Miniaturas do Pinóquio: Para receber a indenização, segurados se automutilam (Stock.xchng)
Da Redação
Publicado em 21 de agosto de 2014 às 23h44.
São Paulo – Até onde você diria que vai a ganância de uma pessoa? Habituados às mentiras que seus clientes contam, profissionais do ramo de seguros responderiam que não há limites. Muito além de alterar o CEP de pernoite para pagar um valor menor no seguro do carro, algumas pessoas topam tudo para receber uma indenização, até tirar a própria vida.
“São centenas e até milhares de casos de pessoas que se mutilam para obter a indenização. Conforme Maquiavel escreveu em ‘O Príncipe’: ‘Os homens esquecem mais rapidamente a morte do pai do que a perda do patrimônio’”, diz Paulo Kurpan, superintendente de Planejamento e Estratégia da Central de Serviços e Proteção ao Seguro da Confederação Nacional das Empresas de Seguros (CNseg).
Em 2012, as fraudes comprovadas custaram às seguradoras o equivalente a 341 milhões de reais, segundo dados da CNSeg apresentados no seminário “Prevenção à Fraude contra o Seguro”, realizado na última sexta-feira (23), em São Paulo. Mas, como muitas das fraudes ocorrem sem nunca serem descobertas, o tamanho do rombo pode ser muito maior.
Estima-se que as fraudes cheguem a representar 20% do custo total das empresas. “Essa é apenas uma estimativa dos profissionais do ramo, é um número cabalístico, mas com isso é possível dizer que, se as fraudes não ocorressem, esses 20 pontos percentuais poderiam se reverter em redução de custos para o consumidor”, diz Kurpan.
Ainda que não seja possível quantificar o peso de todas essas mentiras, tanto para a indústria, quanto para o bolso do consumidor, em uma breve conversa com especialistas é possível perceber que o buraco é bem fundo. Além de mentiras batidas, como omitir um segundo condutor ao responder o questionário do seguro de automóvel, segurados criam histórias complexas, e muitas vezes trágicas, para receber uma indenização.
Em entrevista a EXAME.com, profissionais do ramo elencaram algumas das fraudes mais absurdas que eles já vivenciaram durante seus anos de profissão. Confira a seguir.
1) Morte acidental que na verdade foi natural
Leonardo Girão, gerente da Central de Serviços e Proteção ao Seguro da CNseg, afirma que os valores de indenização que os seguros de vida pagam por morte acidental chegam a ser o dobro da indenização paga em caso de morte natural.
Por isso, não são raros os casos em que as circunstâncias da morte são deturpadas. “Eu lembro de um caso em que o segurado teve um infarto fulminante em uma festa e, para que a morte parecesse acidental, levaram o corpo dele para o segundo andar do prédio e o jogaram lá de cima”, relata.
2) Carro supostamente roubado, mas vendido em outro país
Conforme Paulo Kurpan explica, há cerca de 10 anos era muito comum que segurados dirigissem até a Bolívia ou o Paraguai para vender seu carro e alegar que o veículo havia sido roubado.
Esse tipo de prática hoje é menos frequente, segundo ele, porque as fronteiras passaram a ser monitoradas por câmeras que gravam as placas dos veículos.
Ele lembra um desses casos, flagrado por câmeras, que foi extremamente embaraçoso: “Era um cliente que cobrava muito a indenização, então nós fizemos uma investigação e chegamos a um vídeo que mostrava o cliente cruzando a fronteira com o carro. Nós o chamamos para uma reunião junto à sua esposa, porque o seguro estava no nome dela, e deixamos o vídeo rodar enquanto conversávamos. De repente, ela apontou para a televisão e disse: ‘Querido, acharam o nosso carro’. Ela continuou assistindo e teve uma enorme surpresa quando viu que era seu marido dirigindo o carro. Ela não sabia que ele tinha mentido e nós não sabíamos que ela não sabia. Nós quase acabamos com o casamento deles”, conta.
As fraudes em seguros de automóveis são as mais recorrentes. Segundo dados da CNSeg, dos 341 milhões de reais gastos com fraudes comprovadas no ano passado, 173,4 milhões de reais (cerca de 50%) foram despendidos com fraudes no ramo de automóveis.
3) Segurado em estado terminal antecipa a morte para beneficiar a família com a indenização
“Nós já vimos muitos casos em que a pessoa doente, sabendo que está em estado terminal, acaba se sacrificando para que a família, que está passando por dificuldades financeiras, receba a indenização”, conta o economista Lauro Vieira de Faria, consultor da Escola Nacional de Seguros.
Segundo ele, essas medidas extremas ocorrem, por exemplo, quando a família está muito endividada e a fraude é vista como o último recurso para solucionar o problema.
4) Homicídios arquitetados por parentes
Também não são raros os casos de homicídios de segurados que são articulados por seus próprios parentes, segundo os entrevistados.
O gerente da Central de Serviços e Proteção ao Seguro da CNseg lembra de um caso em que a esposa planejou a morte do marido para receber sua indenização, já que ela era sua beneficiária no seguro. "É muito comum que gerentes de banco tenham seguros de vida. Houve um caso de uma mulher, que era esposa de um gerente e tinha um amante policial. Eles assassinaram o marido dela para ficar com o seguro”, conta.
Theresa Vollú, gerente de Negócios, Saúde e Pessoas da Central de Serviços e Proteção ao Seguro da CNseg, lembra também de um outro caso trágico ocorrido em uma clínica de idosos. “Os funcionários da clínica faziam seguros de vida para os idosos, cadastrando-se como seus beneficiários. Depois, eles diziam aos idosos que eles tinham que comer menos e faziam uma lavagem cerebral tão forte que os idosos paravam de comer e morriam de inanição”, diz.
5) Automutilação que vira acidente de trabalho
Por incrível que pareça, profissionais do mercado de seguros relatam que a automutilação é uma prática muito usada para fraudar as seguradoras.
Leonardo Girão lembra um dos casos mais emblemáticos de mutilação, ocorrido com uma quadrilha de Santa Catarina: “A quadrilha atuava junto a lavradores. Ela fazia um seguro de acidentes pessoais para eles e decepava seus dedos ou mãos para alegar que era um acidente de trabalho e receber a indenização”.
Em 2008, a quadrilha foi desarticulada em uma ação que ficou conhecida como “Operação Cinco Dedos”, depois que o Ministério Público Estadual (MPE) investigou o caso durante seis meses, a pedido das seguradoras.
Segundo reportagem do portal G1, o MPE estima que o golpe tenha chegado a movimentar 1,5 milhão de reais. A quadrilha pagava de 5% a 30% do valor da apólice para o lavrador, que valia entre 60 e 700 mil reais.
6) Capotamento intencional
Durante palestra no seminário de prevenção à fraue da CNSeg, o procurador de Justiça do Estado de São Paulo, Roberto Tardelli, citou um tipo de fraude ainda não comprovada, mas conhecida no meio.
“Existe uma curva na rodovia Régis Bittencourt [que liga Paraná e São Paulo] que tem sido usada para capotar carros. O segurado paga o chamado ‘capotador’ para passar por essa curva e capotar o carro para que ele acione a seguradora fingindo ter sofrido um acidente, e receba a indenização. A fraude é tão recorrente que esses homens só fazem isso da vida, eles são conhecidos como 'capotadores profissionais'”, conta Tardelli.
Apesar de não haver ainda nenhum caso comprovado, outros entrevistados também afirmaram que esse tipo de prática tem ocorrido com frequência. “O grande problema da fraude é não conseguir determinar a gravidade do problema”, comenta o procurador.
7) Incêndio provocado
Sérgio Roberto de Oliveira, diretor jurídico da Tokio Marine, cita uma fraude realizada por uma indústria que mostra de forma bem clara a dimensão do prejuízo que esse tipo de prática pode causar.
Em 1997, esta indústria - que ele não quis especificar -, sofreu um incêndio cuja indenização seria de 23 milhões de reais. O caso foi investigado durante 16 anos e a seguradora gastou 3 milhões de reais em despesa com peritos, engenheiros, advogados, etc. para provar o forjamento.
“Uma série de indícios mostravam que se tratava de uma fraude, como o fato de nenhuma pessoa estar na indústria naquele dia. Nós tivemos de pagar uma empresa de segurança por um ano para ninguém entrar no local e uma equipe de especialistas e engenheiros para retirar e analisar os escombros”, diz Oliveira.
Segundo ele, diversas evidências contribuíram para comprovar a fraude, mas uma das chaves para desvendar o caso foi descoberta por peritos do Instituto de Pesquisas Tecnológicas.
Eles concluíram que, para fundir o aço dos pilares, a temperatura no local chegou aos 1200 ºC, o que não seria possível se o incêndio fosse causado por combustíveis simples, como gasolina. “Eles encontraram nos escombros até artefatos bélicos e viram que quem preparou o incêndio não foi uma pessoa qualquer porque foi algo muito planejado”, diz Oliveira.
Ele acrescenta que, apesar dos gastos vultuosos com os processos de investigação dos grandes casos de fraude, o que mais penaliza a indústria são as pequenas fraudes, causadas por pessoas físicas.