Mimbó: "grande maioria das mulheres são agricultoras, vivem do plantio, mas demonstraram a vontade de transformar as próprias vidas" afirma Kalina Rameiro (Datci Bastos/Divulgação)
Karla Mamona
Publicado em 25 de julho de 2022 às 09h55.
Imagine viver em uma caverna por 30 anos. Esse não é um relato pré-histórico, nem o roteiro de um filme. É a história de treze mulheres, descendentes dos fundadores do quilombo do Mimbó. A 170 quilômetros de distância da Capital Teresina, onde moro atualmente, fui conhecer essa história, no interior do Piauí, na zona rural da cidade de Amarante, e me deparei com uma história que carrega muita dor, esperança e a potência das mulheres.
Parte da memória viva do Mimbó, dona Idelzuíta Paixão, neta do casal que deu início a essa jornada, me contou a história de sua família. Seus avós, escravizados, fugiram a pé de Pernambuco e passaram décadas escondidos em uma caverna à beira do rio Canindé na tentativa de escapar da atrocidade escravagista. Ao deixar o abrigo, o casal começou a construir uma comunidade às margens do rio. Segundo dona Idelzuíta, foi só em setembro de 1981 que os habitantes do Mimbó foram reconhecidos como ‘pessoas’. Nesses anos de história, o quilombo se multiplicou com pessoas da mesma família e hoje soma cerca de 600 habitantes. É a Paixão (sobrenome da família) que atravessou décadas de resistência contra a escravidão e segue caminhando com esperança. Idelzuita lutou contra o preconceito, direitos básicos e se tornou a primeira professora leiga do quilombo. Diante de muita emoção, era possível sentir a dor que atravessava seus olhos. Assim, como a força que corria em suas veias.
Cheguei até lá quando soube que um projeto para profissionalizar mulheres do quilombo estava em curso. Foi a artista plástica, designer e artesã Kalina Rameiro quem me fez o convite. Formada em artes plásticas, empreendedora e dona de um ateliê, ela é uma das coordenadoras do projeto, e, nos últimos três meses, tem sido a professora para as mulheres do Mimbó. “A grande maioria das mulheres do Mimbó são agricultoras, vivem do plantio, mas demonstraram a vontade de transformar as próprias vidas. Elas querem ter uma profissão e serem independentes financeiramente”, me contou Kalina quando me falava mais do projeto.
A ideia saiu do papel quando o governo do Piauí conseguiu uma grande doação de tecidos da empresária Cláudia Claudino. A convite da atual governadora do estado, Regina Souza, Kalina – que já capacitava mulheres em outras comunidades – aceitou o desafio. O primeiro passo foi fazer com que as mulheres enxergassem as belezas dentro da própria comunidade. “Elas olhavam muito para fora, o que acontecia fora da realidade delas. Eu fiz um processo de imersão dentro da comunidade para que passassem a olhar com mais carinho o que tinham em seu lar, em seu quintal. A vegetação do quilombo é a inspiração para a arte delas, como uma forma de valorizarem a si mesmas, honrarem as suas raízes.
Enquanto isso, as habitantes da comunidade se candidataram para participar do projeto, totalizando 13 mulheres. Maria de Jesus, Rosildete, Cristina, Elisanete, Sônia, Lene Maria, Maria Francisca, Graziele, Fernanda, Maria Rita, Raimunda Maria, Marta Paixão e Ivandi. Até então, a trajetória das mulheres do Mimbó era viver da agricultura ou se mudar para a zona urbana para trabalhar em empregos informais. Hoje, elas começam a construir seu próprio negócio, que além de renda, traz também autonomia, independência e reconhecimento.
Nem todas costuram, tem aquelas que montam, as que costuram, as que limpam o produto, as que dão o acabamento, tem até as responsáveis pelo controle de qualidade. Mas uma coisa é necessária: todas têm que entender a história do produto.
Hoje, as 13 mulheres estão sendo capacitadas e recebem aulas de artesanato. Em breve, receberão carteiras oficiais de artesãs e já concorrem ao prêmio TOP 100 de Artesanato, do Sebrae. Inclusive, elas também têm o apoio da instituição, que as ensina a precificar seu trabalho e a gerir o próprio negócio, afinal, os empreendimentos são feitos não apenas do produto, mas da precificação, das vendas, da divulgação e da gestão dos lucros. As vendas serão feitas pela internet, através das redes sociais.
Durante a visita, conversei com elas sobre a importância de ganharem, cuidarem e terem a autonomia sobre o próprio dinheiro. Afinal, é esse ciclo de independência que sempre defendi e procurei promover. A história delas me faz pensar o quanto precisamos falar sobre esse tema em todas as camadas. O quanto a independência financeira liberta e empodera as mulheres. Em breve, as 13 mulheres do Mimbó serão artesãs e empresárias, produzindo e cuidando do próprio negócio.
Outra curiosidade é que em muitos casos, como no Mimbó, o quilombo é formado somente e em grande maioria por uma comunidade de mulheres, muitas mães solos. O que acontece é uma evasão dos homens para grandes centros urbanos em busca de trabalho. Essas mulheres carregam a responsabilidade de serem as provedoras de seus lares e de cuidar de suas famílias.
Quando abrimos o nosso olhar para o outro é possível se conectar com profundidade e entender melhor o nosso papel nessa sociedade. Conhecer essas mulheres me transformou de uma forma avassaladora. Desde que cheguei no Piauí tenho a certeza do tamanho da oportunidade e missão de conhecer um Brasil que pouco acessamos. Ao olhar nos olhos de cada uma daquelas mulheres, ouvi-las e sentir tanta força e esperança de um futuro melhor, eu me transformei. Nós mulheres carregamos essa luz, essa força e esse dom de ressignificar.
Em um mundo cada vez mais raso, eu busco essa magia de me conectar de verdade. Em cada uma delas existe um lugar de muita dor, mas também existe uma leveza e esperança de um futuro melhor, afinal elas já transformaram muito.
Não podemos mudar a história passada, mas temos a responsabilidade de mudar a futura. O que essas treze mulheres têm de diferente de nós, enquanto buscamos sermos percebidas e ter oportunidades e direitos iguais. É muito mais que a independência financeira e econômica, é uma independência humana.
*Carolina Cavenaghi é cofundadora e CEO da Fin4she, uma plataforma que conecta e impulsiona negócios e pessoas através da diversidade. É responsável por liderar e implementar projetos que promovem o protagonismo e a independência financeira feminina, buscando ampliar e fortalecer a presença de mulheres no mercado de trabalho. É a idealizadora do Women in Finance Summit Brazil e do Young Women Summit, eventos que já reuniram milhares de pessoas. Foi executiva da Franklin Templeton por mais de dez anos e trabalha no mercado financeiro desde 2006. Atualmente mora em Teresina, no Piauí, é mãe do Tom e do Martin e, através da Fin4she, tem a missão de transformar a forma como o mercado e as pessoas se conectam com a equidade de gênero.