(Mike Hutchings/Reuters)
Vanessa Barbosa
Publicado em 4 de fevereiro de 2018 às 08h10.
Última atualização em 4 de fevereiro de 2018 às 08h10.
São Paulo - Já pensou em viver com apenas 25 litros de água por dia para suprir todas suas necessidades de higiene, alimentação e tarefas domésticas? Dias de secura que remetem a um futuro distópico estão se aproximando dos cerca de 3,7 milhões de habitantes da região metropolitana da Cidade do Cabo, segunda maior cidade da África do Sul.
Por comparação, um morador de São Paulo, por exemplo, utiliza em média 187,97 litros por dia, enquanto, para a ONU (Organização das Nações Unidas), 110 litros de água por dia são suficientes para atender as necessidade básicas de uma pessoa.
Na Cidade do Cabo, porém, esses números beiram o luxo. Diante da seca histórica que castiga a região, as autoridades locais recomendam que a população reduza o consumo atual, de 85 litros de água por dia, para 50 litros de água, de forma a poupar o recurso escasso.
Se a situação das reservas que abastecem a cidade caírem para 13,5%, as autoridades começarão a desligar o fornecimento em áreas residenciais. Com a torneira seca, a população só poderá recorrer a 200 pontos de coleta disponibilizados na cidade para receber apenas 25 litros de água por dia.
Mantido o ritmo atual de consumo, isso deve acontecer entre os dias 12 e 16 de Abril. Embora a data exata dependa do clima e dos padrões de consumo nos próximos meses, ela já tem nome: "Dia Zero". Se o dia fatídico chegar, a Cidade do Cabo se tornará o primeiro grande centro urbano do mundo a ficar sem água.
Os seis maiores reservatórios da cidade operavam com 25,8% de sua capacidade em 02 de fevereiro. A reserva de Theewaterskloof - o maior reservatório e fonte de aproximadamente metade da água da cidade - está na pior situação, com o nível da água em apenas 13% da capacidade.
Onde outrora a água era abundante, resta apenas um magro curso hídrico cercado de uma paisagem árida, como revela a imagem abaixo feita por satélites da agência espacial americana Nasa.
Cape Town’s Water is Running Out https://t.co/994VENVge3 #CapeTown #Landsat #NASA pic.twitter.com/5KxeoOkQl8
— NASA Earth (@NASAEarth) January 30, 2018
Segundo as autoridades locais, haverá seções separadas para acesso de pedestres e veículos aos pontos de coleta, bem como acesso para aqueles que coletam em nome de grupos vulneráveis. Mas não há garantias para agricultores e trabalhadores agrícolas. A indústria vitivinícola da África do Sul emprega cerca de 300 mil pessoas e forma a espinha dorsal da economia rural.
Desligar o sistema de distribuição significa não ter água saindo da torneira de casa para realizar tarefas simples e essenciais, como tomar banho, dar descarga no banheiro e cozinhar. Temendo um acirramento da tensão social em face da gravidade da crise, a África do Sul usará suas forças militares para proteger o abastecimento de água e evitar conflitos.
A extrema escassez de água na cidade reflete três anos consecutivos de seca, associados a um boom populacional e a divisões políticas. Entre 1995 e 2018, a população da Cidade do Cabo aumentou cerca de 80%. Durante o mesmo período, a capacidade de armazenamento das barragens aumentou apenas 15%.
Em 2007, o Departamento Nacional de Água e Saneamento emitiu um aviso sobre o abastecimento de água da região dizendo que seriam necessária novas fontes de água até 2015.
Em resposta ao alerta, as autoridades locais iniciaram uma forte campanha de combate às perdas nas redes de distribuição, de gerenciamento de pressão, substituição de medidores de água, além de programas de conscientização social para reduzir o desperdício de água, a fim de tornar mais racional todo o fornecimento de água.
A estratégia foi eficaz e a cidade atingiu seu objetivo de redução de consumo três anos antes de 2015, garantindo um suprimento seguro para a população até pelo menos o ano de 2019, com base na precipitação e uso normal do recurso.
Os esforços pela eficiência no uso da água vistos na cidade, porém, não ecoaram no campo. Conforme observa o pesquisador David W. Olivier, do Instituto de Pesquisa de Mudanças Globais da Universidade de Witwatersrand, as cidades não têm o poder de fazer alocações de água para a agricultura. Isso é feito pelo governo nacional.
Na contramão das iniciativas de prevenção e economia adotadas na cidade, "o Departamento Nacional de Água e Saneamento não tomou medidas para reduzir o uso agrícola da água em 2015/2016", escreve Olivier em análise publicada no site The Conversation.
Em última instância, o pesquisador aponta que a falta de articulação na gestão hídrica, alimentada segundo ele por divergências partidárias, "impulsionou a demanda por água além da capacidade do sistema de abastecimento" na região.
Com a sequência de secas severas nos últimos anos, que surpreendeu os meteorologistas, o sistema colapsou. Embora a cidade já tenha vivido momentos de seca em anos passados, geralmente o martírio terminava com a chegada da temporada de chuvas, o que não ocorreu agora, uma "surpresa" que sinaliza os riscos que as mudanças climáticas representam para as sociedades humanas.
"Este deve ser um alerta para autoridades da cidade e governos nacionais em todo o mundo", diz o Financial Times . "Muitas das maiores cidades do mundo são extremamente vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas - secas mais longas, chuvas mais pesadas, aumento do nível do mar, incêndios florestais mais ferozes, piora da poluição do ar e ondas de calor".
Na tentativa de conter a crise hídrica, a cidade corre contra o tempo para implementar projetos de reuso de água e novos pontos para retirada de água subterrânea. Dada a severidade da seca e incerteza em relação às chuvas nos próximos meses, o governo local também recorre a projetos mais temporários -- e caros --, como a construção de três usinas de dessalinização da água do mar, vinculadas a um contrato de apenas 24 meses com a empresa responsável pela construção e operação.
Embora necessárias, intervenções tecnológicas não dão conta sozinhas de mitigar a crise, a população também precisa colaborar. Segundo a mídia local, com base nos dados oficiais, apenas cerca de 55% dos residentes da cidade estão realmente aderindo à redução do consumo proposto, de 50 litros por dia.
Nos lugares onde a economia é menor, a pressão da água está sendo diminuída para reduzir o desperdício e regular o consumo. Para muitos sul-africanos, porém, a torneira seca já é uma realidade, o que dá origem a longas filas nos postos de coleta, uma imagem que ameaça se tornar cada vez mais corriqueira em tempos de mudanças climáticas e descaso com o recurso mais precioso para a vida.