André Vellozo: é um sinal muito forte. Não é um banco qualquer que quebrou. É o banco que tem Vale do Silício no nome, que é parte da mitologia do Vale (Divulgação/Divulgação)
Diretor de redação da Exame
Publicado em 13 de março de 2023 às 17h08.
Última atualização em 14 de março de 2023 às 14h31.
O empreendedor André Vellozo fazia uma apresentação no RiskTech Forum, na quarta-feira da semana passada, quando o Silicon Valley Bank (SVB) começou a quebrar. Para o paulistano que há 10 anos se mudou para Palo Alto, e que havia passado a madrugada preparando sua apresentação, o evento consolidou sua visão sobre o mercado de tecnologia.
Os slides mostravam que as cinco maiores empresas tech do mundo valem 7 trilhões de dólares, enquanto os cinco maiores bancos valem 1 trilhão de dólares. A assimetria de 6 trilhões de dólares ajuda a explicar o exagero instalado nos últimos anos que, num limite, levou à crise dos últimos dias. "É um sinal muito forte. Não é um banco qualquer que quebrou. É o banco que tem Vale do Silício no nome, que é parte da mitologia do Vale", diz, em entrevista por vídeo para a EXAME.
Segundo ele, a crise do SVB levará a uma mudança história no mercado de venture capital, que financia as empresas de tecnologia. Um novo ciclo se inicia, segundo Vellozo. Para ele, sua empresa de dados, a Drumwave, está preparada para liderar este novo ciclo. A premissa é gerar valor para os dados de cada usuário, uma nova moeda para um mundo novo.
Por que este episódio do SVB leva você a decretar o fim do Vale do Silício como o conhecemos?
Estabilidade é a nova escassez. O sinal é muito forte. O SVB não é um banco de um outro setor qualquer. É um banco que tem o Vale do Silício no nome, e por 40 anos fez parte da mitologia do vale. Uma forma de analisar o episódio é que houve um descasamento de ativo e passivo provocada pela alta dos juros, e isso é normal em crises bancárias. Mas por outro lado estamos diante de uma distorção. O SVB não poderia negar depósitos no auge da atividade de venture capital, no ano passado. Cresceu muito junto com os excessos do setor. E, por causa dos excessos, quebrou.
E por que o episódio mudará o Vale do Silício, na sua visão?
Estamos assistindo a disrupção da indústria de tecnologia como um todo. Chamou minha atenção, logo no início, a forma como o mercado reagiu. Todo mundo reagiu como se fosse um fato isolado, um erro de gestão, ou de comunicação, quase um acidente. Reagiu-se de forma técnica. Para mim o SVB sinalizou um problema sistêmico profundo que vai para além do sistema financeiro. Aponta um problema de confiança no próprio modelo do Vale. A mudança do paradigma de tecnologia sinalizada desde Maio do ano passado, quando a Nasdaq caiu 28%, está fazendo todo mundo se reposicionar. O modelo está exaurido, mostra que não consegue gerar os resultados esperados e ainda não conseguiu se reinventar. É o fim de um ciclo que começou em 2011, quando o Marc Andressen (da empresa de investimentos Andressen Horowitz) afirmou que o software comeria o mundo. Isso fez o modelo do Vale do Silício se multiplicar pelo mundo. Até então, isso aqui era uma cultura muito doméstica. Hoje, a ideia de "disruptar" atividades e empresas no mundo inteiro, com software como serviço, se espalhou. Mas ficou muito claro que escalar empresas com "high growth, high margin e highly defensive” tem ficado cada vez mais difícil. Parecia fácil levar esse conceito para táxis, apartamentos, encontros. Bastava otimizar, demitir, colocar robôs. Eu sempre me perguntava se do outro lado também estariam robôs para consumir os serviços, porque as pessoas foram sumindo do processo - restando apenas o processo. Pois então, o software já comeu o mundo!
E por que este momento de fim de um ciclo acontece agora?
Os juros sobem ao mesmo tempo que o paradigma de tecnologia muda de software para dados. É a colisão de Big tech e Big finance impactando o coração da cultura do vale. O Vale nunca viveu esse conjunto de variáveis simultaneamente, este lugar é um laboratório, é feito para errar, para se testar modelos, mas pela primeira vez erra em praça pública, num mundo de juros altos. O caso da FTX, por exemplo, foi global, afetando a vida financeira de muita gente. E há outros casos recentes, de apostas gigantescas que não deram retorno. Em Maio passado um grande fundo do vale alertou o mercado sobre o impacto da subida dos juros, apontou para os empreendedores, que estariam viciados em dinheiro, que precisam encontrar uma nova forma de atuar. Do SoftBank ao SVB, a cultura do Vale foi espalhada pelo mundo, mas não foram criadas empresas incríveis mundo afora.
Quando esses excessos começaram, na sua visão? O SVB, criado em 1982, é ator importante desta construção do Vale, não?
Entre os anos 60 e 80, foram companhias fantásticas que deram origem ao venture capital. O IPO da Apple é o maior exemplo desse momento. Havia, na época, meia dúzia de fundos de venture capital. Mas o número subiu 50 vezes nos anos 80, justamente na época da criação do SVB. Foi quando começou a se instalar uma distorção notável. Empresas fantásticas são montadas a partir de ideias, depois por pessoas, que são empreendedores obcecados e engenheiros e designers geniais. Só depois vinha o capital. Mas depois a coisa se inverteu, e primeiro você tem o capital, depois cria uma companhia e aí encontra as pessoas. É o framework da descentralização, que foi aplicado no mundo inteiro pelos fundos. As empresas de sucesso, os unicórnios, passaram a ser aquelas com capacidade de levantar a próxima rodada de investimentos. O propósito passou a ser esse. Desconectou-se o propósito do P&L.
Estamos diante do fim deste ciclo?
Nos últimos anos os ciclos foram ficando cada vez mais rápidos, e quanto mais você corre mais se aproxima da morte. Empresas como Uber e WeWork sequer tinham a pretensão de gerar caixa ou serem lucrativas. Apenas aproveitaram fragilidades, e captaram bilhões e bilhões. Não demorou para que as pessoas perdessem a confiança neste modelo. A disrupção do modelo de venture capital é eminente. Agora estamos vivendo o começo de um retorno.
Retorno a que, exatamente?
O Vale está se reiventando neste exato momento. Eu não duvidaria disto por um segundo, esta é a espacialidade da casa. Depois de cryptos, depois do Metaverso, e de todo este barulho com AI, forças como a convergência tecnológica, consciência do consumidor e regulamentação já suportam esta mudança radical. O que o evento do SVB aponta é a necessidade de uma nova licença social para se operar entre Big tech e Big finance. É um retorno a essência da coisa, mas não voltaremos a um mesmo ponto. Chamo de recentralização, o que é tratar dos efeitos do uso exagerado da narrativa de descentralização, que impactou mídia, finanças e quase tudo nos últimos anos, e de forma geral impactou a confiança na atividade. High-tech venture é uma atividade muito especializada, e ficou parecendo que era para todo mundo. Tudo bem que foi num momento de grande liquidez, mas confundiu-se disrupção com inovação. Se você é follower, você precisará de um modelo mais tradicional. Se você terceiriza R&D, corporate vc evoluiu bastante, e já está em alta. Na base, o modelo vai mudar muito, novas métricas, novas formas de escalar, novas formas de investir. Tudo que vemos hoje está prestes a mudar, não é só search com ChatGPT ou pagamentos com Pix, mas aplicações, e-commerce, hardware e a própria idéia de valor.
O venture capital ampliou o acesso a capital mundo afora. O episódio SVB vai levar a uma concentração ainda maior?
Os grandes vão ficar maiores, sim. HSBC comprou o SVB na Inglaterra, por exemplo. Toda vez que acontece uma crise destas os grandes ficam maiores. Da mesma forma surgirão novas ideias e novas empresas para mudar o paradigma. Para mudar o paradigma você precisa de propósito, visão, não de um modelo pasteurizado. Não existe framework para isso. A boa notícia é que o Vale do Silício é muito bom nisso, como já mostrou muitas e muitas vezes.