Valiosos no mercado, este não é o primeiro caso envolvendo mudanças sem acordo com participantes dos planos (Brasilprev/Divulgação)
Marília Almeida
Publicado em 28 de julho de 2021 às 06h40.
Última atualização em 29 de julho de 2021 às 16h38.
Imagine que você tenha um plano de previdência privada que é considerado uma jóia rara no mercado. Plano de benefício definido (PGB), o fundo tem como referencial o pagamento do retorno do IGP-M mais 6%, além de ser baseado em uma tábua atuarial de 1949, o que permite aos participante do plano receber mais porque, segundo essa tábua, você vai viver menos.
Perto da aposentadoria, e buscando aproveitar essa janela de retorno, já que o índice inflacionário disparou cerca de 30% nos últimos 12 meses, você deseja vender um imóvel para realizar um aporte adicional no plano e conseguir obter uma renda maior no período de inatividade. Mas é surpreendido, pois a seguradora impede a realização do aporte.
Foi o que aconteceu com os mais de 100 mil segurados do Brasilprev Individual Tradicional, o antigo plano de benefício definido (FGB), que paga IGP-M mais 6% ao ano. Desde o dia 12 de abril, a seguradora passou a não aceitar mais contribuições esporádicas, aumento de contribuições mensais nem alteração de idade de saída no plano.
Muitos dos participantes do fundo são ex-funcionários do Banco do Brasil (BBAS3), instituição na qual os planos eram vendidos.
Um deles é o corretor Johnny Drescher, 55 anos. Ele comprou o plano em 1999, atraído pela sua flexibilidade. "É um plano no qual pagamos taxa de carregamento de 9%. A seguradora também ganha com ele. E, desde 2010, nos assediam dizendo que existem planos mais modernos no mercado, para realizarmos a portabilidade. Quem não sabia o quanto seu retorno era bom acabou acatando", afirma.
Um grupo organizado em redes sociais e aplicativos de mensagens já ultrapassa mais de 100 membros e alega quebra de claúsula contratual. O grupo já registrou reclamações no Banco do Brasil, na Brasilprev e também no Ministério Público. Há reclamações no site Reclame Aqui e pelo menos quatro processos correm na Justiça sobre o assunto.
Um deles é movido por um cliente do advogado Augusto Leal, sócio do escritório Rocha e Barcellos. "O juiz já nos deu uma liminar impedindo a seguradora de suspender aportes, mas a Brasilprev já recorreu no Tribunal de Justiça. Acreditamos que a seguradora é uma expert no assunto e tinha condições de prever esse cenário quando vendeu o produto", diz o advogado.
Investidores ainda têm esperanças de que haja uma resolução administrativa. É o caso do advogado aposentado Marcus Christo, 65 anos. "Uma ação na Justiça vai me custar caro e vai demorar. Não vai resolver o meu caso. Eu quero me aposentar em poucos anos. E a alta do IGP-M já está arrefecendo. Nestes meses de suspensao de aportes, a Brasilprev economizou, nunca saberemos o quanto, em prejuizo do consumidor."
O argumento da Brasilprev é que, no momento da contratação, o participante do plano estimou o valor do benefício de aposentadoria e escolheu a data em que gostaria de iniciar o recebimento. Com base nas informações, foi calculado o valor da contribuição necessária para fazer frente ao valor do benefício contratado.
A realização de uma contribuição esporádica, que cresceu 60% nos últimos dois anos, gera uma contratação adicional para aumentar o valor do benefício original. Como o produto tradicional está arquivado perante o órgão regulador, não são permitidas novas comercializações. "Um aporte adicional constitui uma nova venda, já que o participante está comprando um novo benefício, além do definido no início do contrato", sustenta a empresa.
O plano foi arquivado em 2016 pela Susep, mas a seguradora resolveu suspender os aportes neste momento pensando na sustentabilidade financeira do plano, diz Sandro Bomfim, superintendente de produtos da Brasilprev.
"A alta do IGP-M e alta dos aportes agravaram o desequilíbrio do plano e não é possível aceitar novos aportes para preservar o equilíbrio dos demais planos", afirma.
Apesar de a seguradora ter uma carteira sólida, assinala Bonfim, a preocupação é com a sustentabilidade do produto. "Queremos evitar que, caso haja um exponencial aumento de aportes, que não conseguiremos honrar com toda a carteira constituída, especialmente de beneficiários que não estão realizando esses aportes extras. Alguns beneficiários ainda realizarão contribuições por até 15 anos", completa.
Bonfim diz que a seguradora encara a decisão da Justiça com naturalidade. "Eventuais decisões judiciais são um direito do participante. Mas nossa decisão é equilibrada e tem respaldo no contrato. Cada aporte adicional gera necessidade de mais provisões e assunção de riscos que ultrapassam os limites da companhia."
Além disso, a seguradora relata a dificuldade em gerir o plano. Isso porque, desde que o governo federal deixou de emitir títulos atrelados ao IGP-M (as NTN-C), há uma escassez de oferta de investimentos que permitam às entidades de previdência realizarem o casamento de seus ativos com seus passivos atrelados a esse indexador. "Toda vez que o cliente faz um aporte adicional eu tenho de atrelá-los a essas garantias, mas não encontro e acabo indexando ao IPCA."
A seguradora ressalta que o participante pode continuar a realizar as contribuições periódicas normalmente, cumprindo assim com a proposta acordada no contrato. Caso queira aumentar o benefício de aposentadoria, a seguradora aponta que a saída é contratar um PGBL ou VGBL para compor o valor.
"Não houve falta de previsão da seguradora de que o cenário econômico poderia mudar. Tanto que continuamos a honrar as contribuições mensais. As garantias da poupança foram revisitadas em 2012, mas as da previdência, não. Continuamos arcando com elas", afirma o superintendente de produtos da Brasilprev.
Procurada, a Susep, órgão regulador do governo para o setor de seguros, aponta que, "em que pese a dificuldade de gestão dos planos atrelados ao IGP-M, as empresas não podem modificar unilateralmente os regulamentos dos planos em vigor. Qualquer alteração de plano precisa contar com a concordância do participante".
Caso as cláusulas contratuais pactuadas sejam alteradas unilateralmente pelas entidades de previdência, a Susep orienta os consumidores a registrarem reclamação na plataforma da administração pública federal Consumidor.gov.br.
As informações obtidas no registro das reclamações serão utilizadas pela Susep, em conjunto com outros dados relativos ao mercado supervisionado pela autarquia, para elaborar índices que contribuirão para o estabelecimento das ações de supervisão, inclusive sanções à empresa.
Mas a autarquia ressalta que as relações entre segurado e segurador devem ser resolvidas com base no marco legal da defesa do direito do consumidor e que seu poder é limitado.
"O trabalho da Susep tem como objetivo estabelecer diretrizes e normativos, bem como aplicar as sanções cabíveis para as empresas, mas isto não assegura a solução do caso particular do consumidor. Apenas o Poder Judiciário possui capacidade de resolver os conflitos nos casos concretos", informou a Susep por meio de nota.
A Susep informou também que tanto o caso da Brasilprev quanto da Evidence estão sendo analisados pela autarquia e poderão resultar em multas ou restrições de atividade por parte da seguradora, se for constatada alguma irregularidade.
A autarquia tem atuado no sentido de monitorar a situação econômico-financeira das entidades e exigido que mantenham capital adequado para garantir o cumprimento de suas obrigações com os participantes, mesmo em um cenário de escassez de títulos indexados ao IGP-M no mercado.
O Ministério Público de São Paulo diz que foi instaurado um procedimento de inquérito civil no dia 10 de junho pelo promotor de Justiça do Consumidor Marcelo Orlando Mendes para apurar os fatos.
Já a promotora de Justiça Thelma Leal de Oliveira, do Ministério Público da Bahia, posicionou-se a favor dos consumidores em audiência realizada nesta segunda-feira, 27, e propôs a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) de abrangência nacional, para restabelecer as condições contratuais originais.
A Brasilprev pediu tempo para consultar sua diretoria e a Susep. A seguradora pode aceitar ou não a assinatura de um TAC. Se rejeitar, o MP poderá propor uma ação civil pública.
A Fenaprevi (Federação Nacional de Previdência Privada e Vida) disse, em nota, que suas associadas seguem estritamente as normas e as diretrizes do órgão supervisor do setor de seguros, a Superintendência de Seguros Privados. "Qualquer medida ou decisão diferente desse entendimento é de inteira responsabilidade da respectiva entidade seguradora."
O caso da Brasilprev não é isolado. Há quase uma década participantes de outros fundos de previdência similares recebem propostas para que mudem para um PGBL.
É o que reclama um participante de um plano também do tipo FGB e que paga IGP-M mais 6%, da Porto Seguro. O participante, que pediu para não ser identificado, chegou a receber benefícios atrativos da seguradora, como não pagar Imposto de Renda de 20% caso optasse por sacar o valor total.
Há outro caso de plano do tipo FGB que pagava IGP-M mais 6%: é o da seguradora Evidence, que pertence ao Santander (SANB11), ocorrido no fim do ano passado. O caso não envolveu apenas o pedido para que usuários realizassem a portabilidade do plano. A seguradora teria obrigado participantes a resgatar os valores, segundo queixas feitas no site Reclame Aqui.
Após receber reclamações de participantes do plano, a Susep esclareceu que eventual alteração contratual, fora do que estiver previsto nos regulamentos dos planos, depende de acordo entre as partes, não sendo objeto de aprovação ou desaprovação por parte da autarquia. Dessa forma, os participantes devem avaliar, livremente, seu interesse em aderir às novas condições propostas pela companhia.
Contudo o regulador reitera que a rescisão contratual por parte da empresa somente é cabível nos casos em que houver expressa previsão contratual. Nesses casos, cabe à empresa comprovar documentalmente em eventual comunicado a seus participantesse eles se enquadram em alguma das hipóteses admitidas para resilição contratual.
Em nota, o Santander diz que "a Evidence cumpre rigorosamente todas as previsões contratuais e está conduzindo o processo de repactuação dos contratos com anuência dos clientes ou autorização judicial e com total transparência perante o regulador”.
As hipóteses em que é admissível o cancelamento dos contratos estão relacionadas aos seguintes casos, a depender de comprovação documental por parte da empresa:
A autarquia orienta o participante, ainda, caso receba um comunicado de cancelamento de plano contratado, a averiguar se está enquadrado em uma das situações e verificar se os documentos contratuais do seu plano de previdência possuem, de fato, as cláusulas informadas.
André Marques, membro da Comissão de Direito Previdenciário da Ordem dos Advogados de São Paulo, aponta que os planos do tipo FGB enfrentam, de fato, um problema do equilíbrio atuarial. "Todos os envolvidos podem de uma hora para outra aumentar os valores de contribuições para cobrir expectativa de benefícios, e isso pode ser prejudicial ao plano."
Mas o caminho, nesse caso, é mudar o regulamento, o que a seguradora pode fazer. "O direito adquirido não vale para quem ainda está em acumulação de recursos, apenas para quem é aposentado", afirma. Mas essa mudança precisa ser aprovada junto ao órgão regulador, no caso a Susep. "Senão, a questão pode parar na Justiça e chegar a órgãos superiores, como o STJ."
Marques atua em casos majoritariamente relacionados à previdência fechada. "Nesses contratos estão buscando modificar o indexador, baixar para IGP-M mais 5%, 4% ou 2%. Porque, com a Selic no patamar atual, fica insustentável. Traz desequilíbrio e a Previc (reguladora dos fundos de pensão) vem orientando os fundos neste sentido".