Gustavo Franco: 'A democracia venceu, as eleições tiveram seus resultados honrados, o Executivo e o Parlamento estão em plena atividade' (Reprodução/Exame)
Redação Exame
Publicado em 8 de agosto de 2023 às 08h40.
Última atualização em 8 de agosto de 2023 às 08h55.
O mês de julho teve marcas positivas importantes para o governo: a primeira votação vitoriosa do texto base da reforma tributária, o “upgrade” dado pela FITCH para o risco soberano do país e o início do ciclo de baixa na política monetária ocorrido, em verdade, já nos primeiros dois dias de agosto.
Nos três temas, são excelentes começos, mas apenas os primeiros movimentos de caminhadas que podem ser longas e difíceis. De toda forma, esse conjunto proporciona um belo encerramento para o período de “aterrissagem” do novo governo, aí consideradas todas as acomodações de placas tectônicas, inclusive as equações políticas e modus operandi da nova administração. A segunda metade desta nova presidência começa a seguir, e necessariamente há de revelar a verdadeira índole econômica desse governo.
Há um longo caminho a trilhar com o texto da reforma tributária, que ainda vai para o Senado e só depois é que uma lei complementar trará sua calibragem, e no contexto de regimes de transição da cinco anos (para a extinção definitiva dos impostos sendo “reformados” – PIS-COFINS, IPI, ICMS, ISS) e de 50 anos para o regime de incidência do IVA estadual – IBS – da origem para o destino.
Tudo considerado, é uma reforma de efeitos para o longo prazo e de tramitação especialmente longa, mesmo levando em conta o que se passou com outras reformas de complexidade comparável, como a da Previdência, que teve vários capítulos ao longo de muito tempo, inclusive atravessando vários governos.
O “upgrade” na classificação do risco soberano brasileiro não era de todo inesperado. A FITCH estava defasada relativamente à MOODY’S e à S & P, a primeira já com Ba1 e a segunda com BB e outlook positivo, todas convergindo para um degrau abaixo do grau de investimento. Os spreads de risco soberano nos derivativos de “default” (CDS) já estiveram na região consistente com o “upgrade” para o grau de investimento, mas já ajustaram para um degrau mais abaixo: o CDS brasileiro para cinco anos negociou em julho na faixa de 170 bps.
Mas o movimento das agências não acompanha o do spread no mesmo ritmo, ainda mais quando se trata dessa importante mudança de patamar. Mesmo que o grau de investimento seja algo como uma nota cinco numa escala de zero a dez para a nota de crédito – portanto, uma nota medíocre –, é um limiar importante, e tomado como suficiente para os títulos do país perderem a designação de “grau especulativo”. É como passar de ano, ainda que raspando, ou progredir para a série A. Será um marco importante a alcançar, e um objetivo a perseguir para a política econômica do país.
As agências devem fazer uma pausa grave após atingirem o grau de investimento menos um degrau (Ba1, BB+ e BB+, respectivamente para MOODY’S, S& P e FITCH) a fim da aguardar o que a política econômica trará depois de terminada essa acomodação inicial de placas tectônicas, uma imagem eloquente para os primeiros 7 meses da terceira presidência de Luiz Inácio Lula da Silva. A democracia venceu, as eleições tiveram seus resultados honrados, o Executivo e o Parlamento estão em plena atividade e as ideias econômicas heterodoxas não acharam espaço no governo, ao menos por ora.
Resta ver qual será a efetiva configuração da política econômica da atual presidência. Afinal, a economia não esteve entre os grandes debates no decorrer do processo eleitoral. Em consequência, o programa econômico deste governo tem sido montado em pleno voo, e por ministros que não imaginavam estar nas cadeiras que hoje ocupam.
É claro que havia e continua a haver muito espaço para improviso e voluntarismo, bem como para a influência corporativa das “máquinas”. São grandes esses perigos, basta lembrar da Nova República.
Entretanto, também é verdade que houve um aperfeiçoamento institucional muito relevante, no âmbito fiscal e monetário, incremental e através de grandes reformas, dos quais resultou um país cuja política econômica é muito mais protegida de aventuras heterodoxas.
No plano fiscal, o destaque cabe à LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) tanto pela lei em si, como pela cultura que introduziu na administração pública brasileira nos últimos anos. Cultura que se materializou em normas limitadoras e na orientação e intervenção cotidiana dos tribunais de contas pelo país.
Adicione-se a isso o trauma decorrente do impeachment de Dilma Rousseff, causado por “pedaladas fiscais” e aberta irresponsabilidade fiscal com desastrosas consequências macroeconômicas. Por mais que o presidente se esforce para prestigiar Dilma Rousseff, inclusive se referindo ao impeachment como “golpe” e antagonizando Michel Temer, é grande a cautela para não repetir as políticas tresloucadas no Tesouro Nacional que estão na base do fracasso político e administrativo que foi a presidência Dilma Rousseff.
Mas a principal salvaguarda destinada a proteger o país de experimentações heterodoxas é de ordem monetária e reside na autonomia do BCB (Banco Central do Brasil).
É compreensível o esperneio do presidente da República quanto à perda de poder que esse arranjo de fato representa. É claro que o presidente democraticamente eleito possui, em tese, toda a legitimidade do mundo para fazer tudo errado na economia, seja no Tesouro ou no Banco Central.
Mas é melhor que acerte.
A despeito das queixas, entretanto, parece claro que a autonomia do BCB teve papel fundamental para permitir uma transição política bem-sucedida, ainda que sob imensas tensões políticas.
Independente da reclamação, às vezes mirabolante, espalhafatosa e de motivação marqueteira, sobre a dosagem da política monetária, há pouca dúvida que a sistemática de autonomia do BCB – vale dizer, especificamente, a não coincidência entre os mandatos dos dirigentes do BCB e do presidente da República, estabelecida pela Lei Complementar 179/21 – foi aprovada com louvor e não será alterada.
A contrariedade presidencial é do jogo, mas muito mais importante que o esperneio é a aceitação das regras do jogo, mesmo quando não são do seu agrado. Assim é a democracia.
O presidente da República, afinal, escolheu e nomeou os dois dirigentes do BCB que lhe cabia na forma da nova regra: Gabriel Muricca Galipolo e Ailton de Aquino Santos foram nomeados em 12/07/2023, respectivamente para as diretorias de política monetária (DIPOM) e de fiscalização (DIFIS).
Ambos tiveram sua primeira reunião do COPOM nos primeiros dias de agosto, quando o BCB deu início ao ciclo de baixa na taxa SELIC, com uma redução de 50 bps. A 256ª. reunião teve votação apertada. Na verdade, foi a primeira vez que se observou um placar de 5 a 4 desde que foi criado o COPOM em 1996[1].
Segundo o comunicado ao término da reunião, votaram por uma redução de 0,50% os seguintes membros do Comitê: Roberto Campos Neto (presidente), Ailton de Aquino Santos, Carolina de Assis Barros, Gabriel Muricca Galípolo e Otávio Ribeiro Damaso. Votaram por uma redução de 0,25% os seguintes membros: Diogo Guillen, Fernanda Guardado, Maurício Costa de Moura e Renato Dias de Brito Gomes.
O noticiário deu grande destaque ao fato de que o voto de Roberto Campos Neto “desempatou” a disputa, pois se ele tivesse votado com o grupo mais hawkish, a redução de 0,25% teria vencido. Mas o mesmo pode ser dito sobre o voto dos dois novos diretores, ambos para a opção mais dovish. Uma nova dinâmica se estabelece no COPOM com a presença de uma “Bancada” mais “branda”, “governista”, ou dovish.
Essa divergência não deverá aflorar nas primeiras rodadas de redução, mas certamente virá logo adiante, quando a SELIC se aproximar da chamada “taxa neutra”, que não se sabe exatamente qual é.
Antes da decisão anunciada no dia 2/8, o Boletim FOCUS prognosticava a SELIC para o fim do ano de 2023 em 12%, portanto, previa 1,75% de queda para ter lugar em quatro reuniões. Depois de 0,5% de redução nessa reunião, e de um comunicado que parece indicar que esse ritmo será mantido, a expectativa para o fim do ano deverá se ajustar.
É também de se refletir sobre até que nível vai descer a SELIC, uma conversa que leva diretamente à estimação da chamada “taxa neutra”, a próxima polêmica da política monetária, a se mostrar mais aguda, provavelmente quando a SELIC cair abaixo de 10%.
O ciclo de queda nos juros serve para assinalar, como observado acima, o início de uma segunda fase desta presidência, cujo desenrolar, ao menos no tocante ao Legislativo, terá muito que ver com o rescaldo de alguns dos assuntos desses primeiros meses, em especial com o andamento da reforma tributária, o assunto mais falado no mês de julho.
Será natural que esse tema volte a movimentar o Parlamento, na medida, inclusive, que passa a envolver o Senado.
A reforma tributária é a última das reformas ditas de primeira geração, ou seja, aquelas que fizeram parte do chamado Consenso de Washington. Talvez a penúltima, eis que a abertura continua pendente e encrencada, nem mesmo o acordo comercial Mercosul-União Europeia se consegue encerrar.
Note-se, ademais, que esta reforma tributária trata apenas dos impostos sobre o consumo, e que se espera que venha muita coisa pertinente a outros impostos.
O fato é que as dificuldades foram tão grandes durante todos esses anos, e mormente em razão de tensões federativas, que há um enorme incentivo para que os políticos declarem vitória neste assunto e se movam para outros temas.
O ministro Haddad indicou interesse em esticar o assunto para chegar nos impostos diretos, para os quais provavelmente vai abraçar alguns dos dispositivos do pacote enviado por Paulo Guedes à Câmara, onde chegou a ser aprovado antes de estacionar no Senado. A tributação de dividendos e o fim dos JCP (juros sobre capital próprio) são os temas mais prováveis de serem retomados, especialmente em vista do viés progressista que o ministro tenciona adotar nesses esforços.
Na mesma toada, a tributação de recursos offshore e fundos exclusivos já está no ar, tudo indicando que o governo prepara um pacote tributário de índole arrecadadora e alegadamente progressista no segundo semestre. É claro que essa expectativa não contribui para o ânimo empresarial, e pode desperdiçar boa parte da energia positiva gerada pela reforma dos impostos sobre consumo. Esse pacote do segundo semestre já parece se esgueirar das conversas sobre a reforma tributária, da qual consta, inclusive, um prazo determinado para que o governo a envie ao Congresso, e mesmo algumas ideias de índole populista para impostos sobre propriedade (IPTU, ITDMA e IPVA).
A reforma dos impostos sobre o consumo, entretanto, em vista de sua evidente complexidade e abundância de detalhes críticos, pode complicar o calendário, entrar pelo segundo semestre, e prejudicar a sequência pretendida pelo ministro. Trata-se de um cenário provável tendo em vista o histórico de dificuldade técnica e política da reforma tributária, tema que teimou em permanecer incompleto e inconclusivo por muitos anos.
Senão vejamos.
A reforma atualmente em discussão consiste em consolidar todos os impostos sobre o consumo, que incidem sobre faturamento e valor adicionado, e que pertencem às três esferas da federação, cada qual com suas regras. Três novos tributos são criados: (i) um IBS (imposto sobre bens e serviços) para os estados e municípios, reunindo o ICMS e o ISS; (ii) uma CBS (contribuição sobre bens e serviços), federal, sem partilha e que reúne PIS-COFINS e IPI; e (iii) um imposto seletivo federal, sem partilha, de índole arrecadatória, para incidir sobre bens como bebidas e tabaco, papel que hoje cabe ao IPI.
Os ganhos da reforma advêm principalmente da eliminação do efeito cascata nesses impostos, todos passando a contar com fórmulas de creditamento: (i) os impostos federais sobre faturamento todos se tornariam impostos sobre valor adicionado, no âmbito da CBS, com isso admitindo um creditamento mais extenso do que hoje existe para os regimes não cumulativos de PIS-COFINS; e (ii) a unificação e simplificação do ICMS, ou dos 27 regulamentos de ICMS dos estados, em um único sistema, com as mesmas regras de creditamento, base de cálculo e hipóteses de incidência, inclusive a convergência para a cobrança no destino (se bem que ao longo de 50 anos).
É claro que é discutível se essa movimentação resulta em simplificação, quando o movimento inicial envolve um acréscimo de complexidade. Tem havido muito debate sobre o assunto, e uma multiplicidade de outros temas ficou para o terreno dos ajustes, com destaque para o tratamento de incentivos fiscais e a constituição de fundos de ressarcimento para perdas. A própria fixação de alíquotas ficou para depois, uma vez que se pretende que não haja elevação da carga tributária resultante da reforma, uma conta nada fácil, mas que já se sabe que dependerá dos tratamentos setoriais específicos em discussão, e se definirá em alguma instância administrativa, provavelmente um conselho criado para este fim.
Nada parece consumir mais energia política do que as encrencas federativas, de modo que tudo o que se pode prognosticar sobre o andamento desse assunto é que vai se prolongar além do esperado e com desgastes maiores do que pensa. Nenhum governo foi tão longe quanto este nesse assunto, só resta saber se isto será bom ou ruim. Será bom se terminar bem e rápido, o que parece ser a aposta do governo. Entretanto, pode ser ruim se não terminar, e se o assunto continuar a mobilizar o Parlamento durante muito tempo – nesse caso, dificultando as ações de governo em outras áreas.
Passado o recesso parlamentar, o segundo semestre de trabalho do Congresso terá um contexto diferente, será “um segundo momento” para a política econômica, pós aterrissagem, quando serão menos adaptações e continuações de temas antigos, mas as verdadeiras cartas desta administração. Os juros americanos não estarão mais subindo, e os do Brasil deverão estar em queda, um horizonte de aspecto benfazejo. Julho termina bem, no final do dia 2 de agosto, e uma nova etapa parece ter início. A grande pergunta, e o grande risco passa a ser: o que vai haver de realmente novo na economia na presidência Lula 3?
[1] Para um levantamento dos “placares” anteriores de votações no COPOM, e uma discussão sobre a existência de bancadas no BC ver Franco & Mercadante “Voto divergente no COPOM: uma nota”. Disponível em https://www.riobravo.com.br/voto-divergente-no-copom-uma-nota-2/. Acesso em 4 ago. 2023.
*Gustavo Franco é sócio-fundador da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do Banco Central do Brasil. Este artigo faz parte da Carta Estratégias de julho relatório mensal distribuído pela Rio Bravo a seus clientes e reproduzido com exclusividade pela EXAME Invest.