Charlie: mas o semanário também paga o preço de sua popularidade: seus desenhos costumam despertar críticas e ameaças (Getty Images/Getty Images)
AFP
Publicado em 5 de janeiro de 2017 às 16h46.
Dois anos depois do atentado que dizimou sua redação em Paris, o semanário satírico francês Charlie Hebdo mantém intacta sua insolência e reivindica o direito a fazer piada de tudo, apesar de seu diretor assegurar que a publicação nunca foi tão criticada.
Neste aniversário sombrio, a revista mais uma vez lançou mão do humor negro: "2017, enfim, o fim do túnel", estampa sua capa esta semana, junto a um personagem que olha o cano de um fuzil, empunhado por um islamita.
Naquele 7 de janeiro dois anos atrás, a França sofria o primeiro de uma série de atentados cometidos por extremistas islâmicos, que deixaram 238 mortos até agora.
Naquele dia, os irmãos Said e Cherif Kouachi invadiram a sede parisiense do semanário e executaram 11 pessoas, entre elas vários de seus renomados cartunistas: Cabu, Wolinksi, Charb, Honoré, Tignous.
O Charlie Hebdo foi atacado - segundo a rede Al Qaeda, que reivindicou o atentado - por ter representado o profeta Maomé. Em resposta, milhões de pessoas adotaram nas ruas e na internet o lema "Je suis Charlie" (Eu sou Charlie), transformando o semanário em um símbolo da liberdade de expressão.
O periódico vende atualmente cem mil exemplares semanais, contra trinta mil antes do massacre. Os recursos obtidos desde então lhe permitiram se expandir: sua página na internet está parcialmente traduzida ao inglês e na Alemanha acaba de ser lançada uma versão em papel.
Mas o semanário também paga o preço de sua popularidade: seus desenhos costumam despertar críticas e ameaças.
"Curiosamente, temos a impressão de que agora as pessoas são mais intolerantes com o Charlie. Estão à espreita de qualquer coisa com nossos desenhos", explica Riss, diretor da publicação. "Antes, nos diziam que tivéssemos cuidado com os islamitas e agora é preciso ter cuidado com os islamitas, os russos, os turcos", confidencia à AFP.
Moscou indignou-se com os desenhos do acidente com o avião militar russo no Mar Negro, que deixou uma centena de mortos no Natal.
O presidente russo, Vladimir Putin, citou anteriormente o exemplo do Charlie Hebdo para advertir os artistas russos de que não ultrapassassem os limites da liberdade de expressão.
Milhares de insultos provenientes da Itália chegaram em setembro à redação do semanário por causa de um desenho em que as vítimas do terremoto em Amatrice foram apresentadas como camadas de uma lasanha - a carne e o molho, aludindo a seus corpos.
"Fazíamos desenhos assim muito antes e ninguém se importava", afirma Riss. "No máximo, incomodávamos a duas ou três associações retrógradas da França, mas agora parece que o mundo inteiro vigia o que fazemos", explica.
"Se amanhã colocamos Maomé na capa, quem nos defenderá?", questiona-se o jornalista. "Vão nos dizer: estão loucos, buscaram isto. Em dois anos, as pessoas ficaram muito mais receosas".
E as ameaças de morte continuam. Muitos colaboradores vivem com escolta.
A redação mudou-se para um edifício similar a um bunker em um lugar não secreto. Um dos poucos que puderam visitá-lo, o diretor italiano Francesco Mazza, descreve um universo de grades, interfones, portas blindadas e guardas armados com coletes à prova de balas, segundo descrição publicada nesta quinta-feira pelo jornal francês Libération.
"Se revelasse o endereço a alguém, o semanário me denunciaria por colocar a vida alheia em perigo", escreve Mazza.
"Compreendo que as pessoas não nos entendam, que se irritem e, inclusive, nos insultem. O que não entendo é quem quer nossa morte", disse-lhe Coco, um dos cartunistas que sobreviveram ao massacre.
Várias homenagens, presididas pelo ministro do Interior, Bruno Le Roux, e pela prefeita de Paris, Anne Hidalgo, foram realizadas nesta quinta-feira em memória das vítimas dos atentados de janeiro de 2015, que deixaram, no total, 17 mortos, incluindo quatro em um supermercado judaico.