Combinação tem o potencial de enriquecer nossa compreensão e abordagem dos desafios ambientais. (Me 3645 Studio/Getty Images)
Colunista
Publicado em 24 de maio de 2024 às 16h00.
Na incessante busca por soluções sustentáveis, frequentemente a humanidade recorre à ciência. Contudo, essa abordagem científica convencional tem se provada insuficiente, sobre alguns aspectos, para endereçar os complexos desafios ambientais contemporâneos.
Por várias razões, de forma geral, não tivemos muito sucesso no engajamento e conscientização da população na urgência para combater o efeito, potencialmente irreversível, das mudanças climáticas.
Com a evolução da civilização moderna, perdemos nossa profunda relação de pertencimento com a natureza e passamos a “ter poder” sobre ela. Entretanto, isso nada nos ensinou sobre como usar esse poder e a humanidade não teve maturidade para explorar esse dom.
A visão tradicional da ciência, embora eficaz em inúmeros aspectos, muitas vezes foca em soluções imediatas e quantificáveis, negligenciando a importância de fatores não quantificáveis como valores humanos, culturas e comportamentos ao enfrentar questões relacionadas à sustentabilidade. Mas, nem sempre foi assim… dois eventos foram fundamentais para o “divórcio” entre o homem e a natureza, e entre o material (= posse) e o espiritual (= emoções) – o advento das religiões organizadas e o Iluminismo.
Desde o século IV d.C., quando o cristianismo foi adotado como religião oficial no Império Romano, a ascensão das religiões organizadas, tanto politeístas quanto monoteístas, em aliança com o Estado, moldou estruturas de poder que transformaram nossa relação com o mundo natural e alteraram profundamente nossa percepção da espiritualidade.
Além disso, a expansão do colonialismo europeu rotulou as religiões nativas como "primitivas" e "pecaminosas", marginalizando seus seguidores como "selvagens". O historiador americano, Lynn White Jr., em seu influente e controverso artigo de 1967, "The Historical Roots of Our Ecologic Crisis", sugere que a tradição judaico-cristã de dominar a natureza contribuiu significativamente para a crise ecológica que vivemos hoje.
Estas transformações foram maximizadas com o início do Iluminismo, no começo do século XVII. O renomado físico e astrônomo brasileiro, Marcelo Gleiser, em seu recente livro "O Despertar do Universo Consciente – um Manifesto para o Futuro da Humanidade", argumenta que o projeto de civilização desde o Iluminismo, forjado no avanço da ciência, no capitalismo e no Estado de Direito, nos distanciou de uma compreensão abrangente de conhecimentos e culturas diversas, e eliminou, de uma vez por todas, com nossa espiritualidade secular e com nossa relação de igualdade com a natureza.
Gleiser vai além e afirma: “O Iluminismo, apesar de ter inspirado grandes descobertas e inventividade, foi também a era que amplificou a falência moral da sociedade ocidental, transformando a razão em uma arma de destruição ambiental.”
E o que quer dizer espiritualidade secular? A espiritualidade secular propõe uma perspectiva não religiosa e não teísta, buscando um propósito mais profundo e uma conexão com o mundo. Seu fundamento mais básico é que todo ser humano é um ser espiritual. Entretanto, como cultivar o espírito numa cultura dominada pela posse acima das emoções?
A palavra espírito vem do latim spiare, que significa respirar. É tudo aquilo que nos inspira a viver vidas com propósito. Esta conexão espiritual com o sublime nos lembra que, apesar de todo o conhecimento científico, muito permanece desconhecido e, talvez, inexplicável.
A fusão entre ciência e espiritualidade secular pode parecer, à primeira vista, uma união de opostos. Contudo, essa combinação tem o potencial de enriquecer nossa compreensão e abordagem dos desafios ambientais. Por um lado, a ciência oferece as ferramentas e o conhecimento para entender as complexidades do mundo natural e para desenvolver tecnologias e práticas que podem mitigar impactos negativos.
Por outro lado, a espiritualidade secular pode ampliar a visão de mundo da ciência, de forma inclusiva e não dogmática, capaz de unir pessoas de diferentes crenças e backgrounds.
Essa abordagem pode promover o diálogo e a cooperação em questões globais, como a sustentabilidade e a conservação, incutindo um senso de responsabilidade e propósito que transcende os limites do empirismo.
Ao redor do mundo, emergem exemplos de como a união entre ciência e a espiritualidade secular pode gerar impactos positivos. Na Nova Zelândia, um acordo de tratado alcançado pelas tribos Maori e o Governo levou a uma lei de 2017 que reconheceu a pessoa jurídica Te Awa Tupua como um “todo indivisível e vivo, compreendendo o Rio Whanganui da montanha ao mar”. Esta pessoa jurídica possui tanto direitos quanto deveres, incluindo direitos de propriedade sobre seu leito fluvial.
No Brasil, práticas agroflorestais na Amazônia, como o Projeto Reca (Reflorestamento Econômico Consorciado e Adensado), em Rondônia, combinam técnicas agrícolas com conservação florestal, demonstrando como o conhecimento científico e as tradições locais podem coexistir de forma sustentável.
Este novo enquadramento legal dos direitos da natureza pode apresentar significativas oportunidades econômicas para países como o Brasil. Iniciativas como a agrofloresta não apenas conservam a biodiversidade, mas também estimulam a economia local através da criação de empregos verdes, que são essenciais para uma transição para economias de baixo carbono. Além disso, essas práticas podem atrair investimentos em tecnologias verdes e novas políticas de financiamento e, assim, fomentar um novo setor econômico que combina inovação com responsabilidade ambiental.
A jornada para um futuro sustentável requer mais do que ajustes tecnológicos ou regulatórios: demanda um profundo debate e revisão do nosso lugar dentro do planeta Terra, reforçando um ciclo de respeito, cuidado e propósito compartilhado.
Espero que com a COP30, a ser realizada em Belém (Pará), em 2025, políticos, empresários e toda comunidade brasileira use essa oportunidade única para liderar esse importante debate, sem deixar de praticar uma autocrítica sincera e reparadora das nossas estratégias de combate às mudanças climáticas. Ao fazê-lo, temos grande chance de interromper o clico de destruição ambiental que a nossa vida do passado vem causando na vida do futuro.