Minhas Finanças

Preconceitos e desafios no mercado financeiro: mulheres contam trajetórias

Funcionárias do sexo feminino ocupam cada vez mais posições no segmento. Mas esse caminho foi, e ainda é, feito de percalços

Sócias e parceiras da Alocc no Rio. Da esquerda para a direita, Mariana Garcia, Mariana Cunha, Juliana Schuery, Sigrid Guimarães, Mariana Brandileone e Simone Rosa (André Valentim/Exame)

Sócias e parceiras da Alocc no Rio. Da esquerda para a direita, Mariana Garcia, Mariana Cunha, Juliana Schuery, Sigrid Guimarães, Mariana Brandileone e Simone Rosa (André Valentim/Exame)

Marília Almeida

Marília Almeida

Publicado em 5 de dezembro de 2019 às 05h00.

Última atualização em 5 de dezembro de 2019 às 15h52.

São Paulo - A ascensão das mulheres no mercado financeiro, setor outrora dominado por homens, é visível. Apesar da ainda árdua tarefa de subirem à liderança de instituições financeiras, funcionárias do sexo feminino ocupam cada vez mais posições no segmento.

Mas esse caminho foi, e ainda é, feito de percalços. Há segmentos mais e menos diversos dentro do mercado. Mulheres como gestoras, que tomam decisões de investimentos em fundos, ainda são raras no Brasil. Em segmentos como private equity e venture capital, até em mercados mais desenvolvidos, como nos Estados Unidos, o gap de gênero é enorme, quem dirá no Brasil. Presidente de bancos, só se a instituição for estrangeira.

Para ilustrar os desafios, derrotas e vitórias, sócias e parceiras da gestora de patrimônio Alocc, com 5,5 bilhões de reais na carteira, contam como foi esse caminho até resolverem empreender. Todas eram funcionárias de instituições financeiras e têm uma história de preconceito para contar.

Entre outras experiências, Mariana Cunha, responsável pela área jurídica da gestora, integrou o departamento jurídico do BNY Mellon no Brasil, e foi a advogada responsável pelas gestoras ARX Investimentos e BNY Mellon Alocação de Patrimônio por oito anos. Sigrid Guimarães, sócia-fundadora, foi executiva da área corporativa da holding das Organizações Globo por 13 anos. Juliana Schuery foi responsável pelo relacionamento com investidores da Pollux Capital e trabalhou por 10 anos na IP Capital Partners. Mariana Garcia gerenciou o single family office da família Uchôa Cavalcanti (Grupo Estácio de Sá) durante seis anos. A sócia Simone Rosa atuou por 22 anos em instituições financeiras como BNY Mellon, Banco Opportunity e Banco Icatu. Mariana Brandileone, sócia fundadora, trabalhou como executiva nas áreas de Corporate e Mergers & Acquisitions do Banco Modal.

O início

Simone - Trabalhei por 15 anos na área de administração fundos. Vi mulheres na liderança e na superintendência. Mas o que acontecia era que as mulheres ganhavam menos do que os homens no mesmo nível de hierarquia. isso eu só descobrir quando fui promovida e pude constatar que ganhava menos que todo mundo

Mariana C. – Tinha muito mais homem que mulher. Mulheres trabalhavam apenas na área comercial. Quando fui contratada, disseram que tinha de ser mulher para dar uma equilibrada. Porque na mesa de operações não iam colocar mulher.

Juliana – Trabalhei com 20 homens. Eu era a única mulher, tirando as recepcionistas. Aí ouvi que bônus para mim tinha de ser reduzido porque eu era café com leite: trabalha das 9h às 19h. Não falavam na minha cara, mas na reunião dos sócios um deles falou isso e outro me contou, tentou me defender. Achavam que trabalhar 10h por dia era pouco com dois filhos.

Diferenças entre sexos

Mariana C. – Duas amigas minhas trabalham em mesa de operações e dizem que os chefes têm muita dificuldade de aceitar que elas vão ao médico. Porque homem não vai e acha absurdo ficar 1h fora mesmo que seja na hora do almoço. Não entendem que você tenha um médico por mês, de diferentes especialidades. Eles almoçam na mesa e para eles tudo bem.

Juliana – Sem contar pediatra. porque teoricamente deveria ir o pai e a mãe. Quando temos dois filhos, tem consulta todo mês para ir.

Identificação com clientes

Mariana G. - Tenho hoje uma porção de clientes mulheres, que foram super mal atendidas a vida toda e que hoje se sentem acolhidas.

Sigrid – Várias clientes já falaram que se sentem menos intimidadas quando são atendidas por outras mulheres. Uma cliente, viúva, saiu chorando de um banco no qual foram super agressivos com ela. Diversos funcionários tentaram fazer com que ela desistisse de fazer a transferência de recursos dela para outra instituição financeira. Tive que levar ela para tomar um café. Cinco minutos depois, chega um e-mail do cara que a atendeu pedindo para avaliá-lo no banco. Que era importante para o bônus dele. A faixa etária de mulheres que são nossas clientes vem diminuindo. Tenho cliente de 24 anos, 30, que começaram a ganhar dinheiro por algum motivo que a profissão permitiu ou pai morreu e recebeu herança. Atendo uma família super poderosa e machista na qual o pai era dono do negócio, saiu e botou o filho como CEO. Eu conheço ela há 30 anos. Durante todo esse tempo ela tentou trabalhar na empresa e sofreu preconceito. Pediam para ela cuidar da fundação, do marketing e, quando ela tentava falar no comitê, não tinha voz. Há 12 anos ela nos procurou para cuidar do pedaço dela na partilha. Não sabia o que ia acontecer com o negócio. Hoje ela tem a minha idade e está quase aposentada, enquanto o negócio está em crise e os irmãos estão desesperados.

Simone – Na hora que a gente se empodera, empodera elas também para tomarem as rédeas da vida. Afinal, é o patrimônio delas. Mulher geralmente olha o todo, tem uma visão holística. E aqui cuidamos não apenas do financeiro, mas da vida do cliente e suas famílias. Exige esse cuidado.

Juliana – Não gosto de falar que mulher atende melhor. Só que mulheres geralmente têm como características ouvir, acolher e ter empatia. Tinha uma cliente que tinha uma conta fora com um banker brasileiro. Fui com ela na reunião do inventário do marido, que tinha acabado de morrer. Era um momento difícil. O banker chegou e foi direto ao assunto. Não deu nem oi, perguntou se estava tudo bem ou deu pêsames. Atendimento feito dessa maneira vai perder espaço.

Empreendedorismo

Mariana G. – Eu estava voltando a trabalhar depois de ter filho e fui procurar uma consultoria de recursos humanos. Sai de lá arrasada. Ouvi do headhunter que como eu ia prosperar nesse mercado se eu não era agressiva. Resolvi partir para o empreendedorismo, no qual você sai de uma posição passiva, de esperar por uma avaliação, de toda essa subjetividade, para uma posição ativa. Não preciso ser agressiva para atender bem os meus clientes.

Mariana G. – Sou divorciada e tenho dois filhos. Se eu não tivesse a flexibilidade que eu tenho, seria complicado. Não ia conseguir administrar.

Diversidade nos segmentos

Mariana C. – O setor financeiro é muito amplo. A área de tomada de decisão de investimentos em fundos ainda é uma área muito masculina. Tenho duas amigas que são gestoras há 20 anos. Uma delas foi ser empresária e abrir a própria empresa, enquanto a outra continua batalhando. Ela acabou de ter a segunda filha e tem 41 anos. Foi adiando decisões pessoais em virtude da carreira. Quando ela anunciou que já estava com 40 semanas e alguns dias de gravidez disse que iria faltar, era uma sexta-feira, porque ia ao médico. Na segunda-feira ela acabou não indo também. Não recebeu nenhuma mensagem. Na segunda-feira à noite ela de fato tinha tido a bebê e resolveu mandar uma mensagem. Só uma pessoa deu parabéns em um grupo de 50 no Whatsapp. A secretária, trainee e outras mulheres mandaram mensagens privadas. Nunca ninguém perguntou como ela estava durante a licença.

Juliana – Gestor tem de ser agressivo. Não conheço muitas mulheres com essas características. Tem de abrir um pouco mão da vida pessoal, da convivência com os filhos. Nas assets que trabalhei os caras não viam filho, não levavam no médico. Não é igual.

Mariana C. – Discordo. Eu já acho que é um preconceito. Por que mulher não pode acordar 5 da manhã? Por que o marido não pode levar os filhos na escola? Ela pode abrir mão da vida pessoal: é uma opção. Hoje existe um padrão de que para ser gestor de fundos precisa de todas essas características. Mas o mundo está mudando. Hoje para ser bom não precisa necessariamente trabalhar 20 horas por dia. Minhas amigas gestoras de fundos sofrem muito preconceito porque há o estigma de que é uma profissão de homens. Ambas fazem análise e comeram o pão que o diabo amassou. Ficam estressadas, têm herpes aqui e ali. Mas acho que deu certo. As duas tem mais de 40 anos, mais de um filho e maridos participativos.

Momento difícil

Juliana – Quando o mundo estava "acabando" no mercado, e no auge do estresse, eu desmaiei no banheiro. Levei 30 pontos no rosto. A galera da asset me comprou flores. Mas, depois de uma semana, fui demitida. No dia em que tirei os pontos. Em outra situação, quando eu ia ter meu segundo filho e o trabalho estava estressante. o médico me disse que o liquido amniótico estava diminuindo e eu tinha de parar de trabalhar. Falei que não dava. mas tive de marcar a cesária para o outro dia. Anunciei no trabalho ainda de manhã que não vinha no dia seguinte por conta da cirurgia, e ele na hora do almoço avisou todos. Às 18h, um sócio pegou o caderno, sentou do meu lado e começou a me dizer quais eram as metas para o semestre e o que ele queria. Eu tava indo ter um filho no dia seguinte e já estava estressada. Ele ignorou tudo e me pediu mais coisas.

Mariana G - Eu atendi clientes do private bank ainda sob efeito da anestesia do parto.

Desafios e mudança

Juliana – Já vi uma menina que foi fazer um summer job em um banco e chorava todo dia no banheiro.

Sigrid – Para a mulher andar para a frente tem de ser um pouco homem. Não dá para chorar no banheiro. Não dá para ter mimimi senão você não sobrevive nesse ambiente. Existem características muito masculinas e não necessariamente é bullying. É assim que falam entre si. Quando trabalhei na mesa de operações volta e meia tinha de lembrar que tinha uma mulher ali, para pegarem leve no linguajar. Aí brincavam que eu não contava, que eu era "brother". Você tem de devolver na mesma moeda. Se achar que é grosso não sobrevive mesmo.

Mariana C. – No início minhas amigas gestoras vestiam terninho e as roupas mais sóbrias possíveis. Elas já se diferenciavam pelo fato de ser mulher e tentavam ser o mais masculina possível. Hoje isso já mudou. mas havia um estigma de menina bonitinha em um ambiente de homens. Questionavam se você era capaz ou usou outros meios para subir na vida.

Simone – Quando eu estava na BNY Mellon a CVM queria mudar um procedimento em fundos de investimento e tínhamos de pensar como íamos resolver. Todo mundo usava o mesmo método há muitos anos. Então dei uma solução, o chefe aprovou e fui para a CVM apresentar. Disseram que era um absurdo, não havia no mercado, mas concordavam que resolvia o que queriam. Tive então uma reunião com a associação do mercado. Aí ouvi de um diretor se eu achava que como mulher eu ia revolucionar o mercado financeiro e mudar a cobrança da taxa de performance. Fingi que não ouvi. No fim, o método foi aprovado, a instrução da CVM mudou e fui chamada pela associação para fazer a apresentação a todos os associados.

Na edição desta quinzena de EXAME, contamos histórias de outras mulheres que também estão em altas posições no mercado financeiro, fazendo a diferença em um segmento que está para trás na lista de empresas que favorecem a igualdade de gênero. Leia a reportagem aqui.

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