VISTA DE HANGZHOU: a cidade que recebe o G-20 é conhecida como “Vale do Silício Chinês” / VCG/ Stringer/ Getty Images
Da Redação
Publicado em 5 de setembro de 2016 às 13h23.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 17h56.
Lourival Sant`Anna
Hangzhou, o cenário da reunião de cúpula do G-20, não foi escolhido por acaso pelas autoridades chinesas. Xi Jinping provém da província de Zhejiang, no sul do país, cuja capital é Hangzhou, e da qual o presidente chinês foi governador e secretário-geral do Partido Comunista. Mas esse certamente não é o principal motivo: no polo tecnológico de Hangzhou nasceu o site global de compras Alibaba, e todos os dias surgem 50 startups, em busca de um lugar ao sol na revolução tecnológica promovida pela China. Chamada de “Vale do Silício” chinês, Hangzhou é apenas um de muitos polos industriais (que às vezes também levam esse apelido) espalhados pelo país, com a missão de cumprir a ambiciosa meta do plano 2006-2020: destinar 2,5% do PIB a pesquisa e desenvolvimento.
A China pretende deixar rapidamente para trás — e rapidamente, na China, é rapidamente mesmo — a imagem de país que copia das outras indústrias, e com marcas próprias de quinta categoria, cuja única atração é o preço baixo. Diferentemente dos processos anteriores, protagonizados pelos polpudos cofres do Estado, o governo quer a participação intensa do dinheiro privado. No fim do ano, deverá ser concluída a conexão entre as bolsas de valores de Hong Kong, que movimenta 3,5 trilhões de dólares, e de Shenzhen, com seu volume de 2,4 trilhões de dólares. Espécie de Nasdaq chinesa, Shenzhen fica em outro pólo tecnológico e inclui em sua lista ações de empresas de alta tecnologia. A ideia é fortalecer sua capacidade de atrair investimentos para empresas da era digital.
O Conselho de Estado, órgão de decisão do governo, anunciou na quinta-feira 1º, que vai acelerar os esforços para transformar a Região Metropolitana de Pequim em centro nacional de inovação científica e tecnológica. O governo deve incentivar tanto empresas estatais quando investidores estrangeiros — por meio do afrouxamento da regulação de entrada de capital nessa área — a colocar dinheiro nas startups e noutros empreendimentos de alta tecnologia. O objetivo é “desenvolver fronteiras de pesquisa” e “cultivar a competitividade global” nos setores prioritários: manufatura inteligente, medicina biológica, energias limpas e proteção ambiental.
Na reunião chefiada pelo primeiro-ministro Li Keqiang, ficou decidido também que serão estendidas para outros polos de inovação as medidas de facilitação de vistos de trabalho para atrair mão-de-obra especializada estrangeira, como as que foram adotadas no polo tecnológico de Zhongguancun, em Pequim. Tradicionalmente uma mistura de Rua Santa Efigênia com 25 de Março (regiões de comércio de eletrônicos e artigos baratos no centro de São Paulo), partes de Zhongguancun ganharam nos últimos anos as feições da Avenida Luiz Carlos Berrini, com prédios ultramodernos ostentando logomarcas globais, tanto estrangeiras quanto chinesas.
“Enriquecer é glorioso”
Enquanto no passado o ideal de todo chinês urbano de classe média era tornar-se funcionário público, hoje o sonho é ter uma ideia brilhante e abrir uma startup — e, quem sabe, confirmar a profecia do ex-líder chinês Deng Xiaoping, que, ao abrir a China para o mercado, em 1978, proferiu: “Enriquecer é glorioso”. O número de inscritos nos concursos públicos caiu 7,5% em relação ao ano passado, uma queda recorde. Em contraste, em 2015, foram abertas 12.000 startups por dia. Ao menos 1.000 empresas estão investindo um total de 56 bilhões de dólares nelas. Como resultado, a China vem subindo no Índice da Inovação Global, elaborado pela Universidade Cornell (EUA). Do ano passado para este ano, ela subiu três degraus, para a 25.ª posição, tornando-se o único país em desenvolvimento entre os 25 primeiros (o Brasil está em 69.º).
Além de investir internamente, as grandes empresas chinesas de tecnologia estão colocando dinheiro em startups e em empreendimentos bem sucedidos fora da China, como os aplicativos Snapchat (de conversas e notícias) e Lyft (de compartilhamento de carros), os criadores de jogos eletrônicos Supercell, da Finlândia, e Playtika, de Israel, entre outros.
As empresas chinesas foram beneficiadas pelas regulações protetoras do mercado, pela impossibilidade de estrangeiros prosperarem no país sem um parceiro local e pelos fortes subsídios estatais. O Google, o Facebook e o Twitter foram bloqueados na China, favorecendo o surgimento de seus equivalentes locais: Baidu, Renren e Tencent, e Sina Weibo, respectivamente. Mas, cada vez mais, hoje, as empresas de tecnologia chinesas crescem por mérito próprio — por sua capacidade não só de entender o seu próprio imenso mercado, mas, principalmente, por sua criatividade e inovação.
Se você acha que o Whatsapp e o Uber são ideias imbatíveis, dê uma checada nos chineses WeChat e Didi Chuxing.
Com 700 milhões de usuários mensais na China (em contraste com 1 bilhão do Whatsapp no mundo), o WeChat é muito, muito mais do que um aplicativo de conversas. É todo um sistema operacional de telefonia móvel. O WeChat permite a seus usuários, além de trocar mensagens e fazer ligações de voz: falar por vídeo, navegar na internet, jogar, realizar pagamentos em lojas físicas e compras em lojas virtuais, fazer empréstimos, pagar estacionamento e boletos bancários, pedir comida, ver notícias e trocar cartões virtuais por meio de imagens em QR. Com tudo isso, não é surpreendente que as pessoas tenham trocado o email pelo WeChat.
No Ano Novo Chinês, em vez de mandar dinheiro para os parentes e amigos em envelopes vermelhos, como é a tradição no país, os usuários do WeChat podem enviar “pacotes vermelhos” pelo aplicativo. O sistema permite que grupos se cotizem para mandar presentes coletivamente. E é o WeChat que distribui o dinheiro, decidindo quem deve receber mais, segundo seus algoritmos. Isso, sim, é um Big Brother. Neste ano, 400 milhões de usuários enviaram 32 bilhões de pacotes vermelhos. O banco HSBC avalia a empresa em mais de 80 bilhões de dólares.
Em menor escala, o mesmo se aplica ao Didi Chuxing (“didi” é uma onomatopeia infantil para buzina e “chuxing” significa viajar), que acaba de derrotar o Uber na briga pelo mercado chinês. O Didi se integrou melhor nas redes sociais locais, incorporou os táxis e os ônibus em seu sistema, e permite até agendar test-drives. Enquanto o Uber realizou 1 bilhão de viagens em cinco anos, entre 2010 e 2015, o Didi, fundado em 2012, fez 1,4 bilhão só no ano passado. A pá de cal veio em uma decisão da autoridade reguladora chinesa, que considerou ilegal o subsídio de 1 bilhão de dólares ao ano feito na China pela matriz do Uber nos Estados Unidos. Diante disso, a Uber desistiu da briga, e aceitou uma oferta da Didi, que comprou a empresa americana, em troca de uma participação de 17,7% na chinesa.
Com ou sem concorrência?
É verdade que o Estado e a peculiar cultura da China criam um ambiente mais favorável para as empresas locais. Mas é verdade também que o mundo dos aplicativos e de outros serviços digitais se beneficia dos monopólios — quer gostemos ou não. O predomínio do sistema de pagamentos do WeChat, por exemplo, é útil tanto para clientes quanto para fornecedores. A escala torna mais racional o uso da frota com um aplicativo só do que com dois ou mais concorrentes. A questão é saber se a concorrência não prejudicará os usuários, elevando preços e degradando serviços. Até agora, não aconteceu, mas só o tempo dirá.
A concorrência local tem dado um calor nas marcas internacionais consagradas também no mercado automobilístico. O utilitário esportivo Ford Kuga, um campeão de vendas quando chegou à China em 2013, teve queda de 18% no primeiro semestre, em comparação com o mesmo período de 2015. O Kuga foi desbancado pelo Haval H6, da montadora chinesa Great Wall. “Estamos sofrendo muita concorrência de empresas locais, que vêm com força e produtos realmente melhores”, admitiu Robert Shanks, diretor financeiro da Ford.
A Volkswagen também reconhece que suas vendas devem crescer menos este ano na China, e a Toyota já teme não cumprir a meta de vender 2 milhões de veículos por ano na China em 2025.
“Os consumidores chineses são menos leais a marcas do que os ocidentais”, explica Peng Bo, da consultoria Price. Eles são mais eles, mas quem não é?
O investimento em tecnologia representa, em parte, a resposta das autoridades chinesas à desaceleração da economia como um todo — ao lado de um aumento de liquidez, com diminuição do depósito compulsório e, mais adiante, se necessário, dos juros. A partir de 2010, numa curva praticamente contínua, o país desceu do patamar dos dois dígitos para um crescimento que deve chegar a 6,5% este ano. Isso preocupa o regime de partido único, que não será importunado enquanto os chineses acreditarem que podem enriquecer — o que é glorioso, certo?