Aviões de várias companhias ficaram no chão, impedidos de voar. (Lindsey Wasson/File Photo/Reuters)
Gilson Garrett Jr
Publicado em 7 de dezembro de 2020 às 12h26.
Última atualização em 7 de dezembro de 2020 às 14h03.
Na próxima quarta-feira (9), após dois acidentes fatais e quase dois anos de aterramento global, o Boeing 737 MAX volta ao ares - no Brasil, pela Gol, a única brasileira a operar o modelo e a primeira do mundo a voá-lo novamente.
Em 2018, os acidentes da Lion Air e da Ethiopian Airlines colocaram o Max, um dos principais projetos da Boeing, em xeque. Como é comum na aviação, os acidentes não foram causados por um único motivo, por uma série de fatores adversos que levaram às fatalidades.
O 737 MAX é a mais recente versão aprimorada do 737, aeronave pioneira da Boeing lançada originalmente nos anos 1970. Com o passar do tempo, o modelo sofreu diversos upgrades para aumentar seu alcance, capacidade e eficiência no consumo de combustível - o maior custo operacional das companhias aéreas.
Principal rival da americana Boeing, a europeia Airbus introduziu em 2014 o A320 Neo, também uma versão aprimorada do A320, que prometia uma economia de combustível de 15% em relação aos modelos equivalentes da época. Àquela altura, a Boeing, que estava focada no desenvolvimento do 787 (de corredor duplo), ainda não tinha planos de uma nova aeronave de “corredor único” - e teve que “correr atrás”.
A economia prometida pelo A320 Neo se devia, principalmente, aos novos e maiores motores que a Airbus colocou no modelo. “Neo” significa “new engine option” (nova opção de motor). Substituir os motores por versões mais econômicas é uma maneira das fabricantes de aviões suprirem a demanda de eficiência das companhias sem necessariamente desenvolver um novo avião do zero, o que é extremamente caro e pode levar alguns anos, o que daria à Airbus tempo de sobra para “nadar de braçada” sozinha no mercado dos aviões de corredor único supereficientes.
Entretanto, por ser mais antigo, de uma época em que as bagagens e cargas eram carregadas manualmente nos aviões, o Boeing 737 é um pouco mais “baixo” (próximo do chão) e não comporta motores muito maiores, como os do rival A320 Neo. A solução da Boeing foi então, grosso modo, “inverter” os novos motores para “fazer caber”, deixando parte deles acima da linha da asa.
A nova posição dos motores alterou a aerodinâmica da aeronave, aumentando seu ângulo de ataque - a inclinação em relação ao solo no momento da decolagem - o que poderia levar a aeronave a perder sustentação durante o voo. Os engenheiros da Boeing perceberam o problema, mas aumentar o trem de pouso para comportar motores maiores totalmente embaixo das asas não era uma opção, porque envolveria o redesign completo do 737.
A solução para o “hardware” defeituoso veio de um “software”, mais barato e mais rápido de fazer. O chamado “MCAS” detectaria o ângulo de ataque maior que o recomendado e, automaticamente, corrigiria sua posição no ar, jogando o nariz do avião para baixo. Mas o computador de bordo recebia informações de apenas um dos dois sensores de ângulo de ataque que, à época, reportou dados divergentes da realidade do voo. Foram essas informações incorretas de um único sensor, combinado com outros fatores, inclusive humanos, que levou aos acidentes.
Além da falta de redundância dos sensores, a Boeing introduziu o MCAS sem orientar e treinar os pilotos para operá-lo ou desativá-lo em situações adversas. Exigir um treinamento adicional de todos os pilotos das antigas gerações do 737 para operar o Max seria oneroso demais para as companhias, que poderiam acabar escolhendo o A320 Neo para as suas frotas. O modelo da Airbus não requeria treinamento adicional para pilotos que já operavam a família 320.
Mesmo nessas circunstâncias, a FAA, agência reguladora da aviação americana, certificou o 737 MAX, sendo seguida por todas as outras agências pelo mundo, incluindo a brasileira ANAC. Após dois acidentes semelhantes em poucos meses, a FAA recomendou o aterramento de todos os 737 Max, sendo novamente seguida por agências de outros países.
Nos últimos 20 meses, a Boeing chegou a parar completamente a linha de produção do MAX enquanto trabalhava na correção dos software MCAS. A partir de agora, o software recebe informações dos dois sensores de ângulo de ataque e, em caso de divergências, os pilotos são avisados e o software não se sobrepõe à autonomia dos pilotos. Os treinamentos que a Boeing queria evitar agora são obrigatórios e específicos sobre o MCAS, preparando-os para lidar com o software nas mais diferentes situações que podem vir a acontecer.
O processo de recertificação do MAX envolveu praticamente todos os players do mercado da aviação mundial na maior junta técnica aeronáutica da história da aviação, a Joint Operators Evaluation Board (Conselho Conjunto de Avaliação de Operadores, em inglês), que envolveu, além da própria Boeing, as companhias aéreas, a IATA (Agência Internacional de Transportes Aéreos) e agências reguladores dos EUA, Canadá, Europa, Brasil e Austrália.
“Foi o maior processo de certificação que uma aeronave já passou na história da aviação”, explicou Paulo Kakinoff, presidente da Gol, no voo teste do 737 MAX com jornalistas nesta segunda-feira (7). EXAME embarcou no voo, que decolou as 11h do aeroporto de Congonhas e pousou em Confins (MG), sem imprevistos, às 12h15.