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A 'tempestade perfeita' que atinge Milei, fez disparar o dólar e ameaça o futuro de seu governo

País gastou mais de US$ 1 bilhão em três dias para segurar câmbio, em meio a uma crise política que desafia o governo

Javier Milei, presidente da Argentina, durante evento em Buenos Aires, em 25 de maio (Tomas Cuesta/AFP)

Javier Milei, presidente da Argentina, durante evento em Buenos Aires, em 25 de maio (Tomas Cuesta/AFP)

Rafael Balago
Rafael Balago

Repórter de macroeconomia

Publicado em 20 de setembro de 2025 às 08h45.

Última atualização em 20 de setembro de 2025 às 09h32.

Enfrentar uma crise política e outra econômica ao mesmo tempo é um dos maiores pesadelos de qualquer presidente. Na Argentina, Javier Milei está enfrentando as duas, em uma sequência de derrotas políticas e problemas econômicos que ameaçam o futuro de seu governo, em uma espécie de tempestade quase perfeita.

Nesta semana, o dólar disparou no país e rompeu o teto da banda de flutuação prevista pelo governo, de 1.474,50 pesos por dólar. Em resposta, o Banco Central passou a vender suas reservas para tentar segurar a cotação da moeda, em quantidades cada vez maiores.

Na quarta-feira, 17, foram vendidos US$ 53 milhões. No dia seguinte, quinta-feira, o montante subiu para US$ 379 milhões. Na sexta, chegou a US$ 678 milhões. Em três dias, mais de US$ 1 bilhão das reservas do BC foi queimado para segurar o câmbio.

Mesmo com o esforço, o dólar continuou subindo e fechou a semana um pouco acima do limite da banda, a 1.475,3 pesos.

Em abril, Milei abandonou o câmbio fixo e adotou um modelo de flutuação dentro de bandas. Se o dólar subir ou cair fora da faixa determinada, o Banco Central deve atuar para trazer o valor da moeda de volta ao previsto.

O ministro da Economia, Luis Caputo, disse que o governo manterá o plano.

"Vamos vender até o último dólar dentro do teto da banda. O programa foi desenhado dessa forma e está desenhado para que os dólares do Banco Central possam ser usados ​​para defender o teto da banda", afirmou Caputo, na noite de quinta.

Na sexta, Milei veio a público culpar a oposição pela alta do dólar.

"Temos a política, desde fevereiro, torpedeando sistematicamente os fundamentos da economia, e isso naturalmente vai gerar turbulência", disse Milei, em entrevista.

"Há pessoas que querem destruir o país e estão dispostas a abrir fogo contra o país para voltar ao poder."

Denúncia de corrupção e derrota nas urnas

A atual crise política do governo começou em agosto, quando foram publicados áudios em que uma voz, atribuída a Diego Spagnuolo, então diretor da Agência Nacional para a Deficiência (Andis), diz que Karina Milei, irmã e principal conselheira do presidente, estaria recebendo propina relacionada à compra de medicamentos para pessoas com deficiência.

Spagnuolo foi demitido após a revelação dos áudios, e a Justiça iniciou investigações.

Milei negou as acusações, mas demorou dias a se posicionar publicamente. Ele viu sua popularidade cair após o episódio.

A segunda bomba política veio no começo de setembro. Seu partido, A Liberdade Avança, perdeu as eleições legislativas na província de Buenos Aires, em 7 de setembro. A legenda teve 34% dos votos, ante 47% do Força Pátria, de esquerda.

A vitória da esquerda aumentou as esperanças de um avanço da oposição no pleito de outubro, que reduziria a capacidade de Molei avançar com seus projetos e poderia sinalizar uma volta do peronismo à Presidência nas eleições de 2027.

Javier Milei, ao lado da irmã Karina: irmãos desfilaram juntos em carro aberto no dia da posse presidencial (Marcelo Endelli/Getty Images)

Nesta semana, Milei teve ainda novas derrotas no Congresso, como a derrubada de vetos dele ao aumento de gastos em universidades, o que aumentou as dúvidas do mercado sobre sua capacidade de avançar com as medidas para cortar despesas e manter a inflação sob controle.

Outro ponto que gerou desconfiança no mercado foi que Milei prometeu aumentar aposentadorias e gastos com educação, em termos reais. Ao apresentar uma proposta de Orçamento para 2026, na segunda-feira, 15, ele disse que "o pior já passou" e disse que virão tempos melhores.

No entanto, analistas apontam que as projeções usadas por Milei estão defasadas. O governo prevê que o PIB argentino cresça 5,4% em 2025 e 5% em 2026. O banco BTG (do mesmo grupo de controle da EXAME) prevê alta de 4% e 3,5%, respectivamente.

Para completar a maré de más notícias, na quarta-feira, 17, o governo argentino divulgou que o PIB encolheu 0,6% no segundo trimestre, na comparação com o trimestre anterior, após três trimestres em alta.

Analistas esperam nova queda no terceiro trimestre, o que colocará o país de volta à recessão.

'Sangue no mar'

Agora, Milei tenta conter a alta do dólar antes das eleições de 26 de outubro, que redefinirão o controle do Congresso.

O partido do presidente tem apenas 36 dos 257 assentos na Câmara dos Deputados, e a eleição traria a possibilidade de um avanço, que pode permitir a aprovação de mais pautas.

Por outro lado, um avanço da oposição pode reduzir o apoio de outros partidos de centro e de direita ao governo Milei e reduzir seu poder na reta final do mandato.

Uma das contas que o mercado anda fazendo é se as atuais reservas do Banco Central serão suficientes para manter a cotação dentro da banda ou não até a eleição.

O BC diz ter atualmente US$ 39 bilhões em reservas totais, mas o dinheiro precisa ser usado também para outros compromissos, como pagar dívidas externas.

O FMI liberou parcelas bilionárias de empréstimos à Argentina neste ano e apoia o programa de flexibilização do câmbio.

O fundo tem dado apoio público a Milei e elogiado suas conquistas, como a de conseguir baixar a inflação de 211% ao ano em 2023 para 117% em 2024. Neste ano, a previsão, antes da crise atual, era de que ela poderia fechar 2025 em torno de 30% anuais.

Para Luís Leal, economista-chefe da gestora G5 Partners, muitos agentes do mercado estão apostando contra a desvalorização do dólar, o que aumenta a pressão.

"No fim do dia, todo mundo quer ganhar dinheiro. É como um tubarão que viu sangue na água. Todo mundo começa a apostar na desvalorização do peso, e esse estresse começa a se espraiar por outros setores da economia", diz.

Se o governo Milei desistir da banda cambial e o dólar disparar ainda mais, haveria uma forte crise, pois a perda de valor do peso geraria mais inflação.

"Controlar o câmbio é uma forma de acelerar a queda da inflação, o que aumenta o apoio da população ao seu plano. Mas se você não deixa o câmbio no valor real, desincentiva a entrada de dólares, e você vai precisar deles", diz Leal.

Ao longo de seu mandato, Milei foi fazendo uma desvalorização controlada do peso. Quando ele assumiu, em dezembro de 2023, a cotação oficial foi elevada para 800 pesos por dólar. Hoje, ela está quase o dobro, perto de 1.500 pesos.

Leal compara a situação atual com a que ocorreu no Brasil em 1999, quando o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso não conseguiu mais segurar a cotação fixa do real, perto de 1 para 1, e liberou o câmbio.

Houve uma crise econômica no país nos anos seguintes, que ameaçou a continuidade do real. Mas naquele momento, pondera ele, não havia uma crise política no Brasil como há na Argentina agora.

"A tendência é o governo argentino não conseguir defender essa banda e tentar provavelmente alargar ou mudar a banda. O mercado vai de novo testar a nova banda e a gente ficar nisso até o governo não ter mais reserva", afirma.

Assim, Milei deixa claro que buscará mais recursos. No domingo, 21, ele vai para os Estados Unidos participar da Assembleia Geral da ONU. Ele disse que negocia com o Tesouro americano um empréstimo para aumentar as reservas do país.

Como os argentinos sabem bem, reservas em dólar seguem sendo o melhor guarda-chuva para as tempestades financeiras lá.

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