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Com altas taxas de violência de gênero, México vai às urnas eleger sua primeira mulher presidente

Em 2022, país foi considerado o pior para ser uma mulher na América Latina e Caribe

Montagem que mostra a candidata presidencial esquerdista mexicana Claudia Sheinbaum (à esquerda) e a candidata presidencial do partido da coalizão Fuerza y Corazón por México, Xochitl Galvez. Crédito: Alfredo ESTRELLA / AFP (Alfredo ESTRELLA / AFP/AFP)

Montagem que mostra a candidata presidencial esquerdista mexicana Claudia Sheinbaum (à esquerda) e a candidata presidencial do partido da coalizão Fuerza y Corazón por México, Xochitl Galvez. Crédito: Alfredo ESTRELLA / AFP (Alfredo ESTRELLA / AFP/AFP)

Agência o Globo
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Publicado em 2 de junho de 2024 às 09h43.

De um jeito ou de outro, uma mulher será eleita presidente do México neste domingo. O fato — inédito na história da segunda maior economia latino-americana — seria impensável há alguns anos no país, conhecido pelos índices alarmantes de violência de gênero. À frente na disputa está a cientista política Claudia Sheinbaum, ex-prefeita da Cidade do México e covencedora do Nobel da Paz de 2007. Com mais de 50% das intenções de voto, ela busca o equilíbrio entre aproveitar o apoio do seu padrinho político, o atual presidente esquerdista Andrés Manuel López Obrador, sem se projetar como sua sombra.

TUDO O QUE VOCÊ PRECISA SABER: México vai às urnas em meio a dúvidas sobre qual será o futuro do presidente Obrador

Para enfrentá-la, a oposição da direita tradicional se uniu em torno de Xóchitl Gálvez, empresária de origem indígena que aposta na política linha-dura à la Nayib Bukelepresidente de El Salvador conhecido por suas mega-prisões — para enfrentar a crise aguda na segurança pública. Ela aparece na segunda posição, de acordo com as pesquisas, com cerca de 35% das intenções de voto.

Para Gema Kloppe-Santamaría, professora de História e Relações Internacionais da América Latina na Universidade George Washington, o México passou por importantes transformações sociais e políticas nos últimos anos que explicam a liderança das duas candidatas na disputa para o cargo mais importante do país — incluindo uma emenda constitucional em 2019 que estabeleceu a obrigatoriedade da paridade de gênero nas candidaturas apresentadas pelos partidos.

"O movimento feminista pressionou por mudanças significativas na forma como a política é feita no México e é hoje um dos mais vibrantes, que mantém o governo sob vigilância da sociedade civil, da academia e do jornalismo", pontua Kloppe-Santamaría, destacando também a força dos nomes de Sheinbaum e Gálvez. "Ambas têm um histórico político sólido e, embora tenham origens sociais e políticas diferentes, conseguiram construir uma carreira de sucesso na ciência (Sheinbaum) ou no setor empresarial (Gálvez). Acho que seria míope simplesmente vê-las como “controladas” ou “ofuscadas” pelos homens em suas coalizões partidárias."

Uma das vitórias recentes das feministas no México foi a descriminalização nacional do aborto, instituída pela Suprema Corte.

Na avaliação de María Fernanda Bozmoski, diretora-adjunta do centro para América Latina do Atlantic Council, a popularidade do movimento obrigou a classe política a dar uma resposta às suas demandas, "incorporando em suas agendas temas cruciais às mulheres como violência de gênero, direitos reprodutivos e igualdade de oportunidades".

Por outro lado, esta mesma força explica porque tanto a direita quanto a esquerda apostaram em quadros femininos para vencer as eleições.

"Do ponto de vista de ambos os partidos, eu diria que a escolha por candidatas mulheres também pode ser encarada como uma estratégia para atrair o voto feminino e apresentar uma imagem de modernidade e progresso", pontua Bozmoski.

10 mulheres assassinadas por dia

Mulheres exigem a descriminalização do aborto durante o Dia Global de Ação por um Aborto Legal e Seguro na Cidade do México em 28 de setembro de 2022. Aborto, casamento igualitário, proteção da comunidade LGBT: o México avançou no caminho do progressismo nos últimos seis anos, embora os ativistas estejam longe de baixar a guarda, mesmo que uma mulher seja eleita presidente. (SILVANA FLORES / AFP/AFP)

Como o simbolismo de ter uma presidente mulher se traduzirá em uma transformação real na vida das mexicanas ainda é uma pergunta em aberto.

Em 2022, o México foi considerado o segundo pior país para ser uma mulher na região da América Latina e Caribe, ficando atrás apenas do Haiti no Women Peace and Security Index, estudo da Universidade Georgetown que analisa 177 países. Segundo o documento, a nação latino-americana tem o maior índice de violência política contra mulheres do mundo: enquanto a média global é de 16 incidentes anuais, o país registrou 537 casos apenas no ano retrasado.

De certa forma, a luta pela sobrevivência — literal — de Sheinbaum, Gálvez e tantas outras candidatas neste que já é o processo eleitoral mais letal da História do México lembra a batalha diária que as mexicanas enfrentam para continuar existindo em um Estado altamente militarizado e, ainda assim, incapaz de controlar os carteis de drogas.

Dez mulheres são assassinadas por dia no México, segundo dados oficiais do governo de 2023.

Apenas um em cada quatro casos são enquadrados como feminicídio — crime que segue aumentando ano após ano.

A letalidade é a mesma que a do Brasil, de acordo com o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, mas há uma diferença proporcional significativa: enquanto no Brasil as mulheres representam uma população de 104 milhões, no México são apenas 65 milhões.

Estimativas oficiais apontam que metade das mexicanas já foi vítima de estupro ao menos uma vez na vida. Apenas em 2021, uma em cada cinco mulheres foi violentada sexualmente no país.

Há, ainda, uma crise de desaparecimentos que atinge particularmente crianças e adolescentes entre 10 e 19 anos. Nos últimos seis anos, o número de mulheres e meninas que sumiram triplicou, segundo relatório do Instituto Mexicano de Direitos Humanos e Democracia (IMDHD), e atingiu recorde em 2023, com 2,7 mil casos registrados. Ao todo, 26 mil não têm seu paradeiro conhecido.

Angelica Ospina, pesquisadora mexicana especialista em gênero do Crisis Group, enfatiza que o domínio do narcotráfico sob grande parte dos territórios do país cria um cenário de violência no qual os abusos contra mulheres são naturalizados ou considerados crimes de menor importância.

"Cenários de violência generalizada não apenas incentivam a violência contra as mulheres, mas também a impunidade, porque quando as denúncias chegam ao sistema criminal, existe esse senso comum de que [os abusos] fazem parte daquele contexto e nada acontece", explica Ospina. "Outro problema causado pela presença de criminosos nos territórios é a facilidade de se obter de armas, inclusive as mais poderosas. Isso mudou a forma como as mulheres são mortas. Há dez anos, elas eram assassinadas a facadas ou estranguladas, hoje a maioria é por tiro. Nós também observamos um aumento nos homicídios de mulheres cometidos em espaços públicos, enquanto antes eram majoritariamente dentro de casa."

Segundo Ospina, a situação não melhora com a chegada de forças de segurança aos territórios dominados pelo crime organizado. Ao contrário, a militarização expõe as mulheres ao risco de mais violência, afirma.

"Quando o Exército chega a um território ocupado por grupos criminosos, costuma tratar toda a população como criminosa, inclusive as mulheres", explica Ospina. "E se são criminosas, eles se sentem autorizados a praticar violência sexual contra elas."

Em 2008, uma reforma no sistema criminal mexicano permitiu que policiais e militares prendessem civis com base em critérios subjetivos, como aparência, abrindo espaço para arbitrariedades. De acordo com uma pesquisa do Instituto Nacional de Estatística e Geografia (Inegi) do país, embora homens e mulheres possam sofrer abusos de agentes do Estado, as violações contra elas costumam ser de natureza sexual.

Cerca de 21% das mulheres detidas relataram terem sido vítimas de assédio sexual, nudez forçada, tentativa de estupro ou ameaça de estupro, e 9% disseram ter sido estupradas.

Com a crise de segurança pública no centro da campanha eleitoral, tanto Sheinbaum quanto Gálvez apresentaram suas propostas para resolver o problema também sob uma perspectiva de gênero.

Ambas já reconheceram publicamente a necessidade de enfrentar o aumento dos feminicídios e o alto número de desaparecimentos de meninas e mulheres. No entanto, nenhuma das duas abre mão do discurso em prol do fortalecimento das forças de segurança como resposta.

"Gálvez prometeu impunidade zero para violência sexual e de gênero, disse que aumentará a investigação e o apoio às mulheres vítimas de violência. No entanto, ela também sugeriu que os militares deveriam permanecer na segurança pública e propôs a construção de uma prisão de alta segurança à la Bukele, duas propostas que parecem fora de sintonia com o foco na prevenção e na reforma institucional que o país precisa", analisa Kloppe-Santamaría. "Sheinbaum prometeu tipificar todos os homicídios contra mulheres como feminicídios e apoiar a criação de promotorias especiais. Ao mesmo tempo, porém, ela disse abertamente que continuará apoiando a militarização, algo claramente prejudicial para a segurança de mulheres e meninas."

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