Minhas Finanças

Eles sonham em ser o Nubank das favelas

Administradora de cartões Mais Fácil lança seu segundo cartão comunidade com app em São Paulo e conta como tem levado educação financeira à periferia

Equipe da administradora Mais Fácil no lançamento do segundo cartão comunidade, no Jardim São Luiz, em São Paulo (Mais Fácil/Divulgação)

Equipe da administradora Mais Fácil no lançamento do segundo cartão comunidade, no Jardim São Luiz, em São Paulo (Mais Fácil/Divulgação)

Marília Almeida

Marília Almeida

Publicado em 6 de outubro de 2017 às 05h00.

Última atualização em 6 de dezembro de 2018 às 12h35.

São Paulo - Cartão de crédito com uma pegada inovadora, que permite gerenciar as despesas por aplicativo, com linguagem informal e atendimento humanizado. Poderia ser a descrição do Nubank, mas estamos falando dos cartões comunidade da Mais Fácil.

Eles funcionam como qualquer outro cartão de crédito. A diferença é que são voltados para quem mora na periferia, contribuindo para o desenvolvimento local.

Com bandeira Cabal, os cartões comunidade são aceitos nas máquinas da Cielo, Rede, Bin e Sipag, que são usadas em 95% dos pontos comerciais do país, diz Pablo Pires, CEO da Mais Fácil.

Cerca de um ano e meio depois do lançamento do Cartão Paraisópolis, comunidade com 120 mil habitantes localizada na zona sul da cidade de São Paulo, a Mais Fácil lança agora seu segundo cartão comunidade no Jardim São Luis, também na zona sul da cidade e ainda maior que Paraisópolis: tem cerca de 270 mil habitantes.

O lançamento foi feito praticamente em conjunto com um aplicativo que administra as despesas realizadas nos cartões.

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Julia Drezza, gerente de sustentabilidade da administradora, não esconde a inspiração nos passos do cartão roxo da Nubank. “É nosso sonho”, diz. Também não omite o objetivo ambicioso da empresa de estar presente em comunidades de todo o país.

A administradora também pretende incentivar que qualquer pessoa que queira ajudar no desenvolvimento das comunidades use os cartões. O aplicativo será um meio de atingir um público mais amplo. Pelo app, a pessoa realiza um cadastro e pede o cartão.

Isso porque há um aspecto social no modelo de operação do plástico. Quem usa o cartão nas comunidades destina um percentual do valor gasto em compras a projetos sociais, realizados pela administradora em conjunto com a União dos Moradores da comunidade ou ONGs.

Emerson Barata, presidente da Associação de Moradores e Comércio de Paraisópolis, aponta que o dinheiro revertido para a comunidade já ajudou projetos como a orquestra local, o bistrô da associação, oficinas de hortas e eventos da Associação das Mulheres de Paraisópolis, entre outros projetos.

“Por exemplo, a gente realizou uma caminhada da Associação das Mulheres e conseguiu, com parte do dinheiro do cartão, oferecer lanches e água para as moradoras idosas. Também fizemos camisetas relacionadas ao evento”, conta.

Além disso, a Mais Fácil busca parcerias com comércios na comunidade para oferecer descontos para quem usa o cartão, fortalecendo, dessa forma, a movimentação da economia local. Em Paraisópolis, a administradora de cartões tem parceria com 65 pontos comerciais dos cerca de 8 mil existentes na comunidade.

O comerciante Paulo Henrique, 30, proprietário de uma casa do norte em Paraisópolis, optou por dar 10% de desconto para clientes que utilizam o cartão e está satisfeito. “O volume de venda aumenta porque muita gente saía daqui da comunidade para comprar lá fora e pagava o mesmo preço daqui de dentro. A gente viu o cartão da própria comunidade como uma forma de fazer com que o pessoal compre mais dentro da comunidade, que não saia.”

Apesar do viés social, as taxas de juros cobradas no plástico se assemelham às dos grandes bancos: caso não consiga pagar a fatura, o usuário tem de pagar 14,90% do valor por um mês. Depois, há a opção de parcelamento da fatura, na qual é cobrado juros de 9,90% ao mês.

O começo

“Vocês são loucos”. Foi isso que os gestores da pequena administradora de cartões, que faturou 60 milhões no acumulado deste ano, ouviram quando decidiram criar um cartão de crédito para o nicho inusitado.

A ideia partiu da parceria da Mais Fácil com uma rede de supermercados em Três Corações, no sul de Minas Gerais, cidade com cerca de 80 mil habitantes, menos do que possuem as duas comunidades em São Paulo. “Essa rede de supermercados existe há 30 anos. Vimos que conseguíamos conquistar clientes pela relação afetuosa dos moradores com a empresa e porque ela estava intimamente relacionada à cidade”, diz Pires, CEO da Mais Fácil.

Os gestores da empresa buscaram então um local onde haveria esta relação forte entre os clientes e o local onde vivem. Chegaram à Paraisópolis, uma das maiores comunidades de São Paulo. “Fizemos uma pesquisa com moradores e 97% declararam ter orgulho de viver ali”, diz Pires.

A empresa, então, decidiu lançar um cartão com a marca da comunidade, chamado Nova Paraisópolis, em setembro de 2015. A operação começou, de fato, em janeiro de 2016. E, apesar de todas as críticas, deu certo. Desde o lançamento, o cartão comunidade Nova Paraisópolis já movimentou 3 milhões de reais.

A iniciativa tem um claro viés social, mas a empresa certamente não desprezou o viés econômico que pode ter contribuído para o sucesso do modelo e a sua expansão.

O Instituto Data Popular já mostrava, em 2015, o poder de consumo dos habitantes de comunidades. Os moradores das favelas brasileiras consumiam, naquele ano, cerca de 56 bilhões de reais por ano, o que se assemelhava ao PIB da Bolívia, na época.

Por conta disso, a Mais Fácil não foi a primeira empresa a investir nas comunidades, e nem será a última. É possível ver hoje em Paraisópolis um desfile de lojas de grandes redes de varejo, como Magazine Luiza e Casas Bahia, além de franquias, como a Box 30, do Habib's.

Mas chama a atenção uma empresa criar um cartão de crédito para uma população de baixa renda. Isso porque sabemos que a classe D e E é a que mais sofre com a inadimplência, o que torna o negócio arriscado para qualquer instituição financeira.

Segundo o último dado divulgado pela empresa de recuperação de crédito Serasa, a classe social mais atingida pela inadimplência é a que ganha entre 1 e 2 salários mínimos. Essa classe social representa 39,1% do total de inadimplentes.

Pesquisa do Data Popular feita em 2015 mostrava que 69% das populações em comunidades ainda utilizavam dinheiro como forma de pagamento. Apenas 10% usavam cartão de crédito próprio e 9% usavam cartão de crédito de terceiros.

É fácil ver esse abismo da inclusão dos moradores no mercado de crédito: dos 6 mil usuários do cartão Nova Paraisópolis, 40% declaram que o cartão da comunidade é seu primeiro cartão de crédito.

Lívia, Paraisópolis

Lívia de Freitas, pesquisadora e moradora de Paraisópolis: o cartão comunidade foi o seu primeiro cartão de crédito. (EXAME/Reprodução)

Uma dessas pessoas é a pesquisadora Lívia Freitas de Souza, 40, moradora da comunidade. “Antes de ter o cartão de crédito Nova Paraisópolis, tentei várias vezes conseguir um [cartão] em um banco, e todas as tentativas foram frustradas. Você tem de ir a uma agência bancária, é muito burocrático. Se a gente tiver qualquer restrição no nome, eles bloqueiam o pedido do cartão”, afirma.

Lívia confessa que, nos primeiros pedidos, tinha muitas dívidas pendentes em seu nome. Mas depois passou a continuar a não ter acesso a um cartão de crédito por dívidas pequenas, como gastos de 100 reais em uma loja.

Quando conseguiu obter o cartão da sua comunidade, ela conta que se sentiu incluída. “Eles foram muito gentis, não viram pela margem de quanto é o débito no nome da Lívia. Eles viram pelo âmbito de inclusão, quiseram me dar uma nova oportunidade. Quando você não tem crédito, você se sente excluída. Então, me aceitarem como cliente foi algo que acrescentou na minha vida, financeiramente falando. Porque nem sempre você está com dinheiro e o cartão é um tipo de salvador nestes momentos”, desabafa.

Pires conta que essa análise de crédito mais flexível, diferente da de um grande banco, é o que torna o cartão diferenciado. “Percebemos que muitos moradores estavam com o nome negativado por dívidas de pequenos valores, como uma conta de luz de 20 reais que deveria ter sido paga há três anos. O morador poderia ter esquecido de pagar e nem saber do atraso. Buscamos, então, ter flexibilidade na hora de conceder o crédito".

Quem escorrega na hora de pagar a fatura também encontra flexibilidade, garante Julia. “O cliente já está fragilizado. Não pode ser algo engessado. Parcelamos e fazemos um acordo. Quando o morador quita a dívida ele volta a ser cliente. Entendemos que alguma coisa na vida da pessoa levou a isso, ela superou e bola para frente”.

Educação financeira e limite baixo

O caminho para que o cartão comunidade Nova Paraisópolis desse certo não foi fácil. No início, a Mais Fácil sofreu com a inadimplência registrada no novo produto, que chegou a ficar 20% acima da média do mercado.

Mas, com o tempo, a administradora conseguiu controlar os índices com a ajuda de encontros de educação financeira e a concessão de limites baixos de crédito, que correspondem, em média, de 30% a 40% da renda dos usuários.

Em um ano e meio, já foram realizados 30 encontros de educação financeira com moradores, que atingiram, direta e indiretamente, cerca de 600 pessoas. “Quando começamos a promover os encontros vimos que falar sobre dinheiro era um tabu, e falar de problemas financeiros era um tabu ainda maior. Na base da pirâmide, cria-se um mito de que educação financeira é algo para a elite. Isso, naturalmente, não é verdade”, diz a gerente de sustentabilidade da administradora, Julia Drezza.

Julia não esperava que os encontros fossem inicialmente tão distantes da realidade dos participantes. “No início eles eram engessados. Tanto que, em um deles, uma senhora começou a chorar. Fui perguntar se tinha feito algo de errado e ela disse que, apesar de trabalhar como cabeleireira, não sabia dar troco aos clientes”.

A partir desse episódio, Julia optou por levar o assunto de um jeito mais simples e leve para os participantes. “Dividi os encontros em três fases. Chamamos a primeira de 'Presta Atenção', que é quando alertamos para os tipos de gastos, usando desenhos lúdicos, como as pétalas de uma margarida. Na segunda, chamada 'Varredura', mostramos como é possível cortar gastos. Na terceira, que chamamos de 'Corre atrás', indicamos o que os participantes podem fazer para realizar um sonho”, explica.

A preocupação da administradora é que o foco de gastos dos usuários dos cartões sejam contas básicas, além de impedir que eles caiam no consumismo. “Dessa forma, o cartão de crédito não é um vilão, mas sim um aliado para continuar comprando produtos de qualidade até o final do mês”, explica Julia.

Ela cita um exemplo de um cliente que está sem dinheiro no dia 30, só vai receber o salário no dia 5 e sua fatura do cartão vence no dia 10. “Com crédito, ele pode adiantar uma compra de supermercado ou farmácia e só pagar no dia 10. Isso garante uma alimentação adequada para a família, a manutenção da saúde, no caso de uma emergência. Dessa forma, conseguimos gerar mais acesso a direitos básicos. É um desafio que a gente tem, de quebrar um estigma de que é o cartão de crédito é um vilão e ensinar o morador a se empoderar desse meio de pagamento”.

Barata, da Associação de Moradores de Paraisópolis, acredita que o que também colabora para manter os índices de inadimplência na média do mercado é a oportunidade de ter um cartão de crédito. "Como os moradores não tinham oportunidade de ter um cartão, por menor que seja o limite de crédito, eles têm um cartão de crédito. Então, eles não querem perder esse benefício. Acontece, às vezes, de alguém atrasar uma parcela ou outra, mas o próprio morador tem a preocupação de vir até a associação para ver como pode fazer o pagamento e continuar a ter o seu cartão”, diz.

A Mais Fácil está agora em processo de aceleração na Artemísia, organização pioneira em negócios de impacto social no país. A administradora foi uma das selecionadas na primeira etapa de um concurso de projetos sociais financiado por um grande banco e busca investidores para continuar a expandir.

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