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Como golpe no Irã planejado por EUA e Reino Unido nos anos 1950 está na raiz do conflito atual

Derrubada de governo de premier nacionalista, mas democraticamente eleito, jogou o país em série de regimes autoritários e fincou as bases do extremismo regional

Manifestante segura foto com as imagens do líder supremo do Irã, Ali Khamenei, e do fundador da República Islâmica, aiatolá Ruhollah Khomeini (Pedro MATTEY / AFP)

Manifestante segura foto com as imagens do líder supremo do Irã, Ali Khamenei, e do fundador da República Islâmica, aiatolá Ruhollah Khomeini (Pedro MATTEY / AFP)

Agência o Globo
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Agência de notícias

Publicado em 24 de junho de 2025 às 07h24.

Última atualização em 24 de junho de 2025 às 07h24.

Nos dois dias que se seguiram ao primeiro ataque direto dos EUA ao Irã desde o estabelecimento da República Islâmica, em 1979, o outrora marginal discurso sobre a mudança de regime em Teerã parece ter saído das sombras em Washington.

Em suas redes sociais, o presidente Donald Trump ventilou a ideia no domingo, e a porta-voz da Casa Branca, Karoline Leavitt, disse na segunda-feira que se Teerã não concordar com uma “solução diplomática pacífica”, a população deveria se levantar contra as lideranças locais.

Mas ao contrário de Trump, a maioria de Gabinete evita usar uma expressão — mudança de regime — associada a atoleiros militares e fracassos estratégicos passados.

Como no caso do próprio Irã, que nos anos 1950 foi alvo de uma operação orquestrada por EUA e Reino Unido para derrubar um líder democraticamente eleito, e que plantou as sementes da instabilidade atual no Oriente Médio.

Após a turbulenta década de 1940, quando o xá Reza Pahlevi foi deposto e substituído por seu filho, Mohammed Reza, um veterano político se estabeleceu como o líder de um movimento nacionalista que tinha como prioridades avançar na democratização e na autodeterminação do Irã, Mohammad Mossadegh.

O discurso nacionalista, que inspiraria outras lideranças regionais, como Gamal Abdel Nasser, no Egito, tinha como alvo principal a empresa petrolífera estabelecida pelos britânicos, a Companhia Anglo-Iraniana de Petróleo (AIOC), vista por muitos iranianos — incluindo Mossadegh — como um mecanismo para usurpar as riquezas naturais do país.

"Essa empresa tinha os direitos exclusivos de extrair, refinar, transportar e vender petróleo iraniano. E pagava ao Irã uma quantia muito pequena. Mas, essencialmente, todo o petróleo iraniano era propriedade de uma empresa sediada na Inglaterra e controlada principalmente pelo governo britânico", afirmou em entrevista ao portal Democracy Now, em 2008, Stephen Kinzer, jornalista e autor de “Todos os Homens do Xá”.

Neste cenário, os primeiros meses de 1951 foram intensos e perigosos: em março, o então premier, Ali Razmara, foi assassinado, e a nacionalização aprovada por um Majlis (Parlamento) controlado pela Frente Nacional, de Mossadegh. Em abril, ele assumiu o posto de primeiro-ministro, e passou a ser um alvo declarado de Londres.

"Os britânicos argumentavam que a indústria petrolífera iraniana era sua propriedade privada e que Mossadegh a havia roubado deles", disse Kinzer ao Democracy Now.

"Então, a única coisa que o primeiro-ministro [Winston] Churchill conseguiu pensar foi pedir a Harry Truman, o presidente americano, que fizesse este trabalho por nós: 'Você pode, por favor, derrubar Mossadegh, porque não temos ninguém no Irã que possa fazer isso?'".

Truman disse "não", mas seu sucessor, Dwight Eisenhower, se mostrou aberto à ideia. Um dos argumentos que ajudaram a convencer Washington a se juntar aos esforços para derrubar Mossadegh era o crescimento do partido comunista, o Tudeh.

John Foster Dulles, secretário de Estado e ferrenho anticomunista, via o risco do Irã entrar na esfera de influência da União Soviética.

Naquele momento, o governo do premier se encontrava em maus lençóis. O embargo britânico ampliou os problemas econômicos, confrontos entre grupos políticos rivais eram uma rotina nas cidades, assim como tentativas de assassinato de figuras públicas.

O ápice da crise veio em agosto de 1953, quando ele convocou um referendo sobre a dissolução do Parlamento: o “Sim” venceu com quase 100% dos votos, mas a forma como o processo foi conduzido gerou críticas, inclusive de aliados, e serviu como estopim para o golpe.

Como conta Kinzer em “Todos os Homens do Rei”, Kermit Roosevelt, agente da CIA e filho do ex-presidente Theodore Roosevelt, montou, em questão de dias, uma rede dentro do Irã para apoiar o golpe, que incluiu a imprensa, militares, o clero e o próprio xá Mohammad Reza Pahlevi, filho de Reza Pahlevi. Mossadegh, que chegou a escapar em um primeiro momento, foi preso em agosto e inicialmente sentenciado à pena de morte.

Pahlevi evitou a execução, mas o premier foi colocado em prisão domiciliar até o fim de sua vida.

"Foi realmente uma lição objetiva de como é fácil para um país rico e poderoso lançar um país pobre e fraco no caos", apontou Kinzer.

"Naquele momento, isso parecia um grande sucesso. Então, nos livramos de um sujeito de quem não gostávamos e o substituímos por outro, o Xá, que faria tudo o que quiséssemos. Parecia o final perfeito".

Nas décadas seguintes, os EUA teriam no Irã um aliado fiel, e que seria um dos melhores clientes da indústria militar americana, ao lado de Israel. Mas como aponta Kinzer, os 25 anos de reinado de Pahlevi foram marcados pela dura repressão de sua polícia secreta, a Savak, por graves instabilidades sociais e pelo surgimento de uma peculiar aliança de oposição, que reunia desde os comunistas do Tudeh até lideranças religiosas, incluindo Ruhollah Khomeini.

Foi essa conjunção política que estava na linha de frente contra o Xá, no final dos anos 1970, levando à queda da dinastia Pahlevi e ao estabelecimento da República Islâmica, com Khomeini à frente. E os impactos foram muito além de um regime que reprime os direitos das mulheres, que perseguiu seus antigos aliados (como o Tudeh) e que incitou grupos armados aliados ao redor do Oriente Médio.

"Essa revolução levou ao poder uma camarilha de mulás fanaticamente antiamericanos. Essa revolução também inspirou radicais em outros países, como o vizinho Afeganistão, onde o Talibã chegou ao poder e deu abrigo à al-Qaeda com os resultados que todos conhecemos",  afirmou Kinzer ao Democracy Now.

"A instabilidade no Irã que se seguiu à revolução também levou o grande inimigo do Irã, Saddam Hussein, a invadir o Irã. Isso não apenas desencadeou uma guerra de oito anos entre o Irã e o Iraque, como também levou os Estados Unidos a um abraço de morte com Saddam".

Hoje, os chamados a uma mudança de regime trazem alguns fantasmas do final dos anos 1970. Afinal, se o sistema comandado pelo aiatolá Ali Khamenei cair, não há garantias de que o que virá pela frente será parecido com o que espera a Casa Branca ou a oposição iraniana no exílio. Um governo liderado pela Guarda Revolucionária, que já domina a economia, poderia pavimentar o caminho rumo à bomba atômica.

E como mostram outros exemplos de “mudança de regime” dos EUA, como no Iraque e Afeganistão, o “dedo” de Washington pode trazer justamente o contrário das promessas de democracia.

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