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Assim como na Venezuela, o centro foi extirpado no Brasil, diz Peter Hakim

A EXAME, o cientista político Peter Hakim falou sobre democracia na América Latina e a preocupação com o futuro do regime no Brasil

Nicolás Maduro: na Venezuela, como no Brasil atual, prevaleceram posicionamentos políticos extremados (Contributor/Bloomberg/Getty Images)

Nicolás Maduro: na Venezuela, como no Brasil atual, prevaleceram posicionamentos políticos extremados (Contributor/Bloomberg/Getty Images)

Gabriela Ruic

Gabriela Ruic

Publicado em 26 de outubro de 2018 às 06h00.

Última atualização em 26 de outubro de 2018 às 11h06.

São Paulo – Assim como na Venezuela, o centro, alinhado à direita ou à esquerda, foi extirpado da política brasileira nas eleições 2018. A constatação é do cientista político americano Peter Hakim, um dos maiores especialistas em política externa da América Latina e fundador do prestigiado think tank, The Dialogue.

Por escrito, Hakim concedeu uma entrevista a EXAME nos dias seguintes ao resultado do primeiro turno da corrida eleitoral e deu o seu diagnóstico sobre o panorama político no Brasil e o estado da democracia na América Latina. “A democracia foi severamente maltratada em alguns países”, avaliou, “mas vejo eleições justas e competitivas na maior parte da região”.

Apesar do posicionamento positivo em relação aos últimos acontecimentos eleitorais latino-americanos, Hakim vê com preocupação os próximos capítulos da história brasileira e deixa o alerta: “Tudo o que acontece no Brasil pode ter um profundo e poderoso impacto na América Latina.”

EXAME – Há quem diga que a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos abriu espaço para o surgimento de governos conservadores e de extrema-direita em todo o mundo. Como você enxerga esse fenômeno na América Latina? O regime democrático está em crise na região?

Peter Hakim – Eu acho prematuro e injustificado alegar uma nova tendência global com base em algumas experiências políticas em diferentes países do mundo. E Trump está no governo há apenas dois anos. A maioria dos governos de direita, de nacionalistas-populistas na Turquia, Egito, Israel, Filipinas e Rússia surgiram antes da eleição de Trump e essas mudanças de direção rumo ao autoritarismo podem ser explicadas por eventos domésticos em cada um dos países, mas não por um contágio.

Esses países sofrem com os mesmos problemas: desafios econômicos, fluxos inéditos de imigrantes e refugiados, aumento do crime e da violência. E seus eleitores estão reagindo de formas muitos similares. Mas a medida com a qual estão minando os valores democráticos, os direitos humanos e o progresso social varia bastante. As diferenças precisam ser enfatizadas mais do que as similaridades.

Certamente há uma inclinação à direita hoje na América Latina com as eleições recentes de Mauricio Macri na Argentina, Iván Duque na Colômbia, Sebastián Piñera no Chile e, quase que certamente, Jair Bolsonaro no Brasil. Mas a esquerda prevaleceu em outros países, como o México, a Costa Rica, o Uruguai e o Equador. Mais importante que isso, com exceção de Bolsonaro, nenhum desses presidentes conservadores tem visões extremistas, demonstram tendências autoritárias ou denigrem os direitos humanos e a democracia.

Muitos deles estão procurando governar com responsabilidade na centro-direita. O Brasil se junta à Venezuela como o país no qual o centro, tanto na direita quanto na esquerda, foi extirpado. De fato, Bolsonaro pode se tornar o Hugo Chávez da direita, embora eu duvide que ele tenha o carisma ou habilidade política para se impor no Brasil com a força de Chávez na Venezuela.

Portanto, não, eu não vejo uma crise de governança na América Latina. Nem prevejo o colapso da democracia na região. A democracia foi severamente maltratada em alguns países, como Venezuela, Bolívia, Nicarágua, Cuba, mas vejo eleições justas e competitivas na maior parte da região e governos tentando resolver os problemas que desafiam seus países. Contudo, não temos como escapar de dois fatos: a democracia brasileira corre riscos e o que acontece no Brasil pode ter um impacto profundo e poderoso na América Latina.

EXAME – A corrida presidencial do Brasil pegou fogo, com candidatos conhecidos do eleitorado e novos nomes se mobilizando para ganhar capital político. O que essa disputa nos mostra sobre o que está acontecendo no país desde o impeachment de Dilma Rousseff em 2016?

Peter Hakim – A campanha eleitoral e o primeiro turno revelaram uma população raivosa e frustrada, que perdeu a confiança nas lideranças políticas e nas instituições do governo e quer uma profunda e extensiva mudança. Quase metade dos eleitores rejeitaram os candidatos presidenciais convencionais e votaram em Jair Bolsonaro (PSL), o candidato mais estranho e extremista da corrida. E ele quase venceu no primeiro turno.

O único desafio sério para Bolsonaro veio dos eleitores que mantiveram a fé no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por crer que, mesmo atrás das grades e inelegível, ele poderia mostrar um pouco da magia que o tornou o presidente mais popular da história brasileira, dessa vez por meio de seu substituto, Fernando Haddad.

Há um toque de fantasia nos dois grupos, que, juntos, representam 75% dos votos válidos. Os resultados são prova do desespero dos brasileiros e a sua demanda por uma revisão completa da política, governo e liderança do país.

Isso deveria ter sido compreendido antes, quando mais de um milhão de brasileiros foram às ruas protestar contra a corrupção e condutas ilegais do governo, quando a maioria aplaudiu o impeachment de Dilma, quando seu vice-presidente, Michel Temer, viu sua aprovação cair vertiginosamente em poucos meses ou quando as pesquisas presidenciais revelaram apoio modesto aos candidatos centristas.

Apesar do sucesso do partido de Bolsonaro (que agora será a segunda maior bancada do Congresso), a eleição deste ano dificilmente resultará em um presidente ou governo que terá a autoridade, credibilidade e competência necessárias para confrontar as múltiplas crises que o país enfrenta. Essa é a revelação mais cruel que a campanha e o primeiro turno trouxeram.

EXAME – Jair Bolsonaro conquistou a liderança e se manteve nela. Ele é um político conhecido, com anos de Congresso. Em que ponto ele acertou na sua candidatura? O eleitorado o enxerga como uma ruptura com o establishment? Qual a mensagem que os eleitores querem mandar ao escolherem por ele?

Peter Hakim – Primeiro, precisamos entender que Bolsonaro é um político conhecido e que serviu no Congresso por quase trinta anos. Ele também é visto como um outsider, cujas visões sobre a democracia, direitos humanos, feminismo e o papel das forças armadas e policiais o colocam em confronto direto com grande parte dos políticos brasileiros.

Agora, se Bolsonaro reconheceu esse desespero crescente da população ou não, ele mais do que qualquer outro candidato se transformou no mensageiro da mudança, se identificou (seja por intuição, análise ou oportunidade) e martelou nas questões que são as maiores preocupações dos brasileiros: os níveis chocantes de corrupção, o crime e a violência, a crise econômica e os péssimos serviços públicos.

Ele propôs soluções radicais e quase indizíveis, como a tortura e execução de criminosos e a volta da ditadura militar. Essas posições podem até ter sido rejeitadas pelos eleitores, mas ressaltaram o seu comprometimento (ou obsessão) em confrontar o que os brasileiros médios enxergam como os problemas mais preocupantes do país. Seu louvor pelo regime militar, por exemplo, pode ser visto como uma ameaça à democracia, mas também pode ser entendido como uma metáfora por uma transformação radical do Brasil.

EXAME - Do outro lado do espectro, temos Fernando Haddad (PT), substituindo a candidatura do ex-presidente Lula. Como você enxerga a estratégia do partido durante a corrida presidencial?

Peter Hakim – O PT não teve uma estratégia. Eles tinham uma marca e queriam vendê-la: Luiz Inácio Lula da Silva. Inicialmente, a tarefa do partido era a de tentar colocar Lula nas urnas. Embora não tenham obtido sucesso, a batalha legal segue colocando o político nos holofotes, trazendo a atenção de seus apoiadores e detratores.

Lula sempre esteve no topo das pesquisas, mas também detinha o maior nível de rejeição entre todos os candidatos. Um terço da população o queria de volta ao poder, enquanto cerca de 50% estava satisfeita em vê-lo preso.

Quando Lula foi finalmente declarado inelegível e Haddad nomeado seu substituto, o desafio era o de convencer os eleitores de que Haddad adotaria a agenda de Lula e seria seu interlocutor. Em partes, esse plano funcionou e os seus apoiadores se multiplicaram, alavancando sua candidatura ao segundo turno, logo atrás de Bolsonaro, e com uma liderança evidente ante os outros rivais.

Mas os números de Haddad cresceram lentamente após a empolgação inicial na comparação com os números de Bolsonaro. A questão é se o petista conseguirá desviar sua candidatura e se estabelecer como um candidato legítimo, digno dos votos sem que isso comprometa a lealdade dos eleitores e do partido de Lula. Mesmo que ele consiga fazer isso, não há nenhuma estratégia que irá transformá-lo em vencedor.

EXAME – Em outros tempos, Geraldo Alckmin (PSDB) seria o líder natural dessa corrida eleitoral em um eventual segundo turno contra o PT. O que deu errado?

Peter Hakim – Essa é a pergunta mais difícil de responder. Como é possível que Alckmin tenha terminado a corrida com menos de 5% dos votos válidos e em quarto lugar? Afinal, Alckmin foi duas vezes governador de São Paulo, o maior estado do país. Em 2014, ele capturou quase 60% dos votos em sua vitória.

Pela maioria dos padrões, ele estava mais bem qualificado do que os 13 candidatos que concorreram à presidência neste ano. E ele fez um bom trabalho como governador em seus dois mandatos, embora tenha falhado em confrontar a corrupção dentro de seu próprio partido. Por que seus eleitores em São Paulo o abandonaram completamente? Por que sua performance como governador foi ignorada?

A única resposta que tenho é a mesma de outros analistas. Alckmin pode ter sido um bom governador, mas foi um candidato terrível – sem charme, sem carisma. E ele, mais do que qualquer outro candidato, acabou sendo mais identificado como símbolo da elite política hoje amplamente odiada. Me parece que as qualidades que lhe permitiram estabelecer uma carreira bem-sucedida na política acabaram por o transformar em inaceitável para os eleitores brasileiros em 2018.

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