Gustavo Franco: Também complexo é o relacionamento do presidente Lula com seu ministro da Fazenda, talvez seu sucessor (Leandro Fonseca/Exame)
Redação Exame
Publicado em 6 de maio de 2024 às 11h55.
O evento mais importante do mês de abril foi uma revelação que não surpreendeu a ninguém: o Executivo encaminhou ao Congresso uma modificação no projeto já enviado para a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) de 2024, pelo qual alterou para pior a meta para o resultado primário prevista no “arcabouço”.
A mudança foi pequena, mas o efeito, enorme.
Originalmente, o Novo Arcabouço Fiscal previa déficit primário zero em 2024; superávits de 0,5% do PIB em 2025; e de 1% do PIB em 2026. Depois de modificados os números, o que se tem é um superávit de 1% ao longo de quatro anos, não apenas “muito menos do que o requerido em um único ano para manter a dívida estável como proporção do PIB”[1], como também a meta fiscal, depois dessa modificação, desceu à categoria das “Metas indicativas”, aquelas que não mordem, ou que, uma vez infactíveis por qualquer razão, são alteradas sem dó.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, definiu a decisão sobre a alteração da meta como “ajustar as expectativas” para não transformar a meta do próximo ano em algo “grande demais” e, na prática, inatingível.
O “realismo orçamentário” é uma tese cíclica, que sempre aparece quando os números ficam insustentáveis. Havia um problema difícil, uma espécie de “catch 22” na fixação da meta fiscal: a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) poderia ser desrespeitada pelo descumprimento da meta de superávit, ou pela obrigação (segundo a leitura oficial) de não reduzir a despesa primária[2].
Para evitar essa conversa, que facilmente traria alusões ao sensível assunto das “pedaladas” fiscais do passado, o governo resolveu alterar a meta do arcabouço.
Segue-se, entretanto, que há custos em se recuar de metas previamente anunciadas com fanfarra. Uma leitura reducionista, porém incontornável, é de que quem tem metas assim tão efêmeras, ao alcance de qualquer canetada, não tem meta nenhuma – e, portanto, nenhum compromisso sério com a responsabilidade fiscal que não seja o obrigatório, fixado em lei, do qual não se pode desviar.
A política fiscal é uma escolha soberana do governo. Não se questiona o direito de o governo definir a orientação que bem entender. Só é importante lembrar que as escolhas têm consequências. Escolhas irresponsáveis podem mesmo levar ao impeachment, sem falar em atrapalhar a economia. E mais: não se consegue enganar os analistas, nem o Congresso, e menos ainda o famigerado mercado acerca dessas escolhas.
A política fiscal deste governo não tem índole, e o governo não parece se incomodar com isso. Como se fosse indicação de pragmatismo e flexibilidade, e não de falta de imaginação.
O assunto não foi discutido na campanha eleitoral, e o presidente da República pouco ou nada disse sobre o tema. Na verdade, quando o fez, dirigindo-se ao público interno de seu partido, não exibiu qualquer sinal de austeridade.
Como estão as coisas, o resultado fiscal de 2024 será um produto dialético de forças opostas dentro do governo, contra e a favor de um aumento relevante no gasto público. Contra ou a favor da responsabilidade fiscal, eis a questão. O equilíbrio dessas forças, ou a sua síntese, dependerá do presidente Lula. A solução é indeterminada, seus critérios serão políticos, pessoais e conjunturais. Popularidade, relacionamento com o Congresso e eleições municipais serão fatores importantes na definição da política fiscal.
A política fiscal se tornou, portanto, “presidencial”, no mesmo sentido em que se diz que a diplomacia brasileira é “presidencial”, ou seja, não mais conduzida por profissionais especializados seguindo alguma estratégia, mas direta e pessoalmente pelo presidente, amiúde pela imprensa e com certa dose, possivelmente excessiva, de improviso.
A diplomacia presidencial não tem colecionado propriamente sucessos, a conjuntura internacional ficou mais difícil. Mas vamos ficar nos assuntos da economia.
Crowding out
A política fiscal vai chegando em um momento de definição, quando as culpas do governo anterior já não funcionam como álibi e o presidente parece mostrar suas cartas.
Muito comedido e quase tropeçando nas palavras, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, observou que quando há “uma mudança do governo que faz com que a âncora fiscal fique menos transparente, o custo da política monetária aumenta”.
Quis o destino que o primeiro presidente do BCB atuando dentro de mandato de presidente diferente daquele que o nomeou viesse a enfrentar um crowding out de livro texto, ou seja, uma inconsistência entre política fiscal expansionista e política monetária comprometida com uma meta identificada como a estabilidade.
A primeira metade da terceira presidência Lula é, portanto, de “crowding out”, como bem o demonstram os atritos públicos entre Lula e Roberto Campos Neto. Freios institucionais da LRF, bem como as complexidades da dinâmica orçamentária brasileira, acabaram evitando o descontrole fiscal, que sempre parece achar sua justificativa nas exigências da governabilidade.
O gasto vai crescendo silenciosamente. Todavia, com as tensões orçamentárias aumentando, na medida em que não há ganho relevante de receita, não se encontram fontes inexploradas nem recursos esquecidos, e o Congresso conseguiu avançar na parte discricionária do gasto. O Executivo encontra dificuldades em praticar o clássico “presidencialismo de coalizão” a partir de contingenciamento orçamentário, os partidos governistas têm uma bancada muito menor do que tiveram no passado e o Judiciário está mais presente no jogo fiscal.
Disso resulta que o governo tem exibido crescentes dificuldades conceituais e práticas de conviver com a ideia de responsabilidade fiscal. Também parece claro que há resistências institucionais à irresponsabilidade aberta.
Nessas difíceis condições, as medidas fiscais propostas pelo ministro sempre parecem encenações: se são na direção da austeridade, parecem ignorar a vontade do presidente e do partido do governo. Se são na direção contrária, destinam-se a solapar o ministro, talvez refletindo dúvidas do presidente.
Quando a política fiscal não tem índole, também não tem padrinhos, nem compromissos claros. Se é de natureza presidencial será necessariamente imprevisível. O governo parece tão dividido nesse assunto quanto a mente do presidente da República.
O instinto político do presidente Lula é conhecido, ainda que já tenha sido mais agudo no passado. Na dúvida, há certo viés na direção do gasto, mas os humores do presidente da República são cambiantes, e seu relacionamento com o partido do governo é um tópico por demais complexo para qualquer analista.
Também complexo é o relacionamento do presidente Lula com seu ministro da Fazenda, talvez seu sucessor.
Começam a aparecer as primeiras especulações sobre a sucessão de Roberto Campos Neto e sobre os últimos lances desse ciclo de baixa da política monetária. Será que o crowding out poderá desaparecer se 3 dos 9 diretores do BCB, incluído o seu presidente, forem substituídos?
Pena que tenhamos essas tensões exatamente quando a economia internacional parece entrar em uma quadra de adversidade.
O mês de abril assinala uma piora no ambiente externo seja pelos riscos geopolíticos, seja pela surpresa negativa na inflação americana, que teve como efeito a impressão generalizada de que os juros americanos ficarão mais altos por mais tempo. Higher for longer foi uma das expressões mais ouvidas nesse mês, quando o dólar se fortaleceu no mundo inteiro, com os efeitos que se conhece. Tudo é mais difícil quando a conjuntura internacional é desfavorável, os tradeoffs ficam mais apertados e as autoridades brasileiras erram mais.
O normal nessas condições é apertar os parafusos nos assuntos fundamentalistas, sobretudo fiscais. Quando o panorama se torna mais incerto é bom retornar ao livro-texto. Mas não foi bem isso o que se passou em abril.
[1] Rogério L. F. Werneck “Arcabouço da farra fiscal” O Globo e O Estado de São Paulo 26/04/2024.
[2] Para uma explicação ver https://braziljournal.com/opiniao-sobre-o-limite-de-despesas-no-arcabouco-fiscal/
*Gustavo Franco é sócio-fundador da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do Banco Central do Brasil. Este artigo faz parte da Carta Estratégias de Abril, relatório mensal distribuído pela Rio Bravo a seus clientes e reproduzido com exclusividade pela EXAME Invest."