Gustavo Franco: a experiência do pacote fracassado de redução de despesa deixou claro que este governo não contempla financiar a iniciativa pelo lado da despesa (Leandro Fonseca/Exame)
Economista
Publicado em 7 de abril de 2025 às 19h59.
Última atualização em 8 de abril de 2025 às 11h58.
Março ia terminando com o ministro da Fazenda revigorado, quando circulou a terceira rodada da pesquisa Genial & Quaest, mostrando perda adicional de popularidade e aprovação do presidente. Quase ao mesmo tempo saiu a definição de Donald Trump sobre como seria o enquadramento do Brasil no esquema das tarifas recíprocas.
Seria bom que a economia voltasse a ter comando e agenda, e ficasse menos vulnerável aos rompantes do presidente da República, o do Brasil e dos Estados Unidos. E que as políticas de governo mirassem em objetivos econômicos, como, por exemplo, o grau de investimento, e não em pesquisas eleitorais.
Mas ainda não foi dessa vez.
É cedo para que as novas orientações do marqueteiro secretário de comunicação do governo, Sidônio Palmeira, tenham sido efetivas. Cedo também para que as novas medidas na economia tinham tido impactos, exceto pelos anúncios. Igualmente cedo para entender qual o plano de Donald Trump.
O Presidente Lula continua empenhado em recuperar seus níveis de aprovação, mas nada mudou no terreno fiscal. Continuamos na situação de crowding out, e a tendência parece ser a de agravamento do problema, uma vez que o governo colocou na rua novas medidas expansionistas. O mercado e o Copom podem achar bom que os indicadores de atividade exibam recuo. Mas não o Palácio. Parece se estabelecer uma dinâmica perversa, em que a resposta do governo aos índices de popularidade desfavoráveis é no sentido exatamente contrário do que deveria ser.
É difícil prognosticar o desenrolar dessa inconsistência. É cedo para dizer até onde vamos desse jeito. O nível de tensão financeira é muito grande.
O BCB seguiu seu curso, como previsto: na 269ª reunião do Copom, no dia 19, a Selic foi elevada para 14,25%, voto unânime, em linha com o guidance anterior, e com a equação de aterrissagem bem-sucedida de Gabriel Galipolo na posição de presidente da instituição. Este ciclo de alta ainda teria mais um par de ajustes, talvez de menor magnitude, segundo se espera, e daí se seguiriam alguns meses de manutenção. O ciclo de afrouxamento viria tanto mais rápido e tanto mais pronunciado quanto for a contribuição da política fiscal. Esse parecia ser o plano, ressalvado algum acidente de percurso.
O problema é que não se vislumbra propriamente uma contribuição da política fiscal para o balanço de riscos, e para a convergência da inflação para a meta. O cenário externo é “desafiador”, quase um elogio a Trump, e as expectativas estão “desancoradas. O vocabulário do Copom faz as coisas parecerem mais científicas.
Tudo isso não obstante, o ministro colocou no ar duas iniciativas promissoras – a reforma da renda e o crédito do trabalhador (o novo consignado) -, embora nenhuma das duas seja na direção contracionista. O ministro caminha em gelo fino, tentando atender ao presidente, sem agravar o crowding out.
As novas medidas devem contribuir para a popularidade do Presidente – e a do ministro diante do Presidente – no decorrer das próximas semanas (meses?), quando seus efeitos se fizerem sentir, a depender da calibragem e das definições operacionais. Inobstante, a receptividade foi boa, especialmente para o novo consignado (“Crédito do Trabalhador”, conforme batizado pelo marketing oficial). É o que se espera de medidas expansionistas, mesmo sem saber bem o exato tamanho do estímulo.
Só não é realista imaginar que o sucesso dessas medidas vá facilitar o esforço do BCB em recolocar a inflação na meta; uma contração ou mesmo desaceleração da atividade econômica simplesmente não está nos planos do governo.
O novo consignado é uma boa ideia que vinha sendo construída de forma modular nos últimos anos na medida em que os bancos buscavam fórmulas para transportar para o ambiente CLT as práticas de crédito aplicadas com sucesso para funcionários públicos e pensionistas do INSS. Os obstáculos eram o risco de crédito do empregador, o risco de interrupção do vínculo empregatício, a portabilidade da consignação, entre outros.
O novo desenho ainda poderá amadurecer, mas já parece sólido, tendo em vista novidades como a contratação através do e-social e a garantia, ainda que limitada, no saldo do FGTS. Tudo indica que vai haver progresso na definição operacional da nova modalidade de crédito, para o qual a contribuição do FGTS poderá ser crucial. Sempre foi difícil usar recursos do FGTS diretamente pelo trabalhador, pois existe uma clientela cativa para isso nas operações ativas do FGTS. Neste governo, todavia, dada a prioridade do programa e a pressão do Presidente, tudo deverá mudar.
Mas a novidade mais importante do mês de março foi a boa receptividade do pacote que se designou como a “reforma da renda”, na verdade um projeto de lei enviado ao Congresso no dia 18 e que ainda terá um longo caminho a percorrer até sua forma final. Talvez mais preciso fosse descrever a recepção da medida no Parlamento como “benign neglect”, segundo a expressão americana, um clichê difícil de traduzir. Talvez indiferença curiosa, ou boa vontade cautelosa, pois é o tipo de iniciativa cujos adversários atuam com discrição e é preciso aguardar a atmosfera para escolher o posicionamento.
Havia muita curiosidade sobre como seria recebido o projeto, ou mais precisamente, sobre como o governo pensa em financiar o projeto. O reajuste da tabela progressiva – “arredondando” o limite da faixa de isenção em R$ 5 mil – era a parte incontroversa. O número não é despropositado à luz das alegações habituais de “defasagem” da tabela, da qual resulta o chamado arrasto tributário, ou seja, o contribuinte “sobe” de alíquota, com aumentos nominais em sua renda, que o colocam em alíquotas maiores de tributação..
A Unafisco (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil) situa a defasagem em 167% (entre 1996 e 2024). O reajuste da primeira faixa, conforme proposto pelo governo, foi de 121% (de R$ 2,259 para R$ 5 mil), mas a tabela ficou diferente, comprimida entre R$ 5 mil e R$ 7 mil. Os números finais provavelmente vão sofrer alterações; ainda vai haver muita discussão sobre isso no Congresso.
A parte realmente controversa do projeto tem a ver com o modo como se financia esse reajuste da tabela, que foi elevado à categoria sacrossanta de promessa de campanha do Presidente. Quanto custa e de onde vem o dinheiro?
São as perguntas para qualquer projeto de aumento de despesa, porém, nesse caso, tal como se passou com os valores do auxílio emergencial em 2018, não se espera que o Congresso faça menos do que o Executivo propôs. O Congresso sempre será sócio da bondade e jamais aceitará ser o único dono da maldade.
A experiência do pacote fracassado de redução de despesa deixou claro que este governo não contempla financiar a iniciativa pelo lado da despesa. Com isso, o desafio foi o de propor algum aumento de imposto, sem que isso trouxesse muito desgaste; tarefa muito difícil.
Várias possibilidades foram cogitadas, e a equipe do ministro Haddad afinal chegou a uma fórmula engenhosa.
A proposta do governo mirou nos “super ricos”, conforme repetidamente afirmado pelo ministro, mas em vez de criar, afinal, o “imposto sobre as grandes fortunas” (CF, art. 153, VII), ou de tributar diretamente dividendos, optou por criar uma “tributação mínima para altas rendas” (pessoas que ganham a partir de R$600 mil por ano).
Na verdade, a proposta traz um imposto de renda “adicional”, a recair sobre “os que pagam pouco”, e para aferir se o contribuinte está nessa categoria a fórmula de cálculo considera a razão entre o imposto pago e a renda total, combinando a renda tributável já tributada e o resto, incluindo a isenta e a (dita) definitiva (com algumas exclusões no numerador e no denominador, que ainda poderão mudar).
É uma fórmula expedita, uma vez que se mistura facilmente com a declaração de ajuste anual, tal como se fosse uma nova aba do mesmo programa.
Faltam muitos detalhes para os cálculos mais exatos, seja na aferição sobre esse “muito ou pouco”, seja estabelecendo conexões entre a pessoa física e a jurídica. Mesmo sem todas as definições, no anúncio, o ministro apresentou números que se imagina serem apenas indicativos, isto é, simulações sob hipóteses, mas que, todavia, servem para orientar a posição dos negociadores do Executivo na calibragem da medida no Congresso.
Segundo essas estimativa oficiais, a proposta custaria R$ 27 bilhões, beneficiaria 10 milhões de contribuintes, e aumentaria o imposto de exatos 141,4 mil contribuintes. O benefício per capita seria de R$ 2,7 mil por ano para 10 milhões de contribuintes e a oneração per capita seria de R$ 191 mil a cada ano para cada um dos super ricos.
Numa avaliação superficial, é como se fosse um auxílio emergencial extra, financiado por adicional de imposto de renda sobre renda. É uma operação que pode ser maior ou menor, e que pode ser feita várias vezes.
Vários especialistas refizeram a conta geralmente elevando o custo da medida, e refinando o número de beneficiados. Considerando, por exemplo, um custo total para a renúncia de R$ 45 bilhões, e 16 milhões de beneficiados, mantidos os 141,4 mil “super ricos”, o esquema produziria R$ 2.812, 50 per capita por ano para os beneficiados e um custo anual per capita para os super ricos de R$ 318 mil.
É cedo para prognosticar o efeito exato da medida, bem como o desenrolar das negociações. Os parâmetros poderão mudar, bem como as fontes de financiamento da medida e a discussão será intensa no Congresso. Não obstante, do ângulo do marketing político, os efeitos foram melhores que o esperado: uma “despesa” que faz sentido à luz da “Justiça Tributária”, segundo o ministro, que tem impacto expansionista, uma vez que se trata de transferência de renda de quem poupa para quem gasta. Com esta narrativa, o governo conseguiu que um aumento de imposto não fosse descartado liminarmente. Mas resta ver como o Congresso completará a equação para financiamento da medida.
Parece provável, portanto, que a promessa de campanha do Presidente seja mantida, mas com o risco de a bondade ficar grande demais e de piorar ainda mais a situação fiscal, com a economia aquecida e a inflação pressionada. Mas há risco de o benefício parecer pequeno e disperso diante de um desgaste concentrado, o velho problema da “lógica da ação coletiva”. Ou de ficar perdido num pacote tributário complexo ou empacado. É cedo para dizer.
Não há nada errado com campanhas de marketing lideradas pelo presidente da República, no Brasil como nos EUA, desde que não produzam políticas econômicas irresponsáveis, fiscais ou de comércio exterior. Muitos observadores acham que é exatamente o que se passa com Donald Trump e suas tarifas e, ao que tudo indica, este será um assunto dominante nos próximos meses. Ou não. É cedo para dizer.