Saques, apagões, linchamentos, hospitais sem estoques.
O colapso da Venezuela é de uma escala que não era vista no Hemisfério Ocidental há décadas.
Em um esforço para ilustrar como é a vida cotidiana no país, a repórter da Bloomberg Fabiola Zerpa documentou seus esforços para conseguir alimentos para sua família de classe média.
Esta é uma seleção de relatos de sua crônica de um mês.
9 de junho
Quinta-feira. Minha única chance na semana de comprar produtos de consumo básico -- óleo de cozinha, arroz, sabão para lavar roupa -- pelos preços fixados pelo governo.
Todo venezuelano adulto conta com dias específicos da semana para comprar produtos regulados com base nos números de suas carteiras de identidade. Meus dias são domingos e quintas-feiras. Os domingos são inúteis, contudo. As lojas deixaram há muito tempo de vender produtos regulados no fim de semana. As quintas-feiras são só um pouco melhores.
Nos últimos meses, as filas dos dois supermercados próximos à minha casa, na região leste de Caracas, estavam tão longas, estendendo-se por duas quadras, que seriam necessárias horas para ter a chance de comprar. E depois disso não há garantia de que encontrarei alguma coisa.
Contudo, eu dirijo até os supermercados pela manhã para dar uma rápida olhada. Sem chance. Eles estão tão lotados que não há sequer lugar para estacionar.
Eu sigo em frente. Minha tarefa de reportagem deste dia me levará a diversas partes da cidade, por isso, é claro, estarei à espreita de alguma coisa, qualquer coisa que possa levar para os meus dois filhos -- um menino de 8 anos e uma menina de 10 -- e o meu marido, Isaac.
Eu entro em uma farmácia. Isaac está ficando sem medicamento para o colesterol. Seu médico prescreveu Vytorin ou Hiperlipen. A loja não tem nenhum dos dois. Mas espere, diz o farmacêutico: há um laboratório da Índia que acaba de fechar um acordo com o governo para fornecer medicamentos ao país; eles produzem uma pílula anticolesterol.
Não gosto nada da ideia -- quem sabe o que é esse remédio? --, mas é melhor, calculo, que correr o risco de ficar sem remédio. Eu levo quatro caixas.
Por volta de meio-dia, entro em uma padaria em busca de pão. Sou cumprimentada com impaciência por uma jovem. “Só teremos pão às 5 da tarde, senhora”.
No caminho até a saída, vejo um cartaz na porta da frente que de alguma forma passou despercebido por mim ao entrar: “NÃO HÁ PÃO”. Quando retorno ao carro, percebo que tenho pouco dinheiro vivo. Vou até um caixa automático próximo. Não há dinheiro.
14 de junho
Estou novamente à procura de pão. Como está se tornando cada vez mais difícil comprar pão fresco -- como os venezuelanos sempre fizeram --, eu decido procurar pão embalado.
Ao meio-dia, vou a um mercado próximo. Não há fila do lado de fora. Quando entro, entendo o porquê. Não há muito nas prateleiras. E nem sinal de pão, em nenhuma parte.
“O pão chegou cedo, senhora”, diz a balconista, de meia idade. “Acabou tudo”.
17 de junho
Gol de placa. Isaac, por meio do amigo de um amigo com quem trabalha em uma empresa de publicidade, conseguiu cinco quilos de amido de milho. Isto é fantástico.
A farinha é o principal ingrediente das arepas, o pão chato e circular que é o produto básico mais importante da dieta venezuelana. Isaac pagou caro: 1.500 bolívares por quilo, oito vezes mais que o preço regulado. Mas valeu a pena. Nosso estoque estava acabando.
Agora, com ele reabastecido, podemos usar uma parte como moeda de troca com amigos e familiares. (Dois quilos, por exemplo, iriam para minha cunhada Raquel, dois dias depois, em troca do leite em pó que ela costuma nos passar).
25 de junho
Eu me dirijo cedo a um mercado de fazendeiros próximo à minha casa. A cada sábado, antes do amanhecer, os fazendeiros enviam sua produção das montanhas próximas. Tudo é vendido a preços de livre mercado. Isto tecnicamente é ilegal, mas ocorre basicamente sem restrições hoje em dia.
Comprar aqui, a esses preços, é um luxo que eu sei que milhões de venezuelanos não podem pagar. Eu me sinto muito afortunada nesse sentido. Uma vantagem adicional é que os fazendeiros aceitam cartões de débito.
Com a inflação fora de controle -- projeções privadas para 2016 variam de 200 a 1.500 por cento --, pagar com dinheiro exige carregar um enorme maço de notas.
Isto não apenas é incômodo. Em um país assolado pelos crimes como a Venezuela, com a terceira maior taxa de homicídios do mundo, é extremamente perigoso.
Após passar uma hora escolhendo frutas, vegetais e carne, entro na fila. Começa a chover, primeiro leve, depois com força. Isto é um problema.
O sistema de internet que conecta a máquina de cartões de crédito ao setor bancário cai. Anos de baixos investimentos comprometeram a confiabilidade do sistema. Passa meia hora. Agora somos 30 na fila para pagar.
Alguns começam a reclamar: sobre a funcionária do caixa (ela é preguiçosa), os bancos (eles são terríveis) e o país de um modo geral (este lugar é uma fila sem fim). Um casal de idosos desiste. Eles deixam suas sacolas de compras e vão embora. Alguns minutos depois, sigo o exemplo deles.
1º de julho
Quando entro na padaria, meu coração está acelerado. Dentro, tudo parece normal. A vida segue em frente. Há uma longa fila de pessoas esperando pelo pão, outra de pessoas esperando para pagar.
Os clientes tomam café e comem pizza descontraidamente. E as filas, para minha surpresa, se movem rapidamente. Eu pego dois pães (o máximo permitido), um pouco de presunto, queijo e alguns pequenos doces venezuelanos para os meus filhos e corro para casa.
Uma pequena vitória.
7 de julho
Quinta-feira. Meu dia da semana para comprar produtos básicos. Vou até o supermercado local pouco depois das 10 da manhã. Sessenta pessoas ou mais aguardam do lado de fora.
Elas vieram de todas as partes da cidade, especialmente dos bairros mais pobres, nos quais os alimentos são mais escassos, para esperar na fila. Ninguém sabe de nada: que horas os produtos regulados serão colocados à venda; quais itens serão oferecidos, se é que haverá algo; nada.
As pessoas apenas aguardam, obstinadamente, sob o intenso sol do Caribe. “Esta é a fila da esperança”, me diz uma mulher. “Esperamos que eles tenham algo para nos vender”. Ótimo.
Um pouco de humor negro. Eu rio. Algumas horas depois, contudo, a fila ainda está parada e eu, sem esperanças. Abandono meu lugar e vou embora.
-
1. Panelas vazias
zoom_out_map
1/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
São Paulo - Filas quilométricas nos mercados se tornaram comuns na Venezuela. Já faltaram
papel higiênico para turistas,
cevada para a maior cervejaria do país, além da
energia elétrica, que agora é cortada quatro horas por dia. O pior, porém, vem a seguir: famílias têm pulado refeições e se alimentado mal, por não terem mantimentos suficientes. Durante os 14 anos do ex-presidente Hugo Chávez no poder, a renda do petróleo, principal produto de exportação, foi usada para subsidiar comida para a população mais pobre. Como consequência, houve uma melhora na alimentação desses venezuelanos. O problema é que com o colapso nos preços da commodity, agora sob o governo de Nicolás Maduro, essa política econômica ruiu. Segundo a agência de notícas Reuters, um estudo realizado por três universidades revela que 1.500 famílias do país têm aumentado o consumo de carboidratos em suas dietas. Para completar o quadro, 12% dos entrevistados já não fazem três refeições por dia.
A brasileira Silvone, que reside em Caracas, capital do país, há quase 8 anos e prefere que seu sobrenome não seja identificado, descreve o quadro de escassez no país. "As filas começam às 22h do dia anterior. Quando chega a sua vez, não tem mais nada", conta a EXAME.com. Ela diz que compra mercadorias de "bachaqueros", pessoas que ficam nas filas e depois vendem os produtos por um valor bem mais alto. Mesmo assim, não é possível encontrar tudo o que se quer. "Leite, por exemplo, tem mais de um ano que eu não consigo", diz a brasileira. Em uma série de reportagens, a Reuters visitou famílias em Caracas para fotografar o que havia em suas casas para comer. Conheça nas fotos essas pessoas e as suas "dispensas".
-
2. Antonio Marquez
zoom_out_map
2/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Antonio Marquez e sua esposa Maria de Marquez, na casa deles, no dia 23 de abril de 2016. "Nós estamos comendo menos, porque temos nos limitado. Nós costumávamos manter o freezer cheio, mas agora não é mais assim", disse Antonio.
-
3. Antonio Marquez
zoom_out_map
3/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Toda a comida presente na casa de Antonio Marquez no dia 23 de abril de 2016
-
4. Mario Bedoya
zoom_out_map
4/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Mario Bedoya e sua esposa Carmem Bedoya posam para foto na casa deles.
-
5. Mario Bedoya
zoom_out_map
5/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Toda a comida presente na casa de Mario Bedoya em 21 de abril de 2016.
-
6. Romulo Bonalde
zoom_out_map
6/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Romulo Bonalde e sua esposa Maria de Bonalde. "Antes nós conseguíamos comprar comida para 15 dias, agora só podemos comprar para as necessidades do dia", diz Rômulo.
-
7. Romulo Bonalde
zoom_out_map
7/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Tudo o que a família de Romuo Bonalde tinha para comer no dia 23 de abril de 2016
-
8. Yunni Perez
zoom_out_map
8/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Yunni Perez com seus parentes Carlos Acosta, Adrian Gonzalez, Luis Oliveros, Luis Oliveros e Hector Acosta, na residência do casal.
-
9. Yunni Perez
zoom_out_map
9/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Toda a comida que havia na casa de Yunni Perez no dia 22 de abril de 2016
-
10. Victoria Mata
zoom_out_map
10/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Victoria Mata com seus parentes Naibeth Pereira, Sebastian, Delis Pereira, Denis Pereira e Wenderly. "Nós estamos comendo menos, porque não conseguimos achar comida. Quando ela aparece, as filas são cruéis e nós não podemos comprar. Não temos comido três vezes ao dia. Nós comemos duas refeições, quando as temos", diz Victoria.
-
11. Victoria Mata
zoom_out_map
11/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Todos os alimentos que a família de Victória tinha para comer no dia 21 de abril de 2016
-
12. Duglas Shanchez
zoom_out_map
12/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Duglas Shanchez posa sozinho em sua casa: "Nós estamos comendo mal, não conseguimos comer de forma balanceada. Se temos almoço, não temos jantar e, se temos jantar, não temos café-da-manhã", afirma.
-
13. Duglas Sanchez
zoom_out_map
13/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Tudo o que Duglas Sanchez e sua família tinham para comer do dia 23 de abril.
-
14. Yaneidy Guzman
zoom_out_map
14/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Yaneidy Guzman e suas filhas Esneidy Ramirez, Steffany Perez e Fabiana Perez. "Agora comer é um luxo. Antes nós podíamos ganhar algum dinheiro e comprar roupas, ou coisas do tipo. Agora gastamos tudo em comida", diz a mãe
-
15. Yaneidy Guzman
zoom_out_map
15/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Todos os alimentos na casa de Yaneidy Guzman no dia 22 de abril de 2016.
-
16. Ricardo Mendez
zoom_out_map
16/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Ricardo Mendez e seus parentes Raymari Guerra, Natalia Gerra, Ricardo Mendez, Dayana Mendez, Antonela Mendez, Yolimar Vetancourt e Liz Torres. "Somos uma grande família e comer tem ficado cada vez mais difícil para nós", diz Ricardo.
-
17. Ricardo Mendez
zoom_out_map
17/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Toda a comida que a família Mendez tinha em casa o dia 23 de abril de 2016
-
18. Antonia Torres
zoom_out_map
18/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
"Eu tenho comido menos e me alimentado de muitas coisas que não deveria", diz a senhora Antonia Torres em sua casa.
-
19. Antonia Torres
zoom_out_map
19/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Os alimentos que Antonia Torres tinha em sua casa em 22 de abril de 2016.
-
20. Jhonny Mendez
zoom_out_map
20/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Jhonny Mendez e seus parentes Yoelver Barreto, Yorver Barreto, Leida Bolivar e Yoalvier Barreto. "Eu tenho que sair de casa às 5h da manhã, correndo o risco de ser morto. Ficar na fila o dia todo para comprar apenas dois ou três produtos", conta Mendez.
-
21. Jhonny Mendez
zoom_out_map
21/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Tudo o que a família de Jhonny Mendez tinha para comer no dia 14 de abril de 2016.
-
22. Alida Gonzaleze
zoom_out_map
22/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Alida Gonzalez e seus parentes Manuel Garcia, Jesus Garcia, Maira Hernandez e Nixon Urbano. "Com o dinheiro que costumávamos gastar no café da manhã, almoço e jantar, nós agora conseguimos comprar apenas o café da manhã, e não para todos", diz Alida.
-
23. Alida Gonzaleze
zoom_out_map
23/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Os alimentos presentes na casa de Alida Gonzalez em 15 de abril de 2016.
-
24. Lender Perez
zoom_out_map
24/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Lender Perez, sua esposa Isamar Ramirez e suas filhas Lismar e Lucia. "Nós estamos há 15 dias comendo pão ou arepa com queijo. Estamos comendo pior que antes, porque não conseguimos achar comida e não podemos paga pelo que achamos", diz o pai da família.
-
25. Lender Perez
zoom_out_map
25/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Tudo o que Lender Perez e sua família tinham em casa para comer no dia 14 de abril de 2016.
-
26. Francisca Landaeta
zoom_out_map
26/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Francisca Landadeta e seus parentes Luisa Gomez, Gabriel Castillo, Kerlin Garrido e Antony Arias. "Nós comemos hoje, mas não sabemos se comeremos amanhã. Não estamos bem. Eu nunca pensei que isso aconteceria", diz Francisca.
-
27. Francisca Landaeta
zoom_out_map
27/28 (Carlos Garcia Rawlins/ Reuters)
Todos os alimentos que Francisca e sua família tinham no dia 14 de abril de 2016
-
28. Para saber mais
zoom_out_map
28/28 (Meridith Kohut/Bloomberg)