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Argentina: desvalorização recorde sufoca economia dos hermanos

Peso chega a patamar mais baixo da história diante do dolár; país ainda sofre com crescimento baixo, taxa de pobreza de 42% e dívida externa de 44 bilhões de dólares

Inflação chega a 52% na Argentina e desvalorização do peso bate recorde (JUAN MABROMATA/AFP/Getty Images/Getty Images)

Inflação chega a 52% na Argentina e desvalorização do peso bate recorde (JUAN MABROMATA/AFP/Getty Images/Getty Images)

CA

Carla Aranha

Publicado em 28 de outubro de 2021 às 06h00.

Última atualização em 28 de outubro de 2021 às 18h43.

Nos últimos dias, as casas de câmbio têm lotado em toda a Argentina. Na ânsia de salvar suas economias, em meio a um cenário de inflação galopante e depreciação do câmbio, os argentinos têm procurado cada vez mais trocar pesos por dólar. A moeda americana bateu um recorde de valorização nesta quarta, 27, chegando a 196 pesos.

Não que o viés de alta seja novidade: com uma inflação de 52% entre janeiro e setembro deste ano, uma taxa de pobreza de 42% e um crescimento do PIB que não deverá repor as perdas de 2020 – sem falar na dívida externa de 44 bilhões de dólares –, a procura pela moeda americana não começou hoje. O temor de um descontrole inflacionário e de uma piora na economia, no entanto, vêm jogando o peso no fundo do poço.

“A aplicação de políticas que já não deram certo antes, como o congelamento de preços, a emissão de moeda para bancar gastos do governo e a falta de consenso político para negociar a dívida externa estão levando a um cenário de incerteza que se traduz, por exemplo, pela subida do dólar”, diz o economista argentino Martin Ravazzani, diretor da consultoria Ecolatina.

Em meados deste mês, o governo decidiu tabelar os preços de mais de 1.400 produtos para controlar a inflação, repetindo uma medida já colocada em prática por governo anteriores – de Raúl Alfonsín, presidente da Argentina de 1983 e 1989 a Cristina Krishner, não faltam exemplos de mandatários que tentaram desafogar a economia apelando para o congelamento de preços. No Brasil, medidas desse tipo ocorreram diversas vezes nas décadas de 80 e no início da de 90. Os economistas passaram a chamar o tabelamento de “loucura econômica”, até porque nunca deu certo.

Na Argentina, as sucessivas crises econômicas e um histórico de preços em alta levaram a população a preferir, há muito tempo, o dólar como reserva de valor. Depois da hiperinflação dos anos 80 e a crise econômica de 2002, quando o PIB caiu quase 10,9%, o governo chegou a proibir a remessa de recursos ao exterior, tal a procura pela moeda americana. Pelo menos nos últimos vinte anos, o dólar vem ocupando um papel central na vida cotidiana na Argentina, sendo aceito em diversos locais, em uma espécie de dolarização da economia.

Especialistas apontam também para um componente populista na crise da Argentina -- desta e das passadas. “Dessa vez, o governo está de olho nas eleições legislativas, que acontecem em 14 de novembro, e acredita que segurar os preços pode ajudar”, diz o economista argentino Fabio Giambiagi, pesquisador associado da Fundação Getúlio Vargas. “A história já mostrou que isso não funciona. Além disso, em janeiro, quando acaba o tabelamento, provavelmente haverá uma escalada de preços ainda maior”.

A crise na Argentina começou a assumir contornos mais dramáticos com a pandemia, que derrubou o PIB do país em quase 10% em 2020 – este ano, a expectativa de crescimento é de 7,6%. A economia já passava por maus momentos. Desde 2017, quando o PIB cresceu pela última vez (2,8%), o poder aquisitivo da população caiu 16%. Não é resultado tão ruim comparado ao de outros países da América Latina.

A economia brasileira encolheu 3,3% em 2016 (depois de um tombo de 3,5% em 2015), para experimentar uma expansão de 1,9% em 2019. O PIB do México caiu 0,1% em 2019, diante de um crescimento de 2,2% em 2018 e 2,1% em 2017. “O problema é que a Argentina convive com uma inflação alta há vinte anos e não conseguiu criar um plano para tirar a economia do atoleiro”, diz Bruno Porto, sócio da PwC Brasil. “A pandemia só piorou um quadro que já vinha claudicante”.

Há ainda outra questão. No afã de melhorar o poder de compra dos argentinos, o governo decidiu reajustar o salário mínimo em 52,7% este ano. O aumento deve ser aplicado progressivamente até fevereiro, chegando a 33 mil pesos. O presidente Alberto Fernandéz também decidiu estender subsídios para as tarifas de energia, água e transporte público. Com isso, o governo passou a emitir mais moeda, frente à necessidade de bancar gastos maiores. “Já havia uma conjuntura mundial de maior inflação e isso se somou a ações que elevaram os gastos públicos”, diz Ravazzani.

Imbróglio político

Outra pedra no sapato da Argentina é a dívida de 44 bilhões de dólares com o Fundo Monetário Internacional (FMI), contraída durante o governo do ex-presidente Mauricio Macri em 2018. Uma das exigências do fundo para reabrir as negociações é a elaboração de um plano econômico com reformas estruturais. “Com as disputas entre partidos e a falta de união, dificilmente o país conseguirá montar um plano aos moldes do que deseja o FMI”, diz Giambiagi. “A situação é ainda mais preocupante visto que as reservas da Argentina estão na lona”.

As reservas brutas do país caíram de 77 bilhões de dólares em abril de 2019 para 39 bilhões de dólares no ano passado – as reservas líquidas, que excluem compromissos do Banco Central em moeda estrangeira, estão perto de zero, segundo analistas de mercado. A corrida do dólar foi estimulada principalmente pela desvalorização do peso no ano passado e a falta de confiança nas medidas econômicas.

Para frear a procura pela moeda americana, o governo lançou um imposto de 35% sobre compras no exterior com cartão e pagamentos de transações online em dólar. Medidas semelhantes já haviam sido tomadas durante o governo Macri, que definiu um limite mensal para a compra de moeda estrangeira. Foram decretadas restrições também para operações de empresas em dólar.

Os desentendimentos entre Fernandéz e Cristina Kirchner, sua vice, apontada como a comandante de fato, também não ajudam. Em setembro, uma queda de braço pública entre os dois teve como desfecho uma onda de demissões em cinco ministérios e na chefia de gabinete do presidente.

Em uma carta aberta à nação, Cristina pediu a cabeça do porta-voz da Casa Rosada, Juan Pablo Biondi, e Santiago Cafiero, chefe de gabinete de Fernandéz. Depois de uma briga pública entre o presidente e a vice, Biondi e Cafiero acabaram saindo.

E aliados de Cristina, como Aníbal Fernández, ex-chefe de gabinete, e Daniel Filmus, ex-ministro da Educação, voltaram ao governo: o primeiro, à frente da pasta da Segurança Pública, e o segundo como titular do Ministério da Ciência. “Trata-se de algo quixotesco, que não ajuda em nada a economia”, diz Gambia. “Resta a esperança de que seja o prenúncio do fim do peronismo, que se perpetua há tanto tempo”.

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