O presidente chinês Xi Jinping e o brasileiro Jair Bolsonaro: Brasil fica no meio da guerra comercial chinesa com os EUA (Alan Santos/PR/Divulgação)
Carolina Riveira
Publicado em 17 de novembro de 2020 às 14h10.
Última atualização em 17 de novembro de 2020 às 20h54.
A China e outros 14 países da região do Pacífico asiático fecharam neste domingo, 15, o que é até agora o maior acordo comercial do mundo. O acordo de livre comércio foi batizado de Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP na sigla em inglês). O bloco comercial abrange um mercado de 2,2 bilhões de pessoas e 26 trilhões de dólares, ou um terço do PIB global.
Ainda deve demorar anos para que a aliança altere amplamente o comércio global, e parte dos signatários também já tinha acordos entre si. Mas o simbolismo do tratado é grande, sobretudo na guerra comercial entre Estados Unidos e China.
O Peterson Institute for International Economics (PIIE), nos EUA, estimou em relatório de junho (e com números de antes da covid-19), que o acordo aumentaria o comércio entre os membros em até 428 bilhões de dólares em 2030. Do outro lado, reduziria o comércio em até 48 bilhões de dólares para os não-membros. Em cenário de guerra comercial, o RCEP se torna "especialmente valioso" e "fortalece a independência do Leste Asiático", escrevem os economistas do PIIE.
Para o Brasil, do qual a China é a maior parceira comercial, qualquer movimentação na Ásia é sinal de atenção, diz o professor Luís Antonio Paulino, do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Unesp. Mas, a princípio, a maior integração entre a China e os vizinhos não afete as exportações tradicionais brasileiras.
"Os principais produtos que exportamos são commodities minerais e agrícolas, cujas exportações não serão afetadas por esse acordo", diz Paulino. "Mas esse amplo acordo regional de comércio tende a reforçar as cadeias regionais de suprimento da Ásia, o que pode dificultar, em perspectiva futura, o desejo do Brasil de diversificar sua pauta de exportação".
O acordo agora inclui não só os tradicionais aliados chineses (10 países já faziam parte do ASEAN, acordo asiático liderado pela China), mas países até então fora da órbita direta de influência da China e grandes parceiros americanos, como Austrália, Coreia do Sul, Nova Zelândia e Japão. A Índia, outro país importante na região e o segundo mais populoso do mundo, saiu das negociações antes do fim.
A forma como o acordo pode impactar as relações entre China e EUA, em plena guerra comercial, também afeta o Brasil, que fica no meio da disputa geopolítica.
Para o ano que vem, Paulino aponta que temas como o leilão do 5G (e a exclusão ou não da Huawei pelo Brasil) e a relação brasileira com o presidente americano eleito, Joe Biden, serão cruciais para o papel do Brasil na disputa entre as duas potências. Veja abaixo os principais trechos da entrevista.
EXAME -- A China é a maior compradora dos produtos do Brasil e de vários países da América Latina. Esse acordo, agora abrangendo países como Austrália, Japão e Coreia do Sul, impacta de alguma forma as exportações brasileiras, ou são alvos diferentes?
Professor Luís Paulino -- Não creio que haverá impactos, pelo menos a curto prazo e médio prazo. De janeiro a setembro de 2020 os principais produtos exportados para a Ásia foram: soja, minério de ferro, petróleo, carne congelada bovina, pastas químicas de madeira, açúcar e carnes e miudezas de aves. Nenhum desses produtos enfrenta concorrência local que poderia ser afetada por esse acordo.
É preciso levar em conta, contudo, que assistimos hoje, em grande parte devido aos efeitos econômicos da pandemia da covid-19, uma tendência ao encurtamento e regionalização das cadeias globais e suprimentos. Nesse sentido esse amplo acordo regional de comércio tende a reforçar as cadeias regionais de suprimento da Ásia, o que pode dificultar, em perspectiva futura, o desejo do Brasil de diversificar sua pauta de exportação para a região, incluindo produtos industrializados de maior valor agregado.
O acordo firmado ainda vai demorar um tempo até que efetivamente traga mudanças, e muitos dos países envolvidos já tinham acordos bilaterais ou multilaterais entre si. Nesse sentido, podemos afirmar que o impacto por ora é mais simbólico do que econômico?
Não creio que será apenas simbólico. Haverá efeitos reais, que poderão afetar os interesses sobretudo dos Estados Unidos e União Europeia na região. As cadeias globais de suprimento tendem a se estabelecer em áreas de livre comércio. Quanto maior a integração comercial entre os países da Ásia mais as cadeias globais de suprimentos centradas na China, Japão e Coreia do Sul tenderão a se regionalizar, em prejuízo de fornecedores de fora da área, cujas exportações podem estar sujeitas a tarifas de importação mais elevadas.
No caso específico do RCEP, serão eliminadas tarifas sobre 91% das mercadorias comercializadas entre os membros. No caso do Japão, por exemplo, o número de produtos não tarifados enviados para a Coreia do Sul aumentará de 19% para 92% e para a China de 8% para 86%. A indústria automobilista japonesa deverá ter grandes ganhos uma vez que acordo eliminará as tarifas sobre quase US$ 50 bilhões em peças automotivas enviadas para a China.
Também é preciso considerar que o aprofundamento dos laços comerciais entre a China e os outros países da Ásia e Sudeste Asiático que assinaram o acordo não deixa de ser ruim para os Estados Unidos que ficaram de fora. Certamente vai dificultar os esforços dos Estados Unidos de isolar a China na região. A Índia foi o único grande país a ficar fora do acordo, com receio de receber uma enxurrada de importações, mas pode vir a aderir no futuro.
Para os EUA, o simbolismo de ter esse acordo liderado pela China é forte. Há algum ponto em que a continuidade dessa guerra comercial sino-americana possa impactar o Brasil e a América Latina? Como o senhor vê esse cenário no governo eleito de Joe Biden?
Estados Unidos, China e América Latina formam um triângulo no qual mudanças nas relações entre dois dos vértices necessariamente afetarão o terceiro. Há aspectos nas relações Estados Unidos-China, Estados Unidos-Brasil e Brasil-China que tendem a não mudar substancialmente no governo Biden. Estados Unidos continuarão a ver e tratar a China como um competidor estratégico, o Brasil continuará a ter um papel importante para os Estados Unidos em sua relação com a América Latina e a China continuará a ser fundamental para o Brasil como seu principal parceiro comercial.
Mas há coisas que podem mudar e afetar essas relações. Caso haja uma normalização das relações comerciais entre China e Estados Unidos, isso pode afetar o Brasil, uma vez que os Estados Unidos são nosso maior competidor no fornecimento de commodities agrícolas para a China. Por outro lado, a derrota de Trump abre espaço para uma mudança da política externa brasileira uma vez que a adulação de Trump deixará de ter sentido na política externa brasileira.
Uma maior pressão dos Estados Unidos sobre o Brasil por causa da questão do meio-ambiente e direitos humanos pode obrigar o Brasil a se aproximar mais pragmaticamente da China para evitar o completo isolamento internacional. Não podemos nos esquecer que, em 2019, quando o Brasil virou alvo internacional de críticas por causa das queimadas na Amazônia, a China foi o único país a sair em defesa do Brasil. A decisão que o Brasil venha a tomar sobre a exclusão ou não da Huawei como fornecedor de equipamentos para a rede 5G brasileira será um divisor de águas nas relações Brasil-China em 2021. Nesse aspecto temos uma gama enorme de questões em aberto cujas respostas vão começar a se delinear nos próximos meses.
O Mercosul, como sabemos, está enfraquecido. Por outro lado, vemos as grandes potências globais fazendo acordos. Qual seria o papel do Mercosul nessa nova era? Seria um momento para uma unificação e fortalecimento interno da região, ou o futuro serão acordos separados entre os sul-americanos e o resto do mundo?
O principal dano da política de alinhamento automático do Brasil com os Estados Unidos implementada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro e seu ministro das relações exteriores, Ernesto Araújo, foi ter destruído o papel de liderança regional do Brasil, sobretudo na América do Sul, e levado à fragmentação política da região, permitindo assim que a América do Sul se tornasse palco de disputa entre as grandes potências extrarregionais.
Não vejo como esse quadro possa ser revertido, pelo menos no atual governo. Nem mesmo o já assinado acordo Mercosul-União Europeia dá mostras de sair do papel.
Há alguns anos tínhamos a negociação do TPP [Tratado Transpacífico] liderada pelos EUA, que não saiu do papel no governo Trump e do qual o Brasil já não fazia parte; agora, temos o RCEP liderado pela China. No geral, esses mega-acordos, inclusive envolvendo países latino-americanos (como México e Peru que estavam envolvidos no TPP), são ruins para o Mercosul e para o Brasil ou podem ser benéficos?
Não creio que uma eventual participação de países sul-americanos banhados pelo Pacífico em uma acordo comercial envolvendo os países do chamado Pacific Rim [os "círculos do Pacífico", área de países banhados pelo oceano, que não inclui o Brasil] pudesse ser prejudicial ao Brasil. Ao contrário, poderiam estimular uma maior integração regional com vistas a explorar novas oportunidades de comércio e investimento. Na área de infraestrutura, por exemplo, poderiam estimular a integração regional, sobretudo ferroviária, que poderiam criar rotas alternativas para a abastecimento da Ásia, principal destino de nossas exportações.