Nanette Blitz Konig, autora de "Eu sobrevivi ao Holocausto": holandesa levou décadas para conseguir escrever sobre os horrores que viu no campo Bergen-Belsen na 2ª Guerra Mundial (Fabio Teixeira/Site Exame)
Gabriela Ruic
Publicado em 25 de agosto de 2015 às 17h57.
Última atualização em 14 de maio de 2019 às 14h34.
São Paulo – Até 1933, nove milhões de judeus viviam na Europa. Em 1945, momentos finais da 2ª Guerra Mundial, dois em cada três deles haviam sido mortos pelos nazistas – muitos foram assassinados publicamente pelas ruas ou no anonimato de seus esconderijos, enquanto milhares padeceram nos campos de concentração espalhados pelo continente.
Uma das sobreviventes que contrariou essas assustadoras estatísticas é a holandesa Nanette Blitz Konig. Radicada em São Paulo desde 1950, Nanette era amiga de escola da escritora germano-holandesa Anne Frank e esteve com ela nos últimos dias de sua vida.
As amigas se reencontraram no campo Bergen-Belsen, que fora erguido entre 1935 e 1937 para ser uma espécie de base militar e estava localizado a 65 quilômetros de Hanover (Alemanha). Em 1943, o local teria o papel de campo de transição, no qual os judeus estrangeiros que lá estavam seriam usados como moeda de troca por nazistas prisioneiros de guerra.
Mas à medida que o regime de Hitler enfraquecia, Bergen-Belsen receberia cada vez mais prisioneiros e se transformaria em mais um campo de concentração. Em abril de 1945, tropas britânicas assumiram seu controle e libertaram os sobreviventes. Durante os seus quase cinco anos de funcionamento, esse local foi o destino final de aproximadamente 70 mil pessoas.
Foi apenas em 2015, 70 anos depois do fim do Holocausto, que Nanette se sentiu segura para contar ao mundo o que testemunhou em Bergen-Belsen. Hoje com 86 anos, ela organizou suas memórias no livro Eu sobrevivi ao Holocausto lançado neste mês pela editora Universo dos Livros.
Nele, ela fala sobre a vida nos primórdios da guerra, relata o clima de tensão vivido pela família na iminência da ida para Westerbork, um campo holandês para onde os judeus do país eram levados antes da ida para os campos de extermínio, a chegada em Bergen-Belsen e o reencontro com Anne.
Em um dia de sol e temperaturas amenas, Nanette recebeu a equipe de EXAME.com em sua casa, que fica em uma rua calma e arborizada, para uma conversa sobre suas dolorosas lembranças e o processo de recuperação desse trauma. Abaixo, acompanhe os principais trechos da entrevista.
EXAME.com – Como era a sua vida antes da guerra? Quando foi que vocês perceberam que as coisas estavam mudando na Holanda?
Nanette – Era uma vida normal. Em 1940, os alemães invadiram a Holanda, que até então imaginou que ficaria neutra durante a guerra. Dias depois, ao vê-los marchando pelas ruas, olhei para os meus pais e percebi que nossas vidas mudariam do dia para a noite. Sabíamos da antipatia perante a comunidade judaica, mas não imaginávamos o que nos esperaria.
EXAME.com – Em 1943, sua família foi levada para Westerbrok. Como se sentiu ao pisar lá pela primeira vez?
Nanette – Westerbrok era um campo de transição que era pura enganação. A vida lá era insuportável. E pensávamos que para onde quer que fôssemos deportados, a situação seria a mesma. A comunidade já estava a par dos campos de extermínio e ninguém acreditava que seria levado para um campo de trabalho forçado. Porém, ninguém sabia como eram estes lugares na realidade.
EXAME.com – Vocês chegam ao campo de Bergen-Belsen em 1944. Neste ponto, vocês imaginavam o que lhes aguardava daquele momento em diante?
Nanette – Ao chegar à estação de trem percorremos todo o caminho até o campo a pé. E esse trajeto era acompanhado de cães raivosos, treinados para atacar, e guardas igualmente agressivos. Era uma repressão tremenda, então já tínhamos uma ideia do que aconteceria.
EXAME.com – Como era o seu dia a dia no campo?
Nanette – Não tinha dia a dia. Em casa, você acorda, vai ao banheiro, toma o seu café da manhã. Lá, não tínhamos nada disso, apenas latrinas. Às vezes, eu passava horas em pé, ouvindo ameaças e apenas aguardando o fim da contagem.
EXAME.com – Depois de todo esse tempo nessa situação, como foi o reencontro com Anne Frank, um rosto conhecido?
Nanette – Sei que ela chegou ao campo em novembro de 1944 e eu não podia me aproximar, pois estávamos em locais diferentes. Nessa época, Bergen-Belsen não podia alojar mais ninguém, então passaram a armar tendas e separá-las com arame farpado. As vi (Anne e sua irmã Margot) pela primeira vez em janeiro de 1945, mas não pude me aproximar.
Um dia removeram os arames. Nessa época, eu sabia de deportações de prisioneiras e também sabia que Anne e Margot estavam debilitadas demais para serem levadas de lá. Então procurei por elas e encontrei Anne enrolada em um cobertor, pois já não aguentava mais os piolhos nas roupas. Ficamos muito emocionadas.
Sobre o tempo antes dos campos, Anne me contou a respeito do esconderijo onde viveram e como não podiam fazer qualquer barulho. Isso deve ter sido um tormento para ela, que era uma menina muito vivaz. Ela já não era a mesma Anne de antes e eu não era a mesma Nanette. Havíamos passado por muita coisa.
Ainda as vi em uma barraca para doentes, mas não estava lá quando morreram, em março. Uma pena, pois em 15 de abril os britânicos entraram no campo. Elas não tinham chance de resistir, como muitos. Sou uma exceção. A Holanda tinha 141 mil judeus antes da guerra e apenas cinco mil voltaram. E sou uma dessas pessoas. Então, você pode perceber que eu não deveria estar aqui hoje.
EXAME.com – Como foi o momento em que os britânicos entraram no campo em 15 de abril de 1945?
Nanette - Os nazistas não sabiam mais o que fazer com o campo, que estava em uma situação abominável, e queriam trocá-lo por posições melhores para os britânicos, que, por sua vez, não sabiam o que acontecia de verdade no local.
Primeiro entrou a equipe médica, que encontrou uma situação que jamais imaginou. Ora, ninguém imaginava. Anos depois de tudo isso, eu mesma ainda me pergunto como foi que sobrevivi.
Eu pesava 30 quilos. Quando anunciaram a nossa liberdade, eu não tinha forças para ir para canto algum e nenhuma perspectiva. Eu não sabia onde estava a minha mãe ou meu irmão. Não imaginava o que o futuro me traria.
Eu tive tifo depois que os britânicos entraram no campo. Eles tomaram o controle de uma escola nas redondezas para onde levaram quem podiam transferir. Queriam esvaziar o campo, assim como se faz depois de uma batalha: você socorre quem consegue e depois volta para tentar salvar os outros.
Nessa altura, as pessoas tinham formado grupos e não queriam se separar. Mas eu não tinha um grupo, então imagino ter sido uma das primeiras pessoas transferidas. Lembro-me de chegar até a escola, mas não consigo lembrar como isso aconteceu.
EXAME.com – Tentar se reerguer depois de um trauma tão doloroso como esse é algo inimaginável. Como foi o seu processo de recuperação?
Nanette – Foi difícil, mas veja, temos uma palavra em hebraico que é chaim e ela supera qualquer coisa. É a vida que é tão preciosa que você não pode descartá-la. Em agosto 1945, quando soube que era única pessoa da minha família a ter sobrevivido, sem saúde e sem dinheiro, fiquei desesperada. Mas em seguida me dei conta de que tinha que assumir uma vida que eu não queria, mas eu não tinha outra opção.
Claro que levou tempo para me recuperar. Demorou ainda mais, pois parentes que viviam no Reino Unido não permitiam que eu falasse sobre o assunto. Eles viveram uma vida normal. O ser humano não tem um botão para apagar memorias, então tive de assumir tudo isso sozinha. E foi difícil. Tudo foi difícil. Mas é assim mesmo. Não teve outro jeito.
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No vídeo abaixo, produzido por EXAME.com, Nanette conta outros detalhes sobre a sua vida antes da deportação para o campo de concentração e relata como foram os momentos seguintes da libertação de Bergen-Belsen pelos britânicos.