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Carlos Vilas, da UBA: Ortega não vai cair na Nicarágua

Pesquisador da Universidade de Buenos Aires afirma que presidente ainda tem ampla base de apoio, mas que não esperava pela intensificação dos protestos

Daniel Ortega, presidente da Nicarágua: Reeleito em 2016 para o terceiro mandato consecutivo, ele acumula 11 anos no poder (Oswaldo Rivas/Reuters)

Daniel Ortega, presidente da Nicarágua: Reeleito em 2016 para o terceiro mandato consecutivo, ele acumula 11 anos no poder (Oswaldo Rivas/Reuters)

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Isabel Seta

Publicado em 19 de julho de 2018 às 20h53.

Última atualização em 19 de julho de 2018 às 20h53.

Há exatamente 39 anos, o hoje presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, era um dos líderes do movimento revolucionário que tirou do poder o ditador Anastasio Somoza, cuja família governava o país desde 1936.

Ortega é, agora, o “novo Somoza”. Reeleito em 2016 para o terceiro mandato consecutivo, o presidente acumula 11 anos no poder e leva a cabo uma brutal repressão a manifestantes que pedem a renúncia dele e da mulher, a vice-presidente Rosario Murillo. Tudo começou com uma proposta de reforma da seguridade social (o equivalente à nossa previdência), que levou estudantes às ruas para protestar. O governo de Ortega respondeu com uma repressão violenta, e as manifestações escalaram. Em três meses, cerca de 350 pessoas morreram pelas mãos das forças de segurança do estado, como a polícia e grupos paramilitares.

Nesta quarta-feira, a Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou uma dura resolução contra os atos de repressão de Ortega e pediu ao governo um novo calendário eleitoral. O mandato do presidente vai até 2022. Na segunda-feira, o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, afirmou que é “totalmente inaceitável” o “uso letal da força por entidades ligadas ao Estado”. Mas, até agora, ninguém encontrou uma solução para a crise. 

EXAME entrevistou o professor de pós-graduação das universidades de Buenos Aires e de Lanús, Carlos M. Vilas, para entender a transformação do ex-líder revolucionário Daniel Ortega. Autor de livros como “Perfis da Revolução Sandinista” (1987) e  “O poder e a política: controvérsias entre razão e paixões” (2013), Vilas tem mais de cinquenta anos de carreira e foi membro da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL).

A revolução sandinista completa hoje 39 anos. O que mudou na Nicarágua com a revolução?

É tão difícil precisar quando começa uma revolução quanto determinar quando termina. A etapa propriamente revolucionária do governo sandinista —ou seja, a etapa de transformações institucionais, socioeconômicas, do desenvolvimento de uma consciência de dignidade nacional em um país que, durante décadas, foi governado por uma ditadura dinástica protegida por sucessivos governos do Estados Unidos —, essa etapa acredito que terminou em fevereiro de 1990, com as primeiras eleições realmente livres e competitivas na história da Nicarágua.

Qual foi a participação de Daniel Ortega no movimento que tirou Somoza do poder, o Sandinismo?

Daniel Ortega fazia parte da Junta que dirigiu o governo nos primeiros anos (1979-1983) e foi eleito presidente nas eleições de 1983. Seu vice-presidente era o escritor Sergio Ramirez Mercado, que saiu da FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional) há anos e segue enfrentando Ortega e seu esquema de governo.

Quais eram os ideais dos sandinistas? Por que lutavam e o que representavam?

A revolução teve três grandes bandeiras: libertação nacional, em oposição à história de subordinação aos EUA; democracia popular, que conjugava os mecanismos da democracia representativa com o impulso às organizações e mobilizações das classes trabalhadora, camponesa, médias e baixas; transformação e desenvolvimento econômico a partir da socialização ou da estatização das grandes propriedades dos Somoza, em um esquema geral de economia mista.

Cerca de 350 morreram desde abril quando começaram os protestos contra Ortega. Ex-companheiros do presidente acusam-no de desvirtuar o sandinismo e de estar apegado ao poder. O que aconteceu com o líder revolucionário que agora manda as forças de segurança contra a população?

Acredito que Ortega e sua esposa se surpreenderam pela massividade e virulência dos protestos sociais, não esperavam algo assim. É comum explicar o início das manifestações pelo projeto de reforma do sistema de seguridade social seguindo uma recomendação de uma missão do FMI que esteve na Nicarágua em fevereiro deste ano. Sobretudo, se surpreenderam que os protestos continuaram e cresceram mesmo depois que o projeto de reforma foi retirado. Então, passaram a usar a resposta autoritária: repressão brutal e massiva. Mas, para sua surpresa maior ainda, essa resposta repressiva exacerbou ainda mais a força e a massividade dos protestos, ao custo de hoje 350-360 manifestantes mortos, principalmente jovens.

Já são três meses de protestos. O que motiva os manifestantes? Por que começaram a pedir pela renúncia de Ortega?

Assim como o governo de Ortega aumenta a resposta repressiva, os manifestantes sobem o nível de suas próprias exigências. A princípio, foram reclamações pontuais —seguridade social, salários, problemas econômicos— mas, à medida que a repressão crescia, também cresciam os protestos e os temas se deslocaram do social e econômico para o político. E o político se resume a apenas uma coisa: que Ortega e sua esposa deixem o governo, ou que ao menos antecipem a data das próximas eleições. Mas, ao mesmo tempo, não se pode esquecer que dois anos atrás Daniel Ortega foi reeleito com mais de 70% dos votos e os protestos não chegam nem perto dessa cifra. A repressão massiva aos manifestantes é o rosto mais visível e cruel do governo de Ortega, mas é um erro achar que a repressão policial e paramilitar, ou que os grupos de franco atiradores, são seu único sustento. Por isso que Ortega se nega a renunciar ou antecipar as eleições e se agarra ao governo.

A pressão da comunidade internacional vem crescendo. As manifestações não param. O que vai acontecer? Ortega vai renunciar?

A pressão da “comunidade internacional” tem limites e isso inclui os Estados Unidos que há anos vêm tentando se desfazer de Ortega e do que resta do Sandinismo. O antecedente mais recente disso é o “Nica Act” de 2016, que estabeleceu severas restrições à economia nicaraguense. No entanto, o distanciamento de algumas forças políticas e figuras internacionais que tradicionalmente apoiavam o sandinismo erodiu, no longo prazo, as aspirações de permanência de Ortega e do seu esquema de governo. Mas eu não acredito que ele vá cair, a não ser que enfrente uma força mais poderosa que a que ele tem. E não me refiro à questão das armas ou da violência. Claro que isso não é irrelevante, mas o drama da oposição, principalmente dos jovens, é a limitação que deriva da espontaneidade, da organização frágil (se é que existe alguma para além das barricadas) e da falta de liderança. É preciso assumir que em oposição a Ortega, em termos políticos, não há ninguém. Nem os bispos com suas dúvidas, nem os empresários —a quem Ortega beneficiou muito—, nem os dissidentes sandinistas —que nunca puderam se enraizar nas massas. Ortega sabe disso, por isso aposta na violência repressiva em sua expressão mais descarnada: “morto o cachorro, se acaba a raiva”.

Qual solução para a crise então?

Acredito que uma das razões do fracasso (até agora) da mediação, tirando a confiança de Ortega na superioridade de sua resposta repressiva frente aos poucos recursos dos manifestantes, é sua representatividade escassa ante uma parte importante da população. Com exceção de alguns sacerdotes, a hierarquia eclesiástica, fortalecida pelo Papa João Paulo II, se posicionou desde o princípio contra o Sandinismo e muitas de suas reformas. Supondo que Ortega, sua esposa e seu núcleo de governo saiam de cena: que força, grupo ou figura pode substituí-los? Enquanto isso, o país sangra e chega o 39º aniversário da revolução em condições que ninguém nunca havia imaginado.

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