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Como combater a fome no mundo - e no Brasil?

Diretor da ONU explica como políticas públicas e outras medidas podem ser a solução para acabar com insegurança alimentar global

Daniel Balaban, da ONU: A falha do Brasil foi achar que o problema de insegurança alimentar tinha acabado. Não existe final para as políticas sociais (WFP/ONU/Divulgação)

Daniel Balaban, da ONU: A falha do Brasil foi achar que o problema de insegurança alimentar tinha acabado. Não existe final para as políticas sociais (WFP/ONU/Divulgação)

Publicado em 15 de julho de 2023 às 17h02.

Última atualização em 15 de julho de 2023 às 17h25.

A fome global permaneceu relativamente inalterada de 2021 a 2022, mas ainda está muito acima dos níveis pré-pandêmicos da COVID-19, afetando cerca de 9,2% da população mundial em 2022 em comparação com 7,9% em 2019. No total, entre 2020 e 2022, 735 milhões de pessoas passaram fome no mundo, de acordo com o relatório “O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI)”, publicado nesta semana pela ONU.

Leia mais: ONU: Crises e pandemia empurraram mais 122 milhões de pessoas para a fome

No Brasil, não foi diferente: o número de pessoas em insegurança alimentar severa passou de 4 milhões em 2014-2016 para 21,1 milhões em 2020-2022. Em percentual, o Brasil passou de 1,9% para 9,9% da população que passa fome todos os dias.

À Exame, Daniel Balaban, representante do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas no Brasil, trouxe um recorte sobre a situação do país e do mundo no combate à fome e as possíveis soluções para este problema global.

O que motivou o Brasil a chegar a 21 milhões de pessoas passando fome?

É importante compreender todo o histórico que a ONU tem sobre o Brasil. No início do século, o Brasil tinha números pavorosos, com as primeiras estatísticas entre 15 e 16% da população passando fome. Com os governos do Itamar Franco e do Fernando Henrique Cardoso, foi criado um conselho e começamos a priorizar o combate à fome no país.

Depois, com o próprio Lula, veio em 2003 a estratégia Fome Zero. Nessa época, o grande diferencial foi que o Brasil começou a colocar o combate à insegurança alimentar nutricional na pauta do dia a dia, ou seja, na pauta econômica de políticas públicas. Com essa prioridade, o Brasil conseguiu em 2014 diminuir a taxa da fome de 15% para 1,9% - com esses dados o país saiu do Mapa da Fome, ou seja, o país apresentou um índice abaixo de 3% - que são os índices dos países desenvolvidos.

Por que o desafio do combate à fome tem que ser constante?

A falha do Brasil foi achar que o problema de insegurança alimentar tinha acabado, que não teríamos mais problemas de fome e pobreza no país. O Brasil simplesmente tirou a fome da pauta do dia a dia. A partir daí os dados voltaram a se estabilizar, e não demorou muito para crescerem de novo, chegando aos números que nós temos hoje. Isso serviu como exemplo e é importante que os nossos governantes compreendam que não existe final para as políticas sociais. Elas precisam estar constantemente na pauta dos governos, para que nenhuma pessoa caia abaixo da linha da pobreza.

Eu sempre digo que se os países nórdicos praticamente não têm pobreza extrema é porque eles constantemente mantêm as suas políticas sociais. Se hoje eles pararem com elas, em poucos anos veremos fome e pobreza extrema na Noruega, na Dinamarca, no Japão e na Finlândia. Outra coisa muito importante: não é culpa da população que uma nação caia abaixo da linha da pobreza. A culpa é da estrutura econômica do país.

O Brasil ficou quanto tempo fora do Mapa da fome?

De 2014 até meados de 2020 o Brasil ficou fora do Mapa da Fome, mas a partir dos anos 2017 e 2018, o número de pessoas em situação de insegurança alimentar severa começou a crescer no país, por causa, principalmente, da crise política. Junto com a crise política, tínhamos também a crise econômica, e com isso as questões das políticas sociais saíram do orçamento público. Se você pegar os orçamentos públicos na época de 2010 a 2015, você verá que as rubricas relacionadas com as políticas sociais praticamente sumiram. Por exemplo, o programa de aquisição de alimentos, que é muito importante para o pequeno agricultor familiar, chegou a 1,5 bilhão de reais do orçamento e nos últimos anos ele não chegava a 50 milhões de reais.

Quais políticas públicas podem acabar com a fome no Brasil?

Além do programa de aquisição de alimentos, outras políticas públicas adotadas no passado podem ajudar o Brasil a sair do Mapa da Fome:

- Programa nacional de alimentação escolar: esse programa alimenta quase 40 milhões de crianças e a família fica desonerada desse alimento. E investir em políticas públicas também traz um retorno financeiro: a cada um dólar investido num programa de alimentação escolar, por exemplo, há um retorno econômico de 9 dólares para o país.

- Os aumentos acima da inflação do salário-mínimo: essa iniciativa foi importantíssima para o país sair do Mapa da Fome. As pessoas começaram a ter uma condição de renda maior e a consumir mais.

- Investimento em cisternas: esse negócio custa muito barato e ajudaria os pequenos agricultores familiares na captação de água da chuva.

Qualquer país do mundo que conseguiu sair da fome investiu muito na agricultura familiar, que é realizada por pessoas que vivem no campo, como os ribeirinhos, os quilombolas e inclusive os indígenas. É necessário apoiar essas pessoas para que elas fiquem na sua terra, onde parte da produção possa ser destinada para o consumo e a outra parte seja destinada aos mercados.

O problema é que quando eles não conseguem produzir localmente, eles vendem o seu pedacinho de terra, pega um pau de arara e vão para grandes cidades, como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Recife, sem emprego e sem formação. Esse é o drama nacional que conhecemos e temos que evitar que se repita.

Quais são as ações que o governo atual está adotando para acabar com a fome no país?

Primeiro, o governo está considerando a pauta da fome como prioridade. Segundo: o governo tem realizado algumas mudanças na estrutura da economia, como o novo marco fiscal. A aprovação da reforma tributária também foi muito importante, porque ela tende a desonerar mais os pobres. Com essas reformas, a tendência é fazer com que as pessoas tenham mais capacidade de consumir. Afinal, consumindo mais, mais as empresas vão poder vender; vendendo mais, mais empregos serão gerados.

Como a pandemia impactou nesse dado da fome no Brasil?

A pandemia impactou os dados de fome no Brasil e no mundo, mas o problema da insegurança alimentar no nosso país já estava grave antes deste episódio. Mas vale destacar que na época da pandemia, o governo teve uma boa iniciativa aumentando a renda média do brasileiro com o recurso do auxílio emergencial de R$ 600. Sem dúvida, o auxílio emergencial salvou muitas vidas. Sem ele, os dados poderiam ter sido piores. Esse cenário de crise sanitária e também econômica, mostrou que é muito importante o país estar preparado para tomar medidas fora da curva para auxiliar a população.

Quanto tempo o Brasil deve levar para sair do Mapa da Fome?

No início do século, o Brasil conseguiu em torno de 8 a 10 anos praticamente zerar a questão da insegurança alimentar nutricional em um patamar bem pior. Por isso, eu acredito que se o Brasil trabalhar intensamente, principalmente com as reformas econômicas que estão sendo feitas e com as políticas sociais, o Brasil já vai ter números expressivos de combate à insegurança alimentar severa nos próximos 3 a 4 anos.

Sobre os dados globais, é possível acabar com a fome no mundo?

É possível acabar com a fome do mundo sim, desde que o combate à fome vire uma prioridade dos governos no planeta. Infelizmente, nós estamos longe disso. Hoje, principalmente nos países europeus, a prioridade é segurança, é conflito, é guerra. Ninguém fala em acabar com a fome.

E para acabar com a fome, nós temos que ter uma união dos países desenvolvidos apoiando os países em desenvolvimento, principalmente os países africanos e os países asiáticos. Sem esse apoio, esses países não vão conseguir sair desta situação, porque eles são pobres - ao contrário do Brasil que é um país rico e tem capacidade produtiva, - muitos países do sul global não têm essa capacidade, precisam de apoio, precisam de um fortalecimento vindo do Norte.

Uma inciativa que poderia ser adotada por esse países é criar um fundo global para a fome, assim como nós temos para o clima, e colocar à disposição dos países mais pobres para que eles se financiem. Vale reforçar que esse financiamento não é para comprar comida, é para fazer investimentos em políticas internas sociais. É para apoiar a agricultura familiar, para fazer com que as pessoas tenham capacidade de investir em educação, ciência e tecnologia.

Qual país é um exemplo de combate à fome?

O Brasil no início do século é um bom exemplo, mas o país que mais conseguiu diminuir a extrema pobreza e a fome chama-se China. A China tirou 800 milhões de pessoas da miséria através de um planejamento de ações sociais - quando eles resolveram colocar como prioridade eles fizeram. A Coreia do Sul também é um bom exemplo de país que resolveu de uma vez por todas acabar com a fome. Nos anos 60 e 70 era um país extremamente pobre, mais de 60% da população vivia na pobreza. O principal movimento do país foi investir muito em políticas públicas, em educação, em ciência e tecnologia, assim eles conseguiram chegar em outro patamar.

O que estimulou a redução da fome na Ásia e na América Latina?

Principalmente, porque são os dois continentes que hoje mais investem em políticas sociais. A Ásia, principalmente com a China, conseguiu fazer políticas bem interessantes. A China sempre foi reconhecida por ter uma grande parte da sua população em extrema pobreza, mais de um bilhão de habitantes viviam em situação miséria. E eles fizeram um avanço muito forte exatamente com as políticas sociais direcionadas às populações rurais, fazendo com que elas ficassem em suas terras produzindo, vivendo, sem sair de lá.

E a América Latina também é um dos continentes que mais aposta em políticas sociais de apoio, principalmente em pequenos agricultores familiares.

Qual é a função da ONU no combate à fome?

Eu trabalho em uma agência chamada “Programa Mundial de Alimentos”, que é a maior agência humanitária das nações unidas. Essa agência atende, por exemplo, 150 milhões de pessoas ao redor do planeta todos os dias, dando comida, abrigo, água e tentando salvar vidas. Mas é óbvio que isso não é o suficiente.

O orçamento anual do programa mundial de alimentos atende 150 milhões de pessoas todos os dias no planeta, é mais ou menos 10 bilhões de dólares. E todo ano dizem que é muito dinheiro. Mas o planeta gasta todo o ano em armas e em guerras 2 trilhões e 200 bilhões de dólares do orçamento do Programa Mundial da ONU. Ou seja, o orçamento da ONU para salvar vidas é 0,45% do dinheiro usado para pagar bomba, para pagar mísseis. Parece que a prioridade do mundo não tem sido salvar vidas. Enquanto não mudarmos essa mentalidade, nunca iremos conseguir acabar com a grande desigualdade social e com a fome não apenas no Brasil, mas no mundo.

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