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Ela parou de tratar pacientes para operar na Bolsa

Médica ortopedista e cirurgiã deixou a profissão para trabalhar de casa e ganhar a vida sendo trader na Bovespa, e não se arrependeu

Erika Kalil, trader da Bolsa (Fábio Teixeira/Site Exame)

Erika Kalil, trader da Bolsa (Fábio Teixeira/Site Exame)

Anderson Figo

Anderson Figo

Publicado em 25 de outubro de 2016 às 05h00.

Última atualização em 7 de dezembro de 2018 às 15h51.

São Paulo - Abandonar os bisturis e mergulhar nos gráficos de ações para operar todos os dias na Bolsa de Valores, desde a abertura até o fechamento do pregão. A troca pode parecer ousada até mesmo para quem já estava acostumada a viver sob pressão, mas Erika Kalil, 49, não se arrepende e é categórica: “por que não comecei antes?”

A médica ortopedista e cirurgiã bem-sucedida, que fez parte do Grupo de Coluna Cervical do Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), hoje trabalha de casa e faz seu próprio horário. Mas engana-se quem acha que sua rotina atual é menos estressante do que a de antes.

Erika faz day trade, termo utilizado no mercado financeiro para quando um operador compra e vende um ativo no mesmo dia. É um tipo de operação bem arriscada, pois em poucos minutos você pode ver seu dinheiro virar pó ou seus recursos se multiplicarem, enquanto avalia minuciosamente os gráficos de desempenho dos papéis.

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O interesse pela Bolsa surgiu em maio. “Eu parei de clinicar há alguns anos e fui trabalhar em empresas, ainda dentro da minha área, mas me cansei aos poucos. Comecei a pensar no que eu iria fazer para manter uma boa qualidade de vida, uma entrada de dinheiro mensal, e que eu pudesse fazer meus próprios horários, com um ganho compatível ao que eu tinha quando trabalhava como médica”, diz.

“Um dia, vendo uma revista, eu me deparei com um artigo falando do home broker [plataforma online para fazer negociações de ativos da Bolsa] e me interessei”, explica Erika, que se inscreveu imediatamente nos cursos oferecidos pela BM&FBovespa para entender mais sobre o mercado.

“Eu era uma zero a esquerda, não sabia nada de mercado financeiro porque não era da minha formação. Fiz vários cursos inteiros, que me deram uma base muito boa sobre análise técnica, sobre como você deve trabalhar dentro da Bolsa e sobre os indicadores que influenciam o desempenho das ações e índices etc.”

Em julho, depois de fazer um curso intensivo na Bovespa, Erika fez seus primeiros negócios. “Meu capital estava investido com profissionais e eu peguei menos de 10% do total para operar por conta própria no day trade, pensando nisso como uma fonte de renda para mim. O dinheiro que você usa nesse tipo de operação não pode ser essencial para você, não dá para ser o dinheiro do aluguel, por exemplo, tem que ser uma quantia que não vai te fazer falta, caso você sofra uma perda.”

Erika Kalil, trader da Bolsa

Erika Kalil, trader da Bolsa: é preciso se conhecer antes de operar no mercado (Fábio Teixeira/Site Exame)

Apanhar faz parte

A primeira lição que a trader novata aprendeu foi também a mais dolorosa: o prejuízo. “Todo aprendizado tem um preço. Quando você perde, tem que ter consciência de que esse é o preço do aprendizado. Mas tem que aprender, não pode incorrer no mesmo erro”, diz. “Eu perdi muito no começo, não me pergunte quanto senão vou chorar aqui. Você perde. Não pode pensar em recuperar depois. Tem que focar em aprender e seguir em frente.”

O segredo, afirma Erika, é conhecer a si próprio. “A gente tem a mania de querer fazer as mesmas coisas e ter resultados diferentes. A hora em que você começa a perceber onde está errando e vai se corrigindo, aí você começa a ver a luz no fim do túnel.”

Para ela, os erros cometidos a ensinaram a prestar atenção nas suas próprias fraquezas. “A gente é super corajoso quando está perdendo e tem um medo danado quando está ganhando. Entendendo até que ponto você pode perder, basta respeitar seu stop [mecanismo de venda automática de um ativo quando ele atinge um valor predeterminado] para mitigar seu risco.”

Limitações técnicas

A escolha do ativo financeiro para investir é outro ponto fundamental para o sucesso das operações em Bolsa. É possível fazer day trade com vários ativos, desde ações no mercado à vista até mini contratos de índices no mercado futuro.

“Comecei a trabalhar com ações no mercado à vista, e achei muito complicado. Foi nessa hora que percebi o quanto as notícias, o cenário político, a economia na China e nos Estados Unidos, por exemplo, influenciam nossos papéis”, diz Erika. “Eu estava perdendo muito, e estava ficando extremamente frustrada. Foi então que eu descobri o contrato de mini índice Bovespa, e comecei a acertar a mão”.

Apesar de sentir vontade de operar também outros ativos, Erika diz ser importante respeitar seus limites. “Morro de medo de trabalhar com contrato de dólar, não tenho agilidade para isso. Eu acho que a gente tem que saber que competência implica em você saber sua capacidade, até onde você pode ir.”

Erika Kalil, trader da Bolsa

Erika Kalil, trader da Bolsa: tem que ter sangue frio para aguentar o estresse (Fábio Teixeira/Site Exame)

Psicologia de mercado

Para a trader, existe um perfil muito específico para trabalhar com isso. “Eu brinco que eu tenho sangue de barata. Tenho muita frieza para fazer as coisas, eu não me desespero. Com o tempo você começa a ver que cada ação tem uma personalidade própria. O mercado, além de ser fruto da movimentação econômica e política, também é fruto da psicologia. É psicologia de massa. O mercado é a tradução dos ativos pelos olhos de quem está operando. O mercado tem uma vida própria, as ações têm uma personalidade própria”, diz.

Existem horários que são melhores e piores para operar. “Com o tempo, você começa a perceber que algumas ações costumam ter queda por volta das 15h. Durante o almoço, é um período ruim para fazer negócios. De tarde, as ações tendem a ser muito menos voláteis do que de manhã. Quando você opera intensamente no mercado, acaba descobrindo este tipo de coisa.”

Se por um lado ser trader te dá a liberdade de ser seu próprio chefe e trabalhar de casa, por outro a solidão pode ser seu principal inimigo. “É deprimente, você passa o dia inteiro sem falar com ninguém e, quando vê, está falando sozinha. Por isso, é legal procurar as salas online que as corretoras oferecem, onde tem sempre alguém falando, te orientando. Eu melhorei muito com isso.”

Mulheres são minoria

Sobre o fato de as mulheres serem a minoria entre os traders da Bolsa, Erika acredita que isso está relacionado ao perfil de cada um. “Eu fiz alguns cursos na Bovespa e havia algumas mulheres. Na sala de operação online da corretora, sempre tem umas duas ou três, mas realmente elas são a minoria”, diz.

“Quem tem esse perfil mais arrojado, frio, naturalmente vai se interessar pelo mercado financeiro. É um ambiente agressivo e estressante e que demanda frieza para correr risco. Não sei se é do perfil da maioria das mulheres correr risco”, afirma a trader. “Talvez divulgar mais a possibilidade de trabalhar com o home broker atrairia mais pessoas ao mercado, entre elas, mulheres.”

Vida saudável

Quem pensa na vida de um operador da Bolsa de Valores, acha logo que ela não pode ser saudável, mas pode, sim. Pelo menos essa é a percepção pessoal de Erika, que é divorciada e tem dois filhos (um de 19 e outro de 29 anos). “Faço esporte, cozinho para mim mesma, mantenho uma vida super saudável e ainda opero na Bolsa”, diz.

“Não tenho mais que encarar trânsito e comer fora de casa. Estou numa fase de vida um pouco diferente. Já tenho uma casa, um carro, já fiz o que tinha que fazer. Agora, dou importância a outras coisas. Por isso, estou na melhor fase da vida”, afirma Erika, que não abre quanto exatamente investe, mas diz que com 5 mil reais mensais operando day trade, com “disciplina e consistência” nos investimentos, uma pessoa consegue fazer entre dez e quinze mil reais de rendimento.

“É impossível parar de trabalhar. Quem trabalhou a vida inteira sabe que isso define a pessoa. Nem que eu tivesse condições financeiras de não trabalhar mais. Eu tenho uma boa condição a ponto de correr o risco de parar para operar no mercado e me dar o tempo necessário para aprender e decidir que vou continuar fazendo isso. É uma posição privilegiada a minha”, afirma.

Sobre seus inspiradores no mercado financeiro, Erika está lendo bastante a respeito da vida de Jesse Livermore, um dos maiores operadores da Bolsa americana no início do século XX.

“Tem livros que contam partes da vida dele e são interessantíssimos, porque você vê que, pelo menos no lado comportamental, nada mudou em um século, e que um grande operador como ele cometeu os mesmos erros que você”, diz. “Como eu disse, antes de operar na Bolsa você tem que saber quem você é e onde erra. Ninguém pode te dizer quem você é, mas pode te ensinar uma técnica e você tem que usá-la com as suas características pessoais.”

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