Maduro: a Constituinte é só mais um capítulo de uma crise que não parece ter hora para acabar (Miraflores Palace/Reuters)
Carolina Riveira
Publicado em 28 de julho de 2017 às 18h05.
Última atualização em 28 de julho de 2017 às 18h40.
Em meio a uma série de protestos que já deixaram mais de 100 mortos desde abril, a Venezuela vai às urnas neste domingo 30 escolher os 545 representantes que formarão uma Assembleia Constituinte.
A votação foi convocada em maio pelo presidente Nicolás Maduro, que argumenta que o objetivo da Constituinte não é criar uma nova Constituição do zero, mas somente alterar alguns pontos da Carta vigente — que data de 1999, quando o ex-presidente Hugo Chávez chegou ao poder.
Maduro diz que, diante da crise econômica e política da Venezuela (causadas por ele mesmo), é preciso de uma Constituinte “cidadã, operária, comunal e camponesa”, que não seja “dos partidos e da elite”. Mas a medida é polêmica e vem sendo amplamente criticada pela oposição, que realizou nesta semana uma greve geral e uma série de manifestações contra a realização da Constituinte.
O principal temor é que o presidente use o poder de reescrever a Constituição para suprimir a liberdade do Legislativo, de maioria oposicionista. Não seria a primeira vez: em 31 de março, o Tribunal Superior de Justiça, que tem juízes pró-Maduro, tentou dissolver a Assembleia Nacional, única Casa do Legislativo. O caso foi a gota d’água para a escalada dos protestos. A oposição chamou o episódio de “golpe”, e a comunidade internacional criticou violentamente a ação do Judiciário.
Maduro afirmou que, depois que a Constituinte terminar seu trabalho, as mudanças passarão por referendo popular. Mas a oposição pede que a consulta seja feita antes, e que a população decida se quer ou não mudar a Constituição em primeiro lugar.
Foi o que aconteceu em 1999, quando o ex-presidente Hugo Chávez convocou um referendo antes mesmo de eleger a Constituinte. A aprovação popular à Constituição chavista foi vista como essencial para legitimar a Revolução Bolivariana, sobretudo num texto cujas primeiras linhas já apontam o objetivo de “refundar a República”.
Mas na Constituinte de Maduro não se sabe qual será o futuro da Carta chavista. O presidente diz que o objetivo é “aprimorá-la”, mas mesmo antigos aliados do governo o acusam de querer destruir o legado de Chávez.
Diante da negativa de Maduro em consultar a população, a Mesa Unidade Democrática (MUD), coalizão que reúne os partidos de oposição, decidiu não participar da eleição da Constituinte. O grupo também organizou seu próprio referendo no último dia 16 de julho, com a participação de 7,5 milhões de eleitores e 99,8% votando contra a Constituinte — na última eleição presidencial, em 2013, 15 milhões de eleitores foram às urnas. Embora simbólico, o referendo foi considerado um sucesso de participação popular.
“Está claro que a população não está entusiasmada [com reformar a Constituição de 1999]”, diz o sociólogo Timothy M. Gill, especialista em Venezuela na Universidade North Carolina-Wilmington. “A verdade é que a aprovação de Maduro vem despencando desde sua eleição, em 2013. Então, essa Constituinte é uma forma desesperada de prover uma falsa imagem de apoio popular para o governo.”
A queda na popularidade de Maduro já foi vista nas urnas em 2015, quando a oposição ganhou 48 cadeiras a mais e obteve a maioria no Legislativo. Hoje, dos 166 membros da Assembleia Nacional, 112 são deputados da coalizão da Mesa Unidade Democrática e 54 do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), de Maduro.
Em tese, a Constituição de 1999 proíbe que Maduro use a Constituinte para interferir no Legislativo. Os artigos 347, 348 e 349 da Constituição chavista estabelecem que o presidente tem, de fato, autorização para convocar uma Constituinte se julgar necessário, mas que em hipótese alguma ela deve suprimir os poderes da Assembleia Nacional ou substituí-la.
Mas ainda não está claro o que vai acontecer na prática. “A Constituinte tem plenos poderes, e isso abre muita brecha para que o governo possa agir da maneira que for mais conveniente”, diz a pesquisadora Carolina Silva Pedroso, especialista em Venezuela e governos sul-americanos no programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, da Unesp, PUC-SP e Unicamp.
Uma das maiores polêmicas da Constituinte diz respeito ao formato da eleição. Das 545 cadeiras, apenas 364 são territoriais, como acontece hoje. Outras 173 são por setor — ou seja, haverá representantes específicos de categorias como estudantes, operários, pensionistas, empresários e afins. Quem não estiver dentro dos setores contemplados só vota para representante territorial. A oposição argumenta que isso é injusto porque 70% dos eleitores votam duas vezes.
A representação territorial também é polêmica, porque mudou a lógica vigente, de mais votos para as regiões mais populosas, como o estado de Miranda, onde fica a capital, atualmente governado pelo opositor Henrique Capriles. Agora, cada região tem direito ao mesmo número de representantes, independentemente de sua população. “O sistema eleitoral foi concebido de tal forma que gera a sub-representação de grandes cidades, onde a oposição ao governo é maior”, explica o professor Flávio Mendes, do departamento de Sociologia da Unicamp e autor do livro Hugo Chávez em seu labirinto: o Movimento Bolivariano e a política na Venezuela.
Além do desejo de parar a Constituinte e submetê-la a um referendo, a oposição também pede a libertação de presos políticos, como o líder oposicionista Leopoldo López, preso em protestos contra o governo em 2014.
A convocação de eleições também é uma das principais pautas. No último pleito, em 2013 — após a morte de Chávez —, Maduro já teve uma vitória apertada, com 50,6% dos votos, ante 49,1% de Henrique Capriles. As próximas eleições para presidente estão marcadas para 2018, e Maduro garantiu que a Constituinte não vai mudar isso. “Em 2018, chova, trovoe ou relampeje, na Venezuela haverá eleições presidenciais”, disse o presidente, em maio.
Embora se una contra Maduro, a oposição venezuelana está longe de ter uma pauta unânime. Mendes, da Unicamp, aponta que há opositores moderados, da esquerda e da direita, que atuam dentro das instituições, e setores mais violentos, que pertencem ao mesmo grupo que tentou um golpe contra Chávez em 2002. “Há grupos que apostam na transformação de cada ato num campo de batalha, que possa gerar uma crise institucional tão grave quanto a de 2002 e levar à queda de Maduro”, diz.
A oposição também vem sendo reforçada por chavistas dissidentes com os rumos recentes do governo. Um exemplo é a procuradora Luisa Ortega Díaz, que foi apoiadora do governo Chávez mas, nos últimos meses, tornou-se a principal porta-voz das críticas a Maduro.
Além da oposição partidária, os analistas ouvidos por EXAME afirmam que muitos dos manifestantes que vão às ruas não têm necessariamente como pauta a luta pelos direitos humanos ou por presos políticos, mas protestam contra a situação caótica da Venezuela. Uma pesquisa de junho do instituto Datanalisis mostra que 85% dos venezuelanos veem a situação do país como negativa, e a aprovação de Maduro gira em tornos dos 22%.
Não é para menos: a inflação deve passar dos 700% e o PIB pode cair até 12% neste ano, segundo previsão do Fundo Monetário Internacional. Enquanto isso, 85% dos medicamentos estão em falta ou são difíceis de obter nas farmácias, e supermercados sofrem crise de abastecimento. Três em cada quatro venezuelanos perderam mais de oito quilos de peso no último ano.
Nos centros urbanos, os protestos contra Maduro se intensificaram mesmo em regiões mais pobres — os chamados barrios —, onde o governo chavista costumava ser popular. Já a população mais afastada, como na Amazônia venezuelana, está atravessando as fronteiras e rumando para países vizinhos. “Essas pessoas estão menos interessadas em política e mais interessadas em sobreviver”, diz Carolina Pedroso, do programa San Tiago Dantas.
Na opinião do economista venezuelano Dany Bahar, do instituto de pesquisa Brookings, de Washington, a Constituinte deve piorar ainda mais essa situação.
“A Constituinte pode desencadear mais sanções internacionais, e isso poderia deixar o país ainda pior”. Os Estados Unidos, por exemplo, impuseram nesta semana sanções contra 13 pessoas próximas ao governo de Maduro. As sanções, na opinião de Bahar, são “uma faca de dois gumes”, e daí o motivo pelo qual a comunidade internacional vem tentando achar outras saídas para o conflito venezuelano. “A efetividade das sanções depende de o quanto o governo está disposto a negociar”, diz Bahar.
Como a vontade de negociar de Maduro não deve aumentar tão cedo, a situação segue obscura. “Com o fechamento de canais institucionais, que ocorre a cada dia, o conflito tende a migrar para as ruas e corre-se o risco de agravar a violência”, diz Mendes, da Unicamp. Com tudo isso, a Constituinte é só mais um capítulo de uma crise que não parece ter hora para acabar.