Flagra no show do Coldplay expõe casal e vira símbolo de uma era em que o deslize do outro se torna entretenimento coletivo Perguntar ao ChatGPT (Reprodução/Travis Chapman)
Estrategista de Comunicação
Publicado em 21 de julho de 2025 às 13h13.
Você já se sentiu secretamente satisfeito ao ver alguém se dar mal?
Um colega promovido “rápido demais” e, depois, tropeçando publicamente? Um influenciador que parecia inalcançável e, em seu auge, ser vítima de cancelamento? Ou, mais recentemente, um CEO de sucesso e uma executiva de RH expostos em um show lotado do Coldplay, flagrados pela câmera do estádio e viralizados com fúria no mundo todo?
Assim como “saudade”, que só a língua portuguesa carrega com profundidade, os alemães cunharam a palavra schadenfreude — schaden (dano) + freude (alegria) — para definir o prazer que sentimos ao ver o outro se dar mal.
Por mais desconfortável que seja admitir, essa alegria pelo infortúnio alheio, em maior ou menor medida, em algum tempo da vida, sempre ou quase nunca, mora em cada um de nós.
Sim, vivemos temporadas de exposição crua e vigilância social ampliada, em que uma única imagem, tirada fora de contexto (ou não), vira manchete, meme, demissão ou pedido de demissão. E, aquilo que deveria causar espanto (a velocidade e a crueldade com que reputações de uma vida inteira são assassinadas e biografias são reduzidas a cliques), acaba nutrindo esse vício coletivo de ver o outro... se espatifar.
Para quem se alimenta do schadenfreude, o sucesso do outro incomoda. O fracasso, por sua vez, alivia.
Celebrar a destruição alheia não é novo. Porém, a traição no show do Coldplay, na minha visão, traz sim uma novidade: se antes o schadenfreude era um pensamento escondido ou uma sensação rápida e silenciosa, agora ele é abraçado pelas marcas e a publicidade sem pudor algum. Ou seja, vence quem festeja o fracasso do outro de maneira criativa e até performática nos vídeos do TikTok, nos estádios, replicando carrosséis do Instagram ou dramatizado em dublagens engraçadas.
A desgraça virou entretenimento e, o julgamento, esporte coletivo.
O spot do Coldplay não é só uma fofoca de escritório em escala global. É muito mais que isso: é o retrato de uma era onde a exposição é a moeda. Onde o erro alheio, ou mesmo a suspeita de erro, precisa se converter em audiência, lucro ou narrativa, afinal, ninguém mais erra em nada (contém ironia).
Flagra em “kiss cam” se espalhoa nas redes sociais, vira tendência em shows e culmina na saída do executivo Andy Byron da Astronomer (Reprodução)
Compartilhar o escândalo com uma frase de efeito para se sentir superior exige pouco esforço. Já refletir sobre o que isso diz sobre nós, como indivíduos e como sociedade, é bem mais difícil.
A neurociência aponta que esse sentimento se dá, em parte, por uma suposta evolução: o schadenfreude “nos protege” da inveja paralisante e reforça nosso senso de Justiça. “Ver o outro se dar mal” pode aliviar nossas próprias inseguranças e fortalecer a crença de que o mundo é equilibrado — ainda que não seja.
Quando vemos alguém escorregar, especialmente em posição de poder, sucesso ou privilégio, temos a ilusão de que estamos, por um momento, “nivelando o jogo”.
Falamos em abundância, pedimos prosperidade, desejamos ser vistos, celebrados, reconhecidos e, ao mesmo tempo, alimentamos uma cultura que exalta a ascensão — e pune com violência a queda.
Talvez o antídoto para o nosso schadenfreude não seja fingir que ele não existe, e sim escolher o que faremos com ele. Usar essa fagulha para olhar para si, observar os nossos julgamentos automáticos e humanizar o outro — inclusive esse outro quando erra.
Ainda é possível escolher outro olhar.
Seja na publicidade, no marketing ou em nossas timelines, preservar a empatia em uma sociedade que festeja (e monetiza sobre) o colapso alheio, virou resistência.
A queda do outro não nos engrandece. Só revela o quão frágeis e expostos todos nós estamos.