Novas tecnologias de pagamento e novos arranjos regulatórios têm ajudado a promover a competição no sistema financeiro (Christiann Koepke/Unsplash)
Da Redação
Publicado em 1 de abril de 2022 às 06h15.
A década de 2020 ficará marcada pelo avanço da inclusão financeira verdadeiramente ampla no Brasil, em um caminho sem volta que transformará a vida de pessoas físicas e jurídicas até aqui parcialmente atendidas (“subservidas”), bem como as excluídas do sistema financeiro.
Essa nossa convicção vem pari passu com a constatação de que o desenvolvimento crescente das fintechs (numa definição livre, a aplicação de novas tecnologias que buscam aperfeiçoar, revolucionar e automatizar a entrega e a utilização de serviços financeiros) e o avanço da implementação do Open Banking e do Open Finance são um “toque final” de uma histórica trajetória evolutiva, que coroa muitos outros capítulos e conquistas não menos importantes e que merecem nossa releitura.
A atividade bancária e o comércio têm seu desenvolvimento simbiótico desde os tempos em que os fenícios imprimiam sua hegemonia expansionista no Mediterrâneo. Aqui no Brasil e décadas antes do Plano Real, similarmente, o financiamento da pessoa física comum plantou suas raízes no crediário, forjando uma economia de consumo bastante singular e distinta da que floresceu nos Estados Unidos e na Europa a partir dos anos 1950.
O crediário, por sua vez, tem sua história vinculada à do comércio varejista, que se estruturou para atuar como “loja-financeira” em tempos em que os bancos, propriamente ditos, pouco financiavam a pessoa física, em um ambiente ameaçado pela hiperinflação e pelos elevadíssimos custos do escasso capital impostos ao empresariado.
Os cartões de crédito se adaptaram no Brasil ainda no ambiente de hiperinflação, ancorados nos prazos de liquidação “casados” com o recebimento dos valores faturados em data coincidente com o pagamento aos estabelecimentos comerciais -- como hedge natural, próximo a 30 dias da captura das compras. Até porque, de outro modo, não seria possível suportar o float negativo em troca de tarifas, como se faz nos Estados Unidos.
A estabilização da moeda a partir de 1994 induziu o varejo brasileiro a ampliar a aceitação dos cartões de crédito como alavanca para o crescimento de seu core business mercantil, mesmo com essa sistemática da liquidação a termo.
Nesse ambiente, as empresas de cartões de crédito disseminaram as compras “parceladas sem juros” com o apelo de parcelas fixas indissociável de nossa cultura de consumo e, com isso, substituíram os arriscados inventários de cheques pré-datados assinados pelos correntistas dos bancos, que circulavam na economia sem adequados registros e controles de liquidez.
O desenvolvimento do parcelado sem juros se deu de forma praticamente espontânea pela sua conveniência, ainda que sob a crítica daqueles que o definem como uma distorção por omitir os “juros embutidos” pelo varejo e por não ter paralelo em economias livres de hiperinflação. Tema que merece nova reflexão, diante do fenômeno das compras com valor programado de parcelas exploradas pelas fintechs do buy now, pay later nos EUA e na Europa.
Fato inconteste é que o parcelamento sem juros carrega a distorção do risco de crédito assumido pelo emissor do cartão sem ser proporcionalmente remunerado e capitalizado para carregar o ativo de parcelas a vencer. Até 2021, as credenciadoras usufruíram da preferência para descontar esses recebíveis para os estabelecimentos comerciais, funcionando praticamente como banco protegido pelo “duopólio das maquininhas”. A estrutural integração vertical entre bancos e credenciadoras não impedia que esse modelo funcionasse a contento.
Porém o acirramento da concentração bancária motivou resposta do Banco Central do Brasil (BCB), sempre empenhado em estimular a competição. Por exemplo, em junho de 2021, foram operacionalizadas as registradoras de recebíveis, conferindo ao comércio acesso a quaisquer financiadores em ambiente competitivo, em busca dos melhores preços pelos seus ativos – em que pese a instabilidade inicial na interoperabilidade entre registradoras ainda precisar ser sanada.
Na esteira do Plano Real e da estabilização da moeda a partir de 1994, nosso sistema financeiro deflagrou novo ciclo de transformações, tendo em 2001 um marco nem sempre reconhecido na medida justa, a implementação do SPB – Sistema de Pagamentos Brasileiro, tanto pela sua contribuição prudencial quanto pela consolidação do BCB como orquestrador de infraestruturas compartilhadas pelas instituições reguladas. Mas escolho destacar dois outros eventos:
Ambos estão no cerne da questão da inclusão financeira abrangente da sociedade brasileira. A intermediação financeira dos bancos, em que o mesmo recurso é utilizado para a concessão de crédito múltiplas vezes dentro dos limites de alavancagem permitidos, é combustível para a geração de riqueza na economia, posto que as instituições se mantenham eficientes provendo segurança e remuneração para o investidor e subscrevendo o crédito aos tomadores com responsabilidade e transparência.
A competição assegura a eficiência, e a concentração bancária exige controle e mitigação pelo regulador. A partir da crise global de 2008 e a inclusão do BCB no Comitê da Basiléia para Supervisão Bancária em 2009, nosso regulador se manteve proativo e vanguardista, adequando e implementando as recomendações emanadas por aquele foro, com importante destaque para os atos de regulação prudencial que se tornaram necessários diante dos riscos sistêmicos internacionais materializados com a crise do subprime.
Destaquei também a eficiência dos sistemas de pagamentos como pré-requisito para que as linhas de crédito “azeitem as engrenagens” da atividade econômica, o que logicamente embute a temática dos cartões, do SPB e do SPI – Sistema de Pagamentos Instantâneo. Afinal, mesmo livre da hiperinflação, até 2010 a economia doméstica ainda se viu exposta a elevados custos transacionais sem paralelo com os de países comparáveis, majorados pelo custo de capital inerente à liquidação “casada”.
A quebra do duopólio das credenciadoras e o apetite das fintechs entrantes que as desafiam vêm beneficiando o comércio com a redução gradual das taxas de desconto, ao lado de mais estímulos regulatórios a exemplo da legislação de 2017 que permitiu ao comércio praticar preços diferenciados por meio de pagamento. Sem contar a contribuição da adoção de novas tecnologias de captura nos últimos anos, da revolução deflagrada pelo Pix em 2020 e do já citado advento das registradoras de recebíveis em 2021.
Muitas conquistas importantes do setor financeiro que antecederam a democratização do acesso à internet e a disseminação dos smartphones no Brasil tiveram seu impacto limitado porque a distribuição e o acesso irrestrito “emperravam” no elo final da cadeia, naquele tempo “analogicamente limitado” por canais físicos e telefônicos.
Mas agora, enquanto avança o programa Agenda BC#, centrado na evolução da estrutura do sistema financeiro, o momento é, sim, de showtime para as fintechs e para a adoção do Open Banking e do Open Finance. E a inclusão financeira, que preconizamos ser o grande marco da década de 2020, é uma grandiosa e inacabada obra erguida ao longo de décadas por reformas que, combinadas, criaram as condições agora presentes e que habilitam o próximo salto para a sociedade brasileira.
Se o crédito ao consumo muito se desenvolveu e as novas “instituições financeiras de propósito limitado” que surgem a partir de 2012 surpreenderam pela inovação, especialmente de pagamentos, a inclusão financeira poderá agora demonstrar seu real impacto social e econômico para muito além do financiamento ao consumo. Principalmente habilitando pessoas físicas e jurídicas a consumir e empregar produtos e serviços financeiros no seu papel mais valoroso de empreendedores e investidores, usufruindo de juros baixos duradouros e de distribuição de acesso simples, a todo tempo e em qualquer local.
O Brasil dará esse salto criando mais bancos altamente competitivos, especializados no mercado endereçável de sua escolha e alavancados não só no balanço mas também pelo domínio e emprego de tecnologias contemporâneas. Verdadeiros “neobancos”, não porque independem de agências físicas, mas, sim, capazes de suprir as necessidades dos investidores e dos tomadores de forma primorosa, multiplicando o uso da moeda, aplicando preços justos e surpreendendo com formas inovadoras de servir com crédito, investimentos e pagamentos.
Carlos Zanvettor é CEO e sócio-fundador do Banco Afinz.