Bola de cristal dos mercados: previsões que não se concretizam fazem parte da vida de analistas | Foto: Thinkstock (Thinkstock/Thinkstock)
Da Redação
Publicado em 17 de dezembro de 2021 às 17h00.
Última atualização em 17 de dezembro de 2021 às 17h17.
Era uma quarta-feira qualquer.
Douglas Goodman acorda subitamente, com a sensação de que algo está errado. Confirma a suspeita ao olhar para o relógio: o despertador não bastou para lhe acordar na hora certa naquele dia — justo naquele dia de agenda cheia, ao final do qual concederia uma entrevista a um importante programa de TV.
“Paciência... imprevistos acontecem”, ele pensou. No closet, constata que a camisa alfaiatada que pretendia usar com sua nova gravata Charvet não estava lá. Aparentemente, a lavanderia atrasou. Por sorte, uma segunda alternativa estava à mão.
Trânsito pesado para o trabalho. Dividindo a atenção entre o smartphone e a rua, Douglas se distrai e acaba entrando na traseira do carro à frente. Típico acidente bobo: de novo, imprevistos acontecem.
Aquele não parecia ser um bom dia… mas como o pobre homem tinha como saber?
Chegando ao escritório, constata nova obra do acaso — desta vez, a favor: a reunião para a qual estava atrasado fora cancelada.
A tarde prometia tranquilidade. Já se aproximava a hora da entrevista quando uma colisão com outro colega de escritório resultou em uma imensa mancha de café na camisa — que, ressalto, já era o plano B.
Oh, raios. Mas paciência: não dá tempo de resolver. Douglas precisa sair naquele instante para chegar a tempo à emissora onde concederia a tal entrevista, ao vivo — isso contando com trânsito favorável, caso contrário…
Mas dessa vez o acaso jogou a favor. Chegou em cima da hora. Rápidos retoques no visual — bom o bastante apenas para parecer respeitável em frente à câmera. Não importa como foi o dia até ali: era hora de vestir a personagem.
Toma seu lugar na bancada. Refletores ligados. No ar em 3, 2, 1…
“Boa noite. Crise no Oriente Próximo; o recrudescimento das relações Itália-Gabão e a reforma trabalhista peruana. Para tratar destes e outros assuntos que ditam os rumos da política e da economia mundial, recebemos hoje em nossos estúdios Douglas Goodman, estrategista-chefe do Lestásia Group, consultoria especializada em absolutamente tudo, que compartilhará conosco suas previsões sobre esses e outros temas cruciais para os mercados globais…”
E então ele começa a despejar suas certezas milimetricamente mensuradas.
“Elevamos de 70% para 72% as chances de aprovação da reforma tributária pelo governo Tudor.”
“Com base nos eventos das últimas semanas, elevamos para 86% a probabilidade de vitória de Jean Luc Girard nas eleições presidenciais francesas.”
“Estimamos que o PIB angolano mantenha um ritmo médio de crescimento de 6,23% ao ano pelos próximos 17 anos, em razão do que estimamos que o preço do minério de ferro convirja no médio-longo prazo para 64,345 dólares a tonelada.”
“Elevamos a probabilidade de ocorrência de um conflito nuclear entre o Djibuti e a Bolívia nos próximos 120 meses para 8,756341578%.”
…e encerra sua participação antecipando que, em breve, a Lestásia divulgará suas previsões para a descoberta de vida inteligente extraterrestre nos próximos 216 anos. É o gancho para deixar costurada sua próxima entrevista.
E... corta. Fora do ar. Cumprimentos e mesuras habituais, com a certeza de que a performance havia sido um absoluto sucesso, como de costume, com suas opiniões repercutidas na imprensa especializada. Em algum lugar do globo, um trader trabalhava enquanto sua tela era invadida por uma enxurrada de chamadas para matérias sobre as palavras de Goodman. Amanhã, suas previsões estarão em todos os jornais.
Nunca ficou claro para mim como se atribui a probabilidade de ocorrência de um evento binário (ou acontece, ou não) e não repetitivo (só acontece uma vez), e o que exatamente significa um incremento de probabilidade de 20% para 30% do ponto de vista prático: “eu acho que pode acontecer, mas não tenho tanta convicção disso — mas estou um pouquinho mais convicto do que ontem”?
Não importa: ele é um especialista; suas opiniões importam, pois mexem com o mercado — "fazem preço", dizem os traders. É sempre melhor saber o que ele está dizendo.
Jantar comemorativo e depois aeroporto. Com trânsito pior do que o usual, chega em cima da hora: "desculpe, senhor Goodman, mas seu embarque acaba de ser encerrado. Infelizmente este é o último voo de hoje. Gostaria de reagendá-lo para amanhã de manhã?"
Imprevistos acontecem. O homem não tinha como prever, não é mesmo?
*Ricardo Schweitzer é analista CNPI, consultor CVM e investidor profissional. Escreve a cada duas semanas para a EXAME Invest.
**Esta é a última coluna do ano. O próximo artigo será publicado no dia 15 de janeiro.