Alberto Fernandez, presidente da Argentina congela tarifas de serviços de telefonia (Agustin Marcarian/File Photo/Reuters)
Carolina Riveira
Publicado em 6 de agosto de 2020 às 06h00.
Última atualização em 6 de agosto de 2020 às 08h56.
Em meio às barreiras já impostas pelo coronavírus, a Argentina vive um desafio particular. O país entrou na crise causada pela covid-19 enquanto ainda tentava encontrar meios de pagar uma dívida bilionária com credores internacionais, junto à inflação galopante e à recessão econômica. Nesta semana, contudo, os argentinos deram um de seus primeiros passos para organizar a casa. E a notícia traz ao Brasil, que ainda vende bilhões de dólares em produtos aos argentinos, uma rara boa notícia na pandemia.
O governo do presidente Alberto Fernández anunciou na terça-feira, 4, que fechou um acordo considerado histórico com seus credores privados para pagar uma dívida de 65 bilhões de dólares. A proposta já foi aprovado pela maioria dos credores e possivelmente será chancelada pelo restante.
Com as novas regras e condições na mesa, a Argentina evita um novo calote como o que aconteceu em uma de suas piores crises, em 2001. Na época, o país entrou em uma batalha judicial com os credores e demorou mais de uma década para se recuperar, o que dificultou novos empréstimos a condições vantajosas no mercado internacional.
A forma como os hermanos vão lidar com sua crise será essencial para a economia brasileira, sobretudo em setores que exportam amplamante para o país, como a indústria. A Argentina é, por exemplo, um dos principais compradores de carros fabricados no Brasil.
A relação já foi melhor. A Argentina foi por muitos anos o maior ou o segundo maior destino das exportações brasileiras. Hoje, é apenas o quarto. Em 2019, o Brasil exportou 9,8 bilhões de dólares à Argentina, menos de 5% do total vendido ao exterior. A China, atualmente o maior parceiro comercial do Brasil, comprou seis vezes mais, 63,4 bilhões de dólares, ou 28% do total.
"Imersa em suas crises, a Argentina não vai ser um vetor de ajuda à economia brasieira ou da América do Sul no curto prazo. Mas é um parceiro historicamente importante, principalmente para a indústria automobilística", diz o economista Arthur Mota, da EXAME Research, casa de análise da EXAME.
O acordo abre novamente mercados externos e amplia a confiança dos estrangeiros para que a Argentina possa fazer empréstimos e receber novos investimentos. Com o peso desvalorizado, a entrada de dólares no país e a capacidade de dívida será crucial para qualquer tipo de recuperação econômica.
"Sem acesso a financiamento externo, não há dívida sustentável", diz o economista Eduardo Levy Yeayati, professor da universidade argentina Torcuato Di Tella e colaborador do grupo de pesquisa americano Brookings. "Mas o retorno ao mercado não será fácil, sobretudo quando buscamos uma base investidora menos volátil. Os credores, muitos dos quais perderam o apetite pela Argentina, querem reduzir posições."
Ao todo, a Argentina acumula uma dívida de 324 bilhões de dólares, 90% de seu Produto Interno Bruto (PIB). O país está em recessão há dois anos.
A negociação com os credores foi o primeiro acordo do qual o governo Fernández precisava para avançar na negociação dos débitos. Agora, falta ainda o montante devido ao Fundo Monetário Internacional (FMI), que emprestou 44 bilhões de dólares aos argentinos em 2018, durante o governo do ex-presidente Mauricio Macri.
Os pagamentos ao FMI vencem a partir de 2021 e também precisarão ser renegociados agora, passada a primeira fase com os credores privados. Mas o FMI já havia anteriormente concordado com a proposta argentina, o que deve tornar nas negociações mais promissoras.
"O acordo com o FMI certamente será mais um processo longo e tortuoso, mas vai sair, porque não se pode ter um novo default, mas a Argentina também não pode pagar nos prazos acordados", diz Yeyati.
Entre idas e vindas, o acordo com os credores terminou como uma vitória política para o presidente Alberto Fernández. Há quase um ano, quando ficou claro na Argentina que o presidente de centro-esquerda tinha chances reais de vencer o pleito contra Macri, credores, investidores e empresas argentinas e estrangeiras ficaram de cabelo em pé.
Fernández venceu Macri nas primárias na Argentina em 11 de agosto e, no dia seguinte, o Merval, índice acionário com as principais empresas do país, chegou a cair 37%. O peso desvalorizou, assim como os títulos da dívida pública argentina. O resultado terminou sendo confirmada na eleição oficial meses depois.
A percepção era de que Fernández, cuja vice é a ex-presidente Cristina Kirchner, daria novo calote nos credores, aumentaria os gastos públicos e levaria o país a aprofundar o colapso que vivia com Macri.
Desta vez, passado algum tempo do dia de caos na bolsa local, o êxito em renegociar a dívida foi visto como um ponto positivo para o novo presidente. Junta-se a isso a pouca efetividade do governo Macri. Apesar do socorro internacional, Macri, eleito com promessas economicamente liberais em 2015, não foi capaz de solucionar a crise, nem tampouco de passar reformas prometidas no país.
"Fernández foi bastante hábil no manejo de uma situação que era bastante desforável à Argentina, conseguindo obter concessões importantes dos credores", diz o internacionalista e especialista em Argentina e América Latina Matheus de Oliveira Pereira, do programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, da Unesp.
Martín Guzmán, o ministro da Economia de Fernández, havia rejeitado algumas das propostas do grupo de credores nos últimos meses, afirmando que esses termos de pagamento da dívida iriam "sujeitar a sociedade argentina a mais estresse, e não iremos fazer isso".
Alguns credores queriam que a Argentina pagasse mais de 0,60 centavos por dólar de dívida, enquanto o governo argentino queria em torno de 0,40 centavos. De tanto barganhar, chegaram a um meio termo de 0,55 centavos de dólar a cada dólar devido, um desconto projetado em mais de 30 bilhões de dólares ao longo da próxima década.
O governo também ganhou alguns anos até começar a pagar o restante da dívida, mas sem aumento substancial de juros ou do montante a ser pago.
A crise dos últimos anos é apenas mais uma em uma lista histórica de problemas argentinos. O país já deixou de pagar suas dívidas no exterior (o chamado default) nove vezes desde sua independência, em 1816. O último default veio justamente neste ano, quando o governo não pagou uma parcela de cerca de 500 milhões de dólares da dívida aos credores internacionais, até chegar às novas negociações desta semana.
A visão é que, mesmo recebendo menos do que o previsto do governo argentino, vários desses credores privados compraram títulos da dívida argentina em baixa e esperam uma recuperação do país para que possam reaver ou mesmo lucrar com o investimento. Muitos estão nos Estados Unidos, como o tradicional fundo BlackRock, com 7 trilhões de dólares sob gestão.
Até o anúncio nesta semana, o BlackRock era um dos principais credores barrando o acordo. O jornal The New York Times chegou a escrever que a situação entre o BlackRock e o governo argentino era uma prova de fogo para o discurso do "capitalismo de stakeholder" que vem sendo defendido pelo fundo -- e busca o bem-estar não só dos acionistas, mas de funcionários e da sociedade. O BlackRock vinha convencendo outros credores a não aceitar a proposta argentina, mas as partes conseguiram definir um acordo.
Com mais previsibilidade nestes novos termos da dívida, restará à Argentina pensar o dia seguinte à outra crise que assola o país em meio ao coronavírus.
A última projeção do FMI para a economia argentina é de uma queda de 9,9% no Produto Interno Bruto neste ano, segundo previsão de junho. Como aconteceu com a maioria dos países, a projeção do FMI piorou neste último relatório. Na projeção anterior, de abril, era de queda de 5,7%.
No Brasil, a projeção de abril do FMI apontava queda de 5,3% na economia, mas que passou a ser de 9,1% em junho.
Tendo imposto quarentena e até lockdown (fechamento total das atividades) no começo da crise, e com boa parte da população respeitando as medidas de isolamento, a Argentina tem resultados bastante melhores do que os do Brasil em contágios e vítimas. Mas vê o número de contágios crescer nas últimas semanas, sobretudo em regiões da periferia da capital Buenos Aires.
Até esta quarta-feira, 5, a Argentina tem mais de 213.000 casos de covid-19, doença causada pelo coronavírus, e 4.000 mortes. O estado de São Paulo, que tem população semelhante ao do país vizinho, na casa dos 40 milhões de habitantes, tem mais de 575.500 casos confirmados e mais de 23.700 mortes. Já o Brasil tem, ao todo, 2,8 milhões de casos e mais de 96.000 mortes.
"Dizer que a Argentina manejou a crise melhor que o Brasil é usar uma régua baixa", diz Yeyati, da Torcuato Di Tella. O economista argentino acredita que o governo acertou em restringir a mobilidade cedo, mas, "talvez por isso", falhou na sequência ao não estabelecer protocolos de rastreamento do contágio, rotinas de distanciamento e testes. "É o momento de chegar a um consenso, como no resto do mundo, sobre qual é a forma responsável de viver com o vírus nos próximos 18 meses", diz.
O governo Fernández terá um desafio hercúleo em controlar a pandemia em termos epidemiológicos e, em seguida, resolver o cenário de terra arrasada que o coronavírus deve deixar. Para o professor Mauro Rochlin, dos MBAs da Fundação Getúlio Vargas, a dificuldade econômica será maior ou menor a depender justamente do controle da pandemia.
"Neste momento, a situação da pandemia nos países e a capacidade de controlá-la nos próximos meses diz muito mais sobre as projeções para a economia do que qualquer cálculo", diz. "As pessoas precisam ter confiança de voltar a consumir, um desafio que também acontece no Brasil."