurança que trabalha no prédio do New York Times. Em dezembro passado, o candidato estava a caminho de uma entrevista com o conselho editorial do jornal quando a encontrou num elevador.

Ela disse a Biden: “Eu te amo. É verdade. Você é tipo meu favorito”. O candidato então perguntou se ela tinha um celular e tirou uma selfie com a ascensorista. O momento foi registrado em vídeo e viralizou nas redes sociais.

A escolha de Jacquelyn tinha um subtexto claro: mostrar Biden como um sujeito acessível e afável, que gosta de conversar com toda e qualquer pessoa, especialmente se ela for da classe trabalhadora.

“Levo muita gente poderosa no meu elevador. Quando elas descem, vão para suas reuniões importantes. Eu? Volto para o térreo. No curto tempo que estive com Joe Biden, percebi que ele realmente me viu, que minha vida significava alguma coisa para ela”, disse Jacquelyn. “É por isso que indico meu amigo Joe Biden.”

Caracterizar Biden como um político capaz de empatia e atento às dificuldades do cidadão médio é uma das principais armas da formação de imagem do candidato – o oposto da inépcia de Donald Trump em ocasiões sociais.

Jill Biden fechou a noite falando do marido. Ela era recém-divorciada quando eles se conheceram; Biden, que perdera a mulher e uma filha num acidente de carro três anos antes, tinha dois filhos.

As mortes na família imediata (ele também perdeu um dos filhos, Beau, morto de câncer em 2015) são uma constante nas falas públicas de Biden e em suas interações com os eleitores.

Com os Estados Unidos se aproximando de 200 000 famílias que perderam pessoas queridas para o coronavírus, esse lado certamente será explorado à exaustão na campanha.

Jill Biden começou seu discurso caminhando pelos corredores da escola onde deu aulas de inglês para crianças na cidade de Wilmington, em Delaware, até chegar a uma sala de aula, de onde falou ao vivo.

“Este silêncio pesa. Você consegue ouvir o eco da ansiedade nos corredores vazios. Os rostos das crianças que deveriam encher as salas estão confinados a caixas, em uma tela de computador”, disse Jill Biden, a respeito da interrupção das aulas causada pela pandemia.

A apresentação ao grande público de Jill Biden – descrita no vídeo como uma mulher determinada, uma avó brincalhona e uma corredora contumaz, também representa um contraste marcante com Melania Trump, que pouco apareceu em público e de cuja vida pessoal sabe-se muito pouco.

 Passado e futuro

Um dos temas implícitos da noite de ontem foi a tentativa de estabelecer uma ponte entre os nomes do passado e uma nova geração de políticos que desponta no cenário nacional.

A programação começou com uma montagem de 17 novos rostos democratas. O formato foi uma espécie de jogral por videoconferência. Em tempos normais, um único nome seria escolhido para brilhar no palco da convenção, como aconteceu com Barack Obama em 2004.

Além de apresentar ao país políticos desconhecidos do grande público, o vídeo também teve o objetivo de mostrar diversidade: entre os retratados havia americanos nativos, negros, latinos, mulheres e um deputado abertamente gay.

Mas maior das estrelas ascendentes não participou da montagem.

Alexandria-Ocasio Cortez, 30, a deputada nova-iorquina que representa a esquerda do partido, apareceu mais tarde, apresentando Bernie Sanders na formalização da candidatura Biden.

A deputada Alexandria Ocasio-Cortez, de Nova York: participação de apenas 60 segundos na convenção democrata foi criticada por apoiadores (Brian Snyder/Reuters/Bloomberg/Getty Images)

Biden foi o vencedor das primárias, mas Sanders, o segundo colocado, fez questão de que fossem anunciados os delegados que ele conquistou na disputa interna do partido.

Ocasio-Cortez falou do apoio expressivo às ideias de Sanders, que ela descreveu como um “movimento do século 21 para garantir direitos sociais, econômicos e humanos” para todos os americanos.

O problema – para uma parcela expressiva do partido -- é que Ocasio-Cortez (ou AOC, como ela é conhecida) esteve na tela durante meros 60 segundos. Quando foi anunciada a participação relâmpago de AOC, seus apoiadores (ela conta com mais de 15 milhões de seguidores nas redes sociais) protestaram.

E não foram só os fãs de AOC, como é conhecida a deputada, que ficaram decepcionados. Uma pesquisa do instituto YouGov apontou que 63% dos eleitores democratas queriam ouvi-la na convenção. AOC é um fenômeno nacional, e sua influência será sentida por muitos anos pelo Partido Democrata.

Lidar com essa ala “socialista” – hoje encabeçada por Bernie Sanders cuja sucessora natural é Ocasio-Cortez – será um desafio para Biden caso ele seja eleito presidente.

Diversas lideranças que defendem a reforma do sistema de saúde e o combate à desigualdade econômica, por exemplo, estão do lado do candidato para derrotar Trump. Quando e se Biden estiver na Casa Branca, a história deve ser diferente.

Além do risco de alienação de uma corrente cada vez mais relevante dentro do partido, os democratas podem ter desperdiçado a chance de exibir um discurso memorável – mas ninguém duvida que o nome de Alexandria Ocasio-Cortez ainda será muito ouvido no futuro próximo.

 

 

Acompanhe tudo sobre:Eleições americanasJoe BidenPartido Democrata (EUA)

Mais de Mundo

Mercosul precisa de "injeção de dinamismo", diz opositor Orsi após votar no Uruguai

Governista Álvaro Delgado diz querer unidade nacional no Uruguai: "Presidente de todos"

Equipe de Trump já quer começar a trabalhar em 'acordo' sobre a Ucrânia

Irã manterá diálogos sobre seu programa nuclear com França, Alemanha e Reino Unido