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Por que os preconceitos, afinal, perdem espaço na publicidade

Publicidade modifica papel das mulheres nas propagandas e traz as questões de gênero e de sexualidade para dentro dos comerciais

CAMPANHA DA SKOL: a marca mudou a comunicação, e também tenta mudar suas políticas internas  (Ambev/Divulgação)

CAMPANHA DA SKOL: a marca mudou a comunicação, e também tenta mudar suas políticas internas (Ambev/Divulgação)

RK

Rafael Kato

Publicado em 2 de maio de 2017 às 20h33.

Última atualização em 3 de maio de 2017 às 12h08.

Reportagem publicada originalmente em EXAME Hoje, app disponível na App Store e no Google PlayPara ler reportagens antecipadamente, assine EXAME Hoje.

Há algo de novo no reino da publicidade. O último comercial da cerveja Brahma foi, como de costume, protagonizado por uma mulher. Mas, desta vez, ela estava totalmente vestida, e era a responsável por averiguar a qualidade da bebida, e não apenas por servi-la de biquíni na praia. Já a campanha da Skol, outra marca da Ambev, convidou oito ilustradoras para refazerem os antigos cartazes da marca, famosos por representar mulheres como objeto.

A Ambev é uma das empresas que mais se valeram da sexualidade das mulheres para vender seus produtos. E, por isso, sua mudança virou símbolo de um movimento que, há cerca de quatro anos, saiu das rodas de militantes feministas e LGBT e chegou ao departamento de marketing e de publicidade das grandes empresas. Por pressão e convicção (mais de um e menos de outro, dependendo do caso), profissionais se dedicaram a repensar a representação das mulheres nas propagandas e de trazer as questões de gênero e de sexualidade para dentro dos comerciais.

“Quando começamos esse movimento, há cerca de dois anos, precisávamos olhar para dentro. Assinamos os princípios da ONU Mulheres e hoje temos grupos LGBT aqui dentro para discutir essas questões”, afirma a diretora de marketing da Skol, Maria Fernanda Albuquerque.

Como costuma acontecer, a mudança começou no maior mercado de publicidade do mundo, o americano. Um marco desse processo foi uma campanha do sabonete Dove. Em 2013, a Dove lançou um vídeo para sua campanha “Real Beauty” no qual um artista forense do FBI desenhava o rosto de mulheres com base na descrição que elas próprias faziam de si e, depois, na que outras mulheres faziam. A ideia era explorar a diferença entre como as mulheres percebem a si mesmas e como os outros as percebem.

Em 2014 foi a vez de Verizon, maior operadora de celular dos Estados Unidos, lançar um comercial com discurso feminista. A campanha, chamada “Inspire Her Mind”, compelia os pais a incentivar em suas filhas o amor pela ciência e pela tecnologia e a não desmotivá-las com frases comumente usadas com meninas para demovê-las de uma atividade, como “não vá sujar o vestido” ou “melhor deixar o seu irmão mexer com esse equipamento”. Também em 2014, a Always, marca de absorventes íntimos, apresentou a campanha “Like a Girl”, em um vídeo que pedia a uma série de pessoas para correr, jogar ou arremessar “como uma garota” e depois mostrava como meninas em torno dos dez anos realizavam a mesma tarefa. As crianças não refletiam nada do estereótipo que os adultos atribuíam às garotas. Foi um dos comerciais mais premiados da história.

Mas a estratégia de usar o discurso de minorias em ações de marketing é antiga. Um exemplo clássico é a marcha das “tochas pela liberdade”, quando, em 1930, um grupo de jovens debutantes da alta sociedade americana acendeu seus cigarros em plena Quinta Avenida como um símbolo da luta pelos direitos das mulheres. O evento, na verdade, não passava de uma ação orquestrada pelo relações públicas Edward Bernays com o único objetivo de ampliar o mercado consumidor da Corporação de Tabaco Americana.

Mas, agora, o movimento parece ter chegado a um novo patamar, deixando de ser algo pontual para se tornar quase o novo “mainstream”. Desde a campanha de Dia dos Namorados de O Boticário, que, em 2015, ganhou o prêmio publicitário Effie ao mostrar casais homossexuais, à carta do presidente CEO da rede de cafeterias Starbucks, Howard Schultz, que prometia contratar 10.000 refugiados, marcas dos mais diferentes setores vêm se aproximando de minorias.

“A sociedade está passando por uma revisão de valores muito forte e isso se reflete nas empresas e na publicidade. As questões do feminismo e da comunidade LGBT viraram pauta da sociedade no Brasil e no mundo”, diz o publicitário Lucas Mello, da agência Live Ad. Para ele, a publicidade tem um papel fundamental neste cenário, não só por precisar se adequar aos novos valores, como também para ajudar a construir os futuros modelos de sucesso. “Nos anos 50, a publicidade ensinava tudo para as pessoas, como se vestir, como fumar, etc”.

Atenção nas redes

A questão geracional também é um fator importante para explicar essa movimentação. O mercado consumidor será cada vez mais dependente da Geração Y (pessoas nascidas entre 1980 e 2000), composta por jovens que, muito mais do que seus pais, se preocupam com as atitudes das marcas, para além dos produtos. Só nos Estados Unidos, os millennials totalizam 80 milhões de pessoas, ou um quarto da população, sendo a maior geração da história do país. Segundo um levantamento do banco Goldman Sachs, 34% dos americanos de 18 a 35 anos disseram que gostam mais de uma marca quando ela usa as redes sociais para engajar seus clientes (em comparação com apenas 16% para os maiores de 36 anos).

Os millennials procuram as redes, como Facebook, Instagram e Twitter, não só para interagir com as marcas, mas também para cobrá-las e fiscalizá-las. “As redes fazem com que o público fique mais engajado, mais atento, porque ele se sente mais proprietário daquele conteúdo”, afirma Daniella Bianchi, diretora no Brasil para a consultoria Interbrand.

Tanto é que em 2016, quase 64% dos processos instaurados pelo Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) foram motivados por consumidores. Dez anos antes, essa taxa foi de 27%, segundo um levantamento do UOL. E, quando se trata de questões de gênero, o público se mostra ainda mais engajado: dos 15 casos julgados por machismo pelo órgão no ano passado, 14 foram originários de reclamações dos consumidores.

A própria Skol sofreu na pele em 2015, com uma campanha de carnaval desastrosa que consistia em cartazes exibidos em pontos de ônibus com os dizeres “Esqueci o ‘não’ em casa”. As críticas explodiram depois que a publicitária Pri Ferrari e a jornalista Mila Alves publicaram fotos nas redes sociais ao lado dos cartazes com uma intervenção que dizia “e trouxe o nunca”. A Ambev retirou as peças de circulação e, depois da polêmica, substituiu o então diretor de marketing da companhia por uma mulher.

Além da modinha

A mudança tem como objetivo não só acertar no discurso, mas mostrar para os clientes, e para os funcionários, que a postura mudou. E isso faz diferença (especialmente numa companhia como a Ambev, vista como masculina demais também no seu time de executivos). “Há uma equação muito importante, cuja ordem altera sim o resultado. As marcas precisam fazer antes de falar, a comunicação precisa refletir um compromisso de longo prazo”, diz Daniella Bianchi, da Interbrand.

Para ajudar as empresas interessadas em ampliar o diálogo especialmente com o público feminino, já nasceram consultorias especializadas no assunto. Um exemplo é a Think Eva, fundada há dois anos pelas jornalistas Juliana de Faria (que também criou a ONG Think Olga, com foco no direito das mulheres), Maíra Liguori e pela publicitária Nana Lima.

“Algumas empresas encaram o feminismo como uma modinha e não querem ficar de fora. Mas vemos também várias categorias que antes não só não falavam sobre mulheres, mas também nos agrediam, como marcas de cerveja e de carro, agora dispostas a discutir o assunto”, diz Liguori. “A gente praticamente não precisa procurar os clientes, eles vem até nós, seja por uma crise de comunicação, seja porque querem entrar nessa conversa”.

A Avon, por exemplo, realiza periodicamente auditorias para assegurar a igualdade salarial entre funcionários homens e mulheres, promove anualmente um fórum para discutir violência contra a mulher e, no Brasil, tem metade de seu Conselho Diretivo composto por mulheres.

Para Maíra Liguori, é preciso criticar as marcas oportunistas, mas reconhecer que, de qualquer maneira, a comunicação tem potencial de transformar a forma que as pessoas veem o mundo e, assim, provocar transformação. “Quando uma mulher negra se vê numa campanha de beleza, vai se sentir bonita. Mas não adianta nada também ela se achar linda e não conseguir trabalho ou ser parada pela polícia, porque é negra. São muitas camadas”. A comunicação é, pelo menos, um primeiro passo.

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