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As 4 coisas que podem efetivamente mudar no governo Biden -- e o que não muda

A diferença no discurso entre Donald Trump e Joe Biden é quase radical. Mas é em alguns setores que a nova direção democrata ficará mais nítida

Joe Biden: presidente eleito assume a Casa Branca nesta quarta-feira, 20 (Tom Brenner/Reuters)

Joe Biden: presidente eleito assume a Casa Branca nesta quarta-feira, 20 (Tom Brenner/Reuters)

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Carolina Riveira

Publicado em 20 de janeiro de 2021 às 06h00.

Última atualização em 20 de janeiro de 2021 às 14h09.

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Tudo novo, mas não muito. É o lema que o mercado financeiro e parte do mundo político dos Estados Unidos apostam que definirá o governo do presidente eleito Joe Biden, que toma posse nesta quarta-feira, 20.

Enquanto o presidente Donald Trump teve de lidar com Câmara democrata e somente Senado republicano, Biden ganhou, de quebra, algum tipo de unanimidade no Congresso, com Senado e Câmara tendo ligeira maioria democrata. O cenário parece perfeito para que os democratas mudem muita coisa do que foi feito nos últimos anos, e é o que deve de fato acontecer em algumas frentes. Mas as mudanças não devem ser amplamente radicais, argumentam os analistas.

Primeiro, porque a maioria de Biden no Congresso está longe de confortável. O Senado, por exemplo, terá 50 senadores para cada lado até as próximas eleições legislativas, em 2022. A única vantagem democrata está no voto de desempate da vice-presidente Kamala Harris, uma prerrogativa dos vices nos EUA. Além disso, a Câmara tem menor maioria democrata do que na última legislatura, com 222 a 211. Qualquer mudança que não atinja amplo consenso -- o que tem se tornado cada vez mais difícil com a polarização crescente nos EUA -- pode atrapalhar as votações caras ao governo.

“É muito mais difícil agora do que era há algumas gerações ganhar votos da minoria no Congresso. As lealdades partidárias estão muito fortes”, disse o cientista político Charles Bullock, professor da Universidade da Geórgia, em entrevista anterior à EXAME. “Tudo isso significa que o 117º Congresso muito dificilmente vai adotar qualquer legislação que traga mudanças dramáticas.”

Além disso, a Suprema Corte tem maioria conservadora de 6-3 após a nomeação da juíza Amy Barrett por Trump no ano passado, meses antes do fim do mandato, o que também deve ser um empecilho a Biden caso republicanos levem alguma medida à Justiça.

Tudo somado, esse cenário é um dos motivos que têm feito o mercado financeiro se animar com a "onda azul". "Agora que os democratas realmente ganharam a Geórgia, os mercados de ações enfrentam o melhor ambiente político possível em Washington. Os EUA terão um governo unificado e eficaz, mas as políticas radicais ou impopulares serão descartadas pela divisão 50/50 do Senado, que dará aos senadores centristas de qualquer um dos partidos o poder de tomar decisões", diz o analista Anatole Kalestsky, fundador da Gavekal Research, em relatório a clientes da Exame Research (cadastre-se para ler na íntegra).

Também é fato que a vitória de Biden, um candidato visto como mais moderado dentro do Partido Democrata, representou uma união das frentes progressistas dos EUA, com apoios que foram da centro-direita politicamente liberal às alas mais à esquerda. Essas alas podem se unir para passar temas mais consensuais. Mas passada a eleição e com Trump derrotado, as desavenças em temas como gratuidade na saúde e na educação superior -- defendidos pela ala de Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez -- devem voltar a aparecer.

Ainda que sem grandes mudanças estruturais, algumas frentes devem ter mudanças já previstas. Já nesta quarta-feira, Biden deve acionar uma série de decretos executivos para desfazer ao menos 15 medidas de Trump, como a saída do Acordo de Paris.

Ao longo dos primeiros meses de mandato, uma das expectativas é que o Congresso aprove também o pacote fiscal de 1,9 trilhão de dólares proposto por Biden na semana passada, assim como estimule, na economia, investimentos mais sustentáveis. Alguma regulação às grandes empresas de tecnologia também está no radar, embora uma possível nova legislação não deva ser tão ampla quanto poderia ser em governos de outros candidatos democratas.

Veja alguns dos debates que podem levar a mudanças -- em maior ou menor grau -- a partir da posse de Biden nesta quarta-feira.

Salário mínimo, auxílio econômico

No anúncio de seu pacote de 1,9 trilhão de dólares, proposto na semana passada, Biden e seu gabinete afirmaram que o objetivo é usar o montante para pagamentos diretos às famílias americanas e para empréstimos a pequenos negócios. Um dos motivos é a tentativa de recuperar a economia diante da crise do coronavírus. A projeção do Banco Mundial é de que a economia americana tenha encolhido 3,6% em 2020, e o desemprego, em baixa histórica antes da pandemia, foi de 3,5% a quase 7%.

Dentre as mudanças nessa frente que podem ser implementadas caso o Congresso aprove o pacote, estão a ampliação de pagamentos de seguridade social e aumento do salário mínimo nacional dos atuais 7,25 dólares para 15 dólares a hora. Alguns estados já têm valor mínimo neste patamar, mas muitos estados ainda pagam na casa dos 7 dólares, um valor que não muda há mais de uma década.

A política de aumento do salário mínimo foi uma das principais promessas democratas na eleição, com o objetivo do partido em se aproximar de duas importantes bases eleitorais: os jovens e os trabalhadores menos qualificados, que são mais impactos por aumentos do mínimo federal.

Outra das medidas deve ser tentar passar junto ao Congresso pacotes de auxílio às dívidas de moradia e pagamento de aluguel, para evitar que americanos sejam despejados diante da alta no desemprego.

Fila de solicitantes de seguro-desemprego nos EUA: medidas como aumento do salário mínimo são formas de Biden buscar parte do eleitoral trumpista (Bryan Woolston/Reuters)

Economia verde e "Buy american"

Também junto ao novo pacote trilionário e com novos investimentos no futuro, Biden deve apresentar políticas de incentivo a uma economia mais sustentável e moderna. Mesmo nessa área, há desavenças: o presidente não apoia o que tem sido chamado de Green New Deal, proposto pela ala mais à esquerda e apoiadores mais jovens do Partido Democrata. O nome faz referência a uma versão "verde" do New Deal de Franklin Roosevelt na década de 30, implementado após a crise de 1929 e cujos investimentos públicos foram parcialmente responsáveis pela retomada da economia americana na época.

Ainda assim, na campanha, Biden também prometeu usar os investimentos sustentáveis para gerar empregos e modernizar a produção americana para uma nova era. Se bem-sucedida, a política será ainda uma tentativa de resposta ao enfraquecimento da "velha indústria" no país, como montadoras e minas de carvão, cujos trabalhadores insatisfeitos com a perda de empregos são grandes eleitores de Trump desde 2016. Na frente industrial, Biden também deve usar parte de seu pacote de estímulo e apoio no Congresso para leis que estabeleçam uso de recursos públicos na compra de produtos americanos -- ao estilo "America First" (EUA primeiro) do presidente Donald Trump.

Por fim, o governo também deve revogar a decisão de Trump de sair do Acordo de Paris -- fechado em 2015 e que estabelece metas para a redução da poluição global, e do qual Trump saiu logo após tomar posse.

Europa mais perto, China nem tanto

Após quatro anos em que Trump se afastou dos países da União Europeia, aliados históricos dos Estados Unidos desde as grandes guerras mundiais, uma certeza entre os analistas é que Biden tentará retomar a proximidade com os europeus. O aceno à Europa é também uma estratégia para fortalecer a "frente Ocidental" contra a China, em meio à guerra comercial.

Primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel, e o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump durante a cúpula do G7

Primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel, e o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump: desgaste nas relações EUA-Europa (Michael Kappeler/Getty Images)

A disputa com os chineses, aliás, entram para a lista de coisas que não devem mudar bruscamente neste começo de governo Biden: embora deva buscar mais os meios diplomáticos do que Trump, Biden deve seguir de portas fechadas à China e a parte de suas empresas, e vice-versa. Há alguma expectativa por avanço em alguns acordos, como exigência de compra de determinado valor de produtos, avanços que já começaram nos últimos anos, mas não por um acordo de abertura total.

“O presidente eleito entende que o mundo mudou [desde o governo Obama] e a China é um lugar diferente agora. Acho que o que se verá com a China é uma continuação de negociações comerciais muito duras”, disse em entrevista anterior à EXAME Francis J. Kelly, chefe de Relações com o Governo e Assuntos Públicos para as Américas do Deutsche Bank.

Já a relação de Biden com o Brasil será diferente do que sob Trump, a quem o presidente Jair Bolsonaro teceu diversos elogios durante o mandato. Sob Biden, a expectativa é alguma pressão mais forte na frente ambiental, mas, para Kelly, a tendência não é de embates duros entre os dois países, uma vez que os EUA são ainda o segundo maior parceiro comercial do Brasil.

Na prática, para o Brasil, um dos fatores de maior atenção nesta frente é que algum tipo de avanço nos acordos entre China e EUA poderia, por exemplo, impactar as exportações brasileiras de soja, com os chineses voltando a comprar mais soja americana. Ainda assim, a projeção entre os analistas é que a China se mantenha como grande compradora da soja brasileira, ainda que com alguma concorrência maior dos americanos. Soja e minério de ferro representaram dois terços das exportações brasileiras à China no ano passado.

Mais saúde e Ensino Superior, mas não universais

Internamente, uma demanda histórica dos apoiadores democratas mais à esquerda é um sistema público e universal de saúde, aos moldes de modelos como o SUS brasileiro, o NHS britânico ou outros formatos europeus, ainda que menos centralizados do que os dois primeiros exemplos. Biden deixou claro que não apoiará o que o chamado healthcare for all (saúde para todos, que virou o mote do senador Bernie Sanders).

Mas deve seguir com alguma ampliação do Affordable Care Act, o "Obamacare", passado quando Biden era vice no governo de Barack Obama. As reformas do Obamacare incluíram, por exemplo, expansão dos programas Medicare e Medicaid, de gratuidade a famílias e idosos muito carentes, projetos que Biden deve tentar expandir.

Na frente de educação, ele vem acenando à esquerda ao afirmar que vai apoiar políticas como perdão a dívidas estudantis no Ensino Superior -- que já ultrapassam 1 trilhão de dólares nos EUA. Outra política que pode sair do papel é o acesso universal à pré-escola. Um dos planos, e que pode ser um dos primeiros decretos executivos de Biden, é a reversão dos cortes de impostos decretados por Trump logo no primeiro ano de seu mandato, e que poderiam financiar mais programas sociais.


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