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Cliffe, da NYU: crises globais não serão resolvidas sem parceria China-EUA

Para Sarah Cliffe, do Centro de Cooperação Internacional da Universidade de Nova York, não será possível resolver as crises globais sem as duas maiores economias — mas isso ainda não tem acontecido

Sarah Cliffe, diretora do Centro de Cooperação Internacional da NYU: desafio de Biden será cumprir as promessas que fez ao mundo (ONU/Reprodução)

Sarah Cliffe, diretora do Centro de Cooperação Internacional da NYU: desafio de Biden será cumprir as promessas que fez ao mundo (ONU/Reprodução)

CR

Carolina Riveira

Publicado em 22 de setembro de 2021 às 16h24.

Última atualização em 22 de setembro de 2021 às 18h39.

A Assembleia Geral das Nações Unidas, evento chamado de o "super bowl dos diplomatas", teve o primeiro discurso do presidente Joe Biden na terça-feira, 21, e foi uma mostra do que o mandatário pretende que seja uma nova era na política externa dos Estados Unidos.

Tentando limpar a imagem americana após as críticas à saída do Afeganistão, Biden disse que os EUA usarão menos força militar e mais diplomacia e cooperação nos próximos anos, e que o destino de todas as nações está invariavelmente entrelaçado.

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A fala com foco no multilateralismo contrasta com o primeiro discurso de Donald Trump em 2017, que disse que o mundo era dos "patriotas".

Ainda assim, para Sarah Cliffe, diretora do Centro de Cooperação Internacional da Universidade de Nova York, e com passagens pela ONU e pelo Banco Mundial, a efetividade do discurso de cooperação global dependerá do quanto o governo Biden será capaz de realizar suas promessas. E reforça: não será possível resolver as crises globais sem alguma parceria entre China e EUA.

Falando à EXAME por e-mail, Cliffe comentou a estratégia de Biden, a crise recente dos submarinos entre EUA e França e o papel da ONU — e diz que ainda não havia conseguido assistir à fala do presidente Jair Bolsonaro. Veja abaixo os principais trechos.


Como a senhora avalia o discurso do presidente Biden na Assembleia? A imagem dos EUA saiu melhor do que entrou?

A retórica do presidente não era nova, mas ele anunciou duas novas ações: o aumento dos compromissos dos EUA com a vacinação global, a ser firmado hoje na cúpula de vacinas que os EUA estão hospedando, e duplicação do financiamento climático.

Isso foi bem recebido por outros países, juntamente com o compromisso dos EUA em se engajar na diplomacia sobre as questões no Irã, na Península Coreana e na busca por uma solução de dois Estados para Israel/Palestina.

Apesar de o presidente ter feito sinalizações a muitas frentes, não é possível que aliados ou o resto do mundo enxerguem tudo isso apenas como promessas vazias?

O grande teste, de fato, será nas ações de acompanhamento dessas promessas. O governo Biden vai seguir em frente com esforços diplomáticos e contribuições reais para esse mundo melhor que ele estabeleceu?

Outros países ficaram decepcionados nos últimos meses pelo que os EUA fizeram, como no Afeganistão e no AUKUS (pacto de submarinos nucleares com Austrália). E também pelo que não fizeram, como a falta de engajamento no Conselho de Segurança ou nos objetivos de desenvolvimento sustentável.

No geral, este foi um bom discurso e deve ajudar a imagem dos EUA como um todo, mas não é suficiente sem que as propostas sejam acompanhadas por ações concretas no futuro.

Biden, em discurso na ONU nesta terça-feira: "poder militar deve ser nosso último recurso, e não deve ser usado a cada problema que virmos ao redor do mundo" (Eduardo Munoz-Pool/Getty Images)

Biden reiterou que não fará mais tantos avanços militares, mas ao mesmo tempo, temos no momento a crise dos submarinos e o foco mudando para as relações no Indo-Pacífico. Os EUA conseguirão fazer a transição para este novo papel mais diplomático?

Se a gestão Biden realmente quer fazer a transição da força militar para a diplomacia, precisa trabalhar com os outros mais de perto. O AUKUS, o acordo dos submarinos, é um bom exemplo de uma alienação desnecessária da França e da União Europeia como um todo. A gestão Biden também precisará gastar mais dinheiro e esforço em soft power [a capacidade de influenciar sem uso da força militar], incluindo investimentos no exterior em desenvolvimento.

Sobre esse investimento em soft power, o presidente Biden voltou a mencionar o Build Back Better World, como havia feito no G7, com possibilidade de investimentos em infraestrutura em países em desenvolvimento. Muitos dizem que esse plano é uma forma de conter o avanço da Nova Rota da Seda da China. Como a senhora vê essa estratégia?

A estratégia geral de governar melhor, entregar melhor às pessoas, que o presidente Biden expôs na Assembleia é importante como uma forma de combater o autoritarismo. É um dos fatores que determinaram o resultado da Guerra Fria, porque as pessoas simplesmente se sentiam mais bem governadas e numa situação melhor, mesmo nas áreas mais pobres das democracias liberais, do que na União Soviética.

Mas para funcionar, tanto para as pessoas em suas vidas diárias como para esse objetivo geopolítico maior, isso [o plano de Biden] precisa ser apoiado por muito mais ação do que a que vimos nos últimos sete meses.

A ONU tem reiterado na Assembleia Geral o quanto os países mais pobres ainda não têm vacinas, e a COVAX [aliança para acelerar vacinação] não consegue resolver essa questão. Organizações multilaterais não estão sendo suficientes nessa nova era?

A ONU ainda é relevante. A pandemia e as mudanças climáticas nos mostram o quanto precisamos de uma ação internacional coletiva, e se a ONU fosse abolida amanhã teríamos que reinventá-la para resolver esses problemas. O secretário-geral da ONU também apresentou uma visão ambiciosa na Assembleia Geral, chamada de "nossa agenda comum:" ação sobre vacinas e saúde pública global, sobre o clima, sobre a desigualdade, sobre os impostos, sobre a corrupção, sobre a proteção social e padrões de vida decentes para as pessoas, falou até sobre as fake news.

Isso é importante, porque são coisas com as quais as pessoas ao redor do mundo se preocupam, que estão causando divisões, raiva e protestos em muitos países. Mas a ONU não pode resolver todos esses problemas sozinha. Em primeiro lugar, a ONU é uma organização de governos, e precisará desses governos para assumir o desafio. Em segundo lugar, muito mais atores são necessários: cidades e governos locais, setor privado, sindicatos, ONGs, grupos comunitários e movimentos sociais.

A ONU ainda é relevante. Se a ONU fosse abolida amanhã, nós teríamos que reinventá-la para resolver os problemas que temos.

A China não foi mencionada diretamente, mas quase toda parte do discurso de Biden abordou o país em alguma medida. O mundo conseguirá combater as crises atuais com os dois países em disputa?

Minha leitura é de que não podemos avançar em questões globais como a pandemia e as mudanças climáticas sem cooperação entre os EUA e a China. E até agora, nenhum dos lados colocou essa percepção em ação.

A senhora assistiu à fala do presidente Jair Bolsonaro? Como vê a relação com os EUA neste momento?

Ainda não tive a oportunidade de assistir ao discurso, mas pretendo fazê-lo em breve.

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