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A vida em meio à crise em Porto Rico

Mary Williams Walsh  Agora é o oficial: os Estados Unidos também têm um estado falido, assim como a Europa tem a Grécia. O maior território não incorporado dos EUA, Porto Rico, ficou sem dinheiro em caixa este ano e parou de pagar a dívida pública. Agora, o congresso norte-americano está criando um painel de supervisão […]

PORTO RICO: família brinca em piscina de plástico na favela de La Perla, a maior da ilha americana / Angel Franco/The New York Times

PORTO RICO: família brinca em piscina de plástico na favela de La Perla, a maior da ilha americana / Angel Franco/The New York Times

DR

Da Redação

Publicado em 19 de agosto de 2016 às 12h40.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h11.

Mary Williams Walsh 

Agora é o oficial: os Estados Unidos também têm um estado falido, assim como a Europa tem a Grécia.

O maior território não incorporado dos EUA, Porto Rico, ficou sem dinheiro em caixa este ano e parou de pagar a dívida pública. Agora, o congresso norte-americano está criando um painel de supervisão para tomar as decisões até que a ilha retome o controle de suas finanças.

As similaridades com a Grécia são impressionantes: um paraíso ensolarado que do dia para a noite declara falência, uma dívida enorme feita em uma moeda – o euro, o dólar – forte demais para a economia local. Ambas as crises fizeram ressurgir velhos debates sobre o que poderia ter dado errado, de quem é a culpa e como reagir à crise. Austeridade? Um pacote de ajuda econômica? Ou alguma outra coisa?

Enquanto o debate se alonga, as coisas só pioram.

Em Washington, D.C., os problemas de Porto Rico frequentemente são descritos nos termos de uma “crise humanitária” – uma frase que nos faz pensar em fome, guerra, crianças esqueléticas e refugiados traumatizados chegando em barcos improvisados. Mas não é isso que vemos lá. Há um panorama confuso de contradições.

Os supermercados estão cheios de mercadorias e muitas casas estão vazias. Trens novos em folham passam em frente a lojas fechadas. Patriotas que denunciam o imperialismo norte-americano fazem compras no Wal-Mart. Doze por cento de desemprego e nenhuma alma viva disposta a colher o café. Adolescentes dançando com vestidos estilosos no baile de formatura enquanto os sem-teto dormem na calçada. São os Estados Unidos cobertos com uma camada de verniz surreal.

Pessoas assustadas preferem se mudar para o continente, embora muitas outras acreditem que a supervisão federal trará as mudanças necessárias e dará uma boa razão para que continuem na ilha. Muitos inclusive já começam a voltar.

Ninguém sabe ao certo até que ponto o governo federal vai se intrometer. Alguns esperam um conflito de culturas destrutivo. Será que as coisas vão piorar antes que melhorem? Piorar até que ponto? Será que vão melhorar algum dia?

Mesmo que não estejam sofrendo com o desemprego, boa parte dos porto-riquenhos sofre com o medo do desconhecido, afirmou Miguel A. Soto-Class, presidente do Centro pela Nova Economia, instituto de pesquisa com sede em San Juan.

Ele conta que durante muitos meses ficou pensando na frase: “Dançando na beira do abismo”. Esse é o nome de um livro que fala sobre Versailles pouco antes da Revolução Francesa. Mas, para ele, a frase resume o sentimento de impotência que parece ter acometido praticamente todo mundo em Porto Rico.

Em 2001, Porto Rico encontrou uma nova forma de combater a pobreza. O país identificou 742 “Comunidades Especiais” – lugares deixados de lado quando o resto da economia crescia. O governo enviou organizadores para encontrar líderes locais que pudessem determinar quais eram as maiores necessidades da comunidade. Além disso, o governo separou US$1 bilhão para realizar projetos por meio de um fundo exclusivo do poderoso Banco de Desenvolvimento Governamental.

O dinheiro deveria vir do governo central, mas as ideias deveriam partir do público – as pessoas que sabem quais são suas necessidades.

“Foi uma ótima ideia”, afirmou Carmelo García, marceneiro de Abra San Francisco, um grupo de casas que fica no alto das montanhas nos arredores da cidade costeira de Arecibo. O vilarejo foi considerado uma dessas Comunidades Especiais. García Era o presidente do conselho comunitário.

Primeiro o conselho consultou os membros da comunidade. Mais do que qualquer outra coisa, as pessoas disseram que gostariam que suas velhas casas fossem reformadas. O Banco de Desenvolvimento Governamental liberou o dinheiro para a reforma de 11 casas e os trabalhos começaram.

García afirmou que começaram a ter problemas quando descobriu que uma das empresas havia cobrado US$15 mil para instalar um telhado simples de zinco em uma casa. Ele sabia que aquilo era caro demais. E o problema não parou por aí.

Porém, enquanto uma parte do governo gastava milhões tentando reviver essa cidadezinha, outra gastava milhões praticamente para isolá-la. A Autoridade de Rodovias e Transporte, com os olhos na economia da ilha como um todo, expandiu uma via expressa nos arredores, com o objetivo de permitir que os fabricantes levassem seus produtos até San Juan para serem exportados.

A via expressa não tinha saída nos arredores de Abra San Francisco e impedia que a área recebesse transporte público e praticamente qualquer outro tipo de atividade econômica. As pessoas que tinham empregos não conseguiam chegar ao trabalho e as famílias começaram a se mudar.

A nova via expressa também não fez o que prometia. Em vista do aumento nos impostos e da profunda recessão, as fábricas fecharam as portas.

Atualmente, o maior problema de Abra San Francisco não são suas velhas casas, afirmou García. São as que estão vazias. A ausência de moradores causa mais problemas. Muitas casas são invadidas por pessoas que arrancam as janelas e entram para usar drogas.

“Você gostaria de ver nossa ‘escola agrícola’?”, perguntou outro membro do conselho, José Hernández.

Eles seguiram pelo caminho até a escola: García contou que passou seis anos arrecadando US$50 mil para a expansão do prédio. Mas quando o dinheiro finalmente chegou, inúmeras famílias haviam deixado a cidade. Por isso o Departamento de Educação fechou a escola.

Atualmente, o prédio não passa de um estábulo improvisado para a pista de hipismo próxima ao local.

Um caso contra o Cara de Truck

A favela mais famosa de Porto Rico, La Perla, fica em um dos terrenos mais disputados da ilha. Ela avança precariamente sobre a costa do Atlântico, formando um conjunto de casas em cores alegres próximas aos muros da Velha San Juan.

Todos os dias os turistas descem dos navios de cruzeiro que atracam nos arredores para passear pelas ruas de pedra da Velha San Juan, aproveitando as belas vistas e a brisa do mar. Lá do alto, podem ver a série intricada de casas de La Perla, espremidas entre a fortaleza de El Morro e outra cidadela espanhola construída no século XVI.

Porém os turistas quase nunca se aventuram em La Perla. Os guias não aconselham o passeio e alertam sobre traficantes de drogas, ladrões, tiroteios, brigas com facas e vigias que podem confundi-lo com um guarda disfarçado. Todos dizem que se você se meter em encrenca em La Perla, a polícia não virá ajudar.

Entre as pessoas nascidas em Porto Rico, é comum se relacionar com um padrinho que tenha contatos, ajude a avançar na vida e resolva problemas. La Perla é um lugar complicado e, durante muitos anos, ela contava com um padrinho igualmente difícil: Jorge Gómez González, conhecido por todos como “Cara de Truck”, ou Cara de Caminhão.

Atualmente, a história de La Perla fala sobre as possibilidades de existir sem a presença de um padrinho. Em 2014, Cara de Truck foi condenado a 30 anos de prisão em cadeia federal por posse e distribuição de drogas ilegais. Ele recorreu da sentença.

As pessoas de fora sempre falam sobre como “melhorar” as coisas em La Perla. Mas seus moradores acham que isso é só uma desculpa para expulsá-los de lá.

Até Donald Trump tentou fazer isso, afirmam eles. Seus guarda-costas não permitiam que ele fosse à La Perla, mas ele olhou lá do alto e disse que compraria tudo por US$11 milhões.

Não houve negócio.

Já se passaram 10 anos desde aquela ocasião. Então, em 2010, ocorreu um ambicioso plano de renovação urbana que prometia desfazer gargalos, restaurar velhos bairros, triplicar o número de hotéis, criar serviços de veículos leves sobre trilhos e táxis aquáticos, além de criar uma praia artificial bem na frente de La Perla, onde até o momento só existem pedras.

Para La Perla, parecia que queriam tomar conta do lugar mais uma vez. O governo federal é dono das fortificações espanholas de San Juan e proíbe a construção de edifícios privados a menos de nove metros das muralhas, mesmo que as pessoas da cidade acreditem que sejam proprietárias do terreno.

Alguns meses depois ocorreu a maior batida policial da história de La Perla. A polícia estourou a porta, usou uma arma para imobilizar Cara de Truck e o levou embora. Sua mulher, Irma Narváez, conta que também confiscaram a casa.

Mais de 100 pessoas foram indiciadas por posse de drogas e armas. Irma diz que seu marido não tinha drogas, nem armas, nem tempo para se meter em confusão. Contudo, os promotores afirmaram que ele era o cabeça de todo o esquema. Ele se tornou o principal réu do caso EUA contra Jorge Gómez González, também conhecido como Jorge “Cara de Truck”.

O processo exigia que os réus pagassem um total de US$20 milhões ou cedessem propriedades no mesmo valor, listando casas em toda a comunidade de La Perla.

Irma acredita que o verdadeiro objetivo era roubar a terra.

Durante um passeio a pé por La Perla, ela mostrou a casa onde seu tio vivia e que foi desapropriada pelo governo. A casa ainda está em pé, mas o vizinho, Héctor Torres, afirmou que os agentes federais destruíram a garagem, que estaria muito próxima da muralha espanhola.

O que mais ele poderia fazer além de construir uma piscina bem aqui nessa terra de ninguém e continuar tentando viver o sonho americano? “Não tenho medo de morrer para defender isso se precisar”, afirmou Torres, enquanto seus filhos e netos brincavam na água. “Eu ensinei todos os meus filhos a lutarem por isso”.

© 2016 New York Times News Service

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