EXAME.com (EXAME.com)
Da Redação
Publicado em 9 de outubro de 2008 às 09h56.
Encontro um velho amigo no aeroporto. Executivo de marketing de uma grande empresa, ele estava particularmente agitado. Viemos conversando durante o vôo.
-- Você sabe, sou como a maioria dos executivos: leio bastante, freqüento seminários, ouço especialistas... Tudo em busca de conhecimento que me auxilie no dia-a-dia. Controlo um orçamento de marketing respeitável, mas sempre preciso de uma grana extra que a empresa invariavelmente me nega. Nega e ainda exige mais vendas e mais corte de gastos. Lá chamam isso de "racionalização", mas é corte mesmo. Daria qualquer coisa por alguma dica concreta sobre como "racionalizar" sem ver minha marca corroída nem perder participação de mercado ou lucratividade. No meio dessa aflição toda aparece nosso velho conhecido Al Ries fazendo afirmações sobre a ineficiência da propaganda e desencadeia um duelo verbal com os publicitários. Tome "eu acho" pra cá, "discordo" pra lá; "você é burro", "você é reacionário"... Lembra até aquelas nossas discussões no movimento estudantil da década de 60. E nós, pobres executivos, supostamente os maiores interessados em "racionalizar", o que aprendemos com isso? A produtividade dos esforços de marketing vem caindo, e não só na minha empresa. A cada ano gasta-se mais para conseguir menos. Na TV a audiência fragmenta-se. As grandes redes sentem a concorrência dos canais por assinatura e ainda assim aumentam seus preços. Continuamos a gastar porque desconhecemos alternativas. A pergunta que faz todo executivo tremer é: "Qual o ROI de seu investimento em marketing?" -- um problema que mereceria ser pelo menos investigado com mais atenção.
(Só pra lembrar, a tese de Al Ries é a seguinte: propaganda como construtora de marca já era. Relações públicas, RP, é que está com tudo hoje. Ries fez uma palestra em São Paulo e provocou a ira da turma da propaganda que, indignada, pegou pesado nas críticas.)
Tentei confortar meu amigo. Para mim o bate-boca propaganda versus RP dramatiza uma das mazelas mais chocantes do meio empresarial: nossa obsessão por personalidades e nosso desprezo suicida pelo fato empírico. Adoramos fofocas, gurus, autoridades ("fulano disse", "beltrano acha"...), mas não damos a mínima ao que podemos medir, observar e concluir sem depender de "eu acho". Falta mentalidade científica no mundo da gestão. Se eu, como executivo, tivesse de escolher entre Al Ries e seus críticos, não escolheria ninguém. Encomendaria uma investigação. Mandaria coletar dados. Pediria fatos. Cruzaria gastos com propaganda e outras ações de marketing com performance ao longo de todos os anos em que houvesse informação disponível. Como é que anda o refrigerante Sukita, aquele da propaganda do "tio"? Qual foi a performance dos dez maiores anunciantes na última década em comparação com um grupo de controle qualquer? As mensagens mais lembradas têm correspondido aos produtos mais vendidos? Além de "imagem" e "lembrança", dá para vincular "criatividade" a coisas concretas como (com todo o respeito) fluxo de caixa? Enfim, como se correlaciona esforço de marketing com resultado, a única coisa que conta em gestão?
Meu amigo parecia intrigado. Continuei. Aí está uma boa tese de mestrado para algum desses MBAs por aí... Ah, esqueci: os "master em business" são "master", mas não defendem tese. É compreensível. Dá trabalho mesmo. Tem de ir a campo coletar dados. Cruzá-los. Descobrir padrões. Verificá-los e, aí sim, expô-los de forma que qualquer um possa tirar conclusões sem depender de quem disse. Se, como dizem, a metade do que se gasta em propaganda é supérfluo, como identificar a metade certa? A resposta vale ouro.
Ries merece muitas das críticas que tem recebido, mas suspeito que valha a pena prestar atenção em seu argumento central. Ele afirma que todos os sucessos recentes de marketing foram construídos com pouca propaganda e toneladas de relações públicas. O "todos" pode ser exagero, mas a verdade é que Google, eBay, Dell, Wal-Mart, Starbucks, Palm, Prozac, Yahoo!, Linux, Botox, The Body Shop, Viagra, Amazon, PlayStation, Red Bull, Intel, Microsoft e Harry Potter não dependeram de propaganda para acontecer. Certo, certo, um dos problemas aqui é que Ries não faz distinção entre produtos (Viagra) e conceitos de negócio (Dell) nem reconhece nuances entre as várias categorias que lista. Na pressa, enfia tudo no mesmo saco.
Meu amigo interrompe:
-- Com toda imprecisão, no "atacado", o que Ries observa é detectável por qualquer um. Ontem era impossível construir marca em mercados de massa sem propaganda. Hoje isso se tornou freqüente. O que mudou?
Noto que há algo em comum entre os exemplos que Ries cita. Todos são inovações ou eram quando foram lançados: produtos ou conceitos de negócio que criaram categorias novas. Nenhum deles foi simplesmente "mais um" entre o que já havia no mercado. Deve haver alguma relação entre "derrocada da propaganda" e inovação. Parece que só inovações genuínas podem dispensar propaganda para se estabelecer em mercados de massa. Essas inovações tornam-se notícia de forma natural, e o comentário espontâneo (RP) é o que constrói sua reputação. Aquilo que não é original (mais uma pasta de dentes "genial", ou mais um extrato de tomate "revolucionário", ou mais um desodorante que "vai mudar sua vida") não pode dispensar propaganda. O Viagra explodiu (mundialmente), da noite para o dia, sem propaganda para o consumidor final. Como seus seguidores tentam se fazer notar nos mercados onde não há proibição a esse tipo de anúncio? Propaganda adoidado, claro. A Pfizer, hoje, investe muito em propaganda -- 90 milhões de dólares ao ano. Mas é para manter a marca Viagra. Investiu zero para construí-la porque o produto falava por si mesmo. Inovação, certo? Meu amigo comenta:
-- Seria ótimo se alguém se dispusesse a investigar isso a sério. Não tenho dúvida da correlação entre propaganda e venda, mas desconfio que ela seja hoje muito mais fraca, fluida e indireta do que já foi. É por isso que ficam me pressionando para "racionalizar".
É isso mesmo, retruco. Conhecimento de verdade é sempre apoiado em evidências, nunca em opiniões de autoridades. Não aceitamos a lei da gravidade porque foi Newton quem a formu lou. Nós a aceitamos porque ela funciona. Sabe como eu tentaria pensar sobre esse problema passo a passo? Assim:
* Dado que a propaganda existe há tantos anos no mundo das transações econômicas, é razoável supor que venha cumprindo um papel útil. É absurdo imaginar que haja uma forma mais eficaz de produzir o que a propaganda produz (seja lá o que for!) e as empresas não estejam correndo para usá-la. (Será que a AmBev, por exemplo, gastaria o que gasta em publicidade de suas marcas se tivesse alternativa? Duvido.)
* Se isso é verdade, vamos direto ao fundamento da coisa: para que se faz propaganda, afinal? Pode parecer uma pergunta estúpida, mas é da investigação isenta de questões assim que surgem muitas idéias revolucionárias. Ronald Coase, prêmio Nobel de Economia, respondeu em 1938 à seguinte pergunta "estúpida": "Para que existem empresas?" Coase mostrou que elas existem para diminuir os custos de transação. Todas as "fricções" associadas ao ato de produzir e vender algo são "custos de transação". Eles incluem tempo, esforço e dinheiro gastos no processo: escolher fornecedores, negociar acordos comercias, localizar clientes, dar garantias, ensinar a usar o produto ou o serviço etc. As empresas surgiram porque indivíduos isolados não conseguem fazer essas coisas de forma eficiente. O custo da propaganda é um dos custos de transação de uma empresa. Propaganda existe para permitir que o mundo fique sabendo de você (de sua empresa, de seu produto) e, se possível, para que o escolha, deixando seu concorrente de lado. É simples assim. Propaganda é parte do custo de "criar um cliente", para usar a expressão de Peter Drucker.
Setores inteiros da economia existem apenas para facilitar transações: seguros, finanças, o atacado e o varejo. Propaganda idem. Nos Estados Unidos, esses setores respondem por 25% do PIB. Um supermercado existe para trazer para perto de mim coisas que são produzidas longe de mim. Propaganda, analogamente, existe para colocar clientes potenciais em contato com meu produto. Não há nada sagrado com propaganda, supermercados ou bancos. Se for mais econômico "criar" um cliente sem propaganda, é isso que vai ocorrer. Foi a isso que novas tecnologias -- telégrafo, telefone, estrada de ferro e até o elevador -- sempre induziram. (Sim, o elevador faz parte dessa lista. Ele permitiu que empresas, "empilhando" funcionários num espaço vertical, coordenassem suas atividades com mais eficiência. Antes, suas unidades se espalhavam horizontalmente em vários lugares, e o custo de coordená-las era grande.) Inovar em qualquer setor que exista para viabilizar transações implica sempre reduzir custos de transação (veja os casos de Dell, Wal-Mart, SouthWest Airlines/Gol). Se não for assim, não é inovação. Pode ser "criatividade", mas não é inovação. É apenas novidade. Inovação tem sempre vínculo econômico direto -- traduz-se nos fluxos de dinheiro novo por meio de alguma coisa, algum arranjo que antes não era usado. É possível identificar inovações (recentes ou nem tanto) no varejo (self-service nos anos 30, Wal-Mart hoje), em finanças (cheques de viagem ontem, transações online hoje), em seguros, mas não, que eu saiba, em propaganda. O que identificamos em propaganda é, desde sempre, "criatividade". Quer dizer, é, atualmente, o verdadeiro zoológico em que se transformou o mundo publicitário: aquela tartaruga simpática fazendo embaixadas com a lata de cerveja, a hiena pessimista, o urso bebendo Coca-Cola, o peixe entalado no copo, aquele siri fazendo... fazendo o que mesmo? Criatividade está relacionada à lembrança da marca; inovação a dinheiro novo.
Meu amigo se agita:
-- É isso mesmo. As agências de propaganda aptas a cuidar de grandes contas são igualmente talentosas. O sucesso que uma obtém outra obteria também. Criatividade em propaganda é intercambiável, virou commodity. A grana do anunciante é que faz a diferença para que o mundo fique sabendo de você. Estar na mídia é o que conta, e conta cada vez menos eficazmente.
* Wal-Mart de novo. Sua estratégia começou com a localização: instalava-se em lugarejos longe das grandes cidades. Com custos menores, podia cobrar menos e oferecer mais valor que seus concorrentes das metrópoles. Logo as pessoas estavam se dispondo a dirigir até lá. Um movimento que não era nada óbvio. A tecnologia que viabilizou a Wal-Mart foi o automóvel, massificado na segunda metade do século 20. A marca foi construída através do boca-a-boca (RP em sentido amplo): "Vale a pena ir até l". Para que propaganda? O mundo fica sabendo de mim porque sou notícia. (De passagem: a Wal-Mart foi pioneira no uso de todas as inovações tecnológicas no varejo -- conexão direta com fornecedores, controles de estoque em tempo real, uso de satélites etc. Apesar de ser quase neuroticamente focada em custos, é a empresa que mais investe em tecnologia. Adivinhe por quê?)
Meu amigo de novo:
-- Mas a pergunta permanece: o que há hoje que não havia ontem? No passado, muitas inovações genuínas precisaram de propaganda. Há mais de um século, George Eastman lançou a Kodak Brownie, uma máquina fotográfica vendida a 1 dólar. Como nin guém tinha idéia de como usá-la, a propaganda ensinava: "Você aperta o botão e nós fazemos o resto". A General Motors usou propaganda intensamente a partir de meados dos anos 20 para anunciar seus novos modelos (coisa que a Ford, líder de então, não fazia -- até porque não mudava seu modelo). Propaganda sempre será útil. Sem ela o mundo não terá como saber que você está fazendo uma promoção, ou que tem um modelo novo, ou que suas ligações DDD de celular agora podem ser feitas via uma operadora, ou que "basta apertar um botão". Agora, realmente, isso nada tem a ver com construção de marca.
* O que há hoje e não havia ontem é a revolução da informação. Hoje, um produto equivalente à Kodak Brownie não precisaria de tanta propaganda porque as pessoas ficam sabendo das coisas com muito mais facilidade. A informação digital, mais precisa e mais barata, reduz tanto os custos de transação das empresas quanto os gastos que o cliente tem para obter informação. Isso faz com que quem vende seja forçado a se expor. Não dá mais para se esconder. É antieconômico. Lembre-se de casos como o da Enron. Num mundo em que obter informação ficou barato, as vísceras das organizações ficam expostas. Por isso, a estratégia de marketing mais básica da era digital é construir reputação. Propaganda é pagar para falarem bem de mim. Não é mais crível se falarem bem de mim de graça? RP é mais eficaz que propaganda quando o custo de obter a informação verdadeira cai. Há fundamento econômico para supormos que o primado da propaganda possa realmente estar em xeque. Claro que depende do produto, depende do mercado, depende, depende, depende... Tudo que tem interesse em negócios "depende". Mas, como tendência geral, faz sentido que propaganda esteja mesmo perdendo fôlego. Posso estar errado, claro, mas não valeria a pena investigar.
Clemente Nobrega (www.clementenobrega.com.br) é físico, consultor e palestrante. Seu último livro Antropomarketing foi lançado em fevereiro pela editora do Senac-RJ