Bolsa de Valores de Nova York (ANGELA WEISS/Getty Images)
O ano de 2022 provavelmente será lembrado como o "annus horribilis" (ano terrível, na tradução do latim) para os investidores em títulos da dívida pública.
Desde janeiro, a cesta de títulos globais elaborada pelo Bank of America Merrill Lynch (BOAC34) registrou uma queda de mais de 20% do valor. Um desempenho tão negativo não era registrado desde 1949.
Há quase oitenta anos, a reconstrução pós-Segunda Guerra Mundial estava a todo vapor, e o Plano Marshall injetava liquidez nas principais economias avançadas. O resultado foi que a inflação mordia a economia, assim como está ocorrendo hoje.
E a inflação é o inimigo número um dos títulos da dívida pública que, afinal, nada mais são do que dinheiro transferido ao longo do tempo. Quanto mais os preços dos bens sobem ao longo desse período, maior é a perda do valor dessa classe de investimento que, basicamente, é uma atualização monetária do capital investido.
Segundo o relatório do BofA, os investidores internacionais estariam vendendo títulos. Isso significa que não estão fazendo nada além de exigir juros mais altos, pois tentam se desfazer de títulos adquiridos há 2, 3 ou mais anos para comprar ativos mais rentáveis. Uma estratégia necessária para se defender da alta dos preços e da consequente desvalorização dos papéis. Mas que está jogando os preços para baixo.
"Não tem mistério sobre o que está acontecendo: preços dos títulos caindo e juros abrindo por causa da maior pressão inflacionária após a Segunda Guerra Mundial, com uma alta de 10 pontos em muito pouco tempo", explica à EXAME Invest Marcella Libardoni, sócia e gestora de juros da sede da SPX em Londres.
Na verdade, ao longo do ano, o mercado se iludiu várias vezes de que a luta contra a inflação estava vencida. Com isso, voltou a comprar títulos da dívida pública.
Os rendimentos - que se movem na direção oposta aos preços e sobem quando a pressão de venda aumenta - começaram a cair desde meados de junho, quando havia um certo otimismo sobre o "pico da inflação", que segundo alguns analistas e gestores já teria passado.
Por exemplo, o rendimento dos títulos do governo americano, os Treasuries, com vencimento em 10 anos passaram de 3,5% em meados de junho para 2,5% no início de agosto.
O mesmo ocorreu no caso dos Bunds alemães, que registraram uma redução de suas taxas de juros de 1,8% para 0,7%.
Até os títulos de países superendividados como a Itália diminuíram suas rentabilidades. Os BTp italianos que passaram de 4,3% para 2,8%, por exemplo.
Os novos dados macroeconômicos, todavia, foram uma ducha gelada nos mercados, pois mostraram que a inflação era muito mais resiliente e "pegajosa" do que o esperado.
"O mercado estava otimista demais. E ainda, em alguns aspectos, continua otimista demais, se pensarmos que a previsão para a inflação e 2023 na Europa é de 2,5% ao ano. Baixa demais", diz Libardoni.
A palavra "pegajosa" vem do índice especial desenvolvido pela sede do Federal Reserve (Fed) de Atlanta, o "sticky CPI index" (índice de inflação pegajoso, na tradução em inglês), que é calculado na base da tendência de preços menos volátil e mais estável ao longo do tempo.
A inflação "pegajosa" saltou para 6,1% em agosto na comparação anual e 7,7% no acumulado dos últimos 12 meses. Algo que não acontecia desde 1981, época da Segunda Crise Petrolífera.
"As pessoas estão pegando consciência que essa alta inflacionária vai ser combatida. Estamos precificando reações agressivas por parte dos Bancos Centrais, que estão aumentando juros de 75 em 75 pontos base. Algo inédito. A pergunta é: onde tudo isso vai parar?", salientou Libardoni.
No mês passado se tornou evidente como a inflação global, que partiu da alta das cotações das commodities energéticas e alimentares, começou a infectar muitos outros setores da economia de forma persistente.
Nos EUA, em particular, o que deixa os analistas preocupados são os aluguéis, que estão subindo de forma expressiva apesar de um mercado imobiliário que começa a dar sinais de contração. A alta dos aluguéis ocorre com um atraso expressivo em relação ao começo da inflação, três ou quatro trimestres depois, mas está sendo o valor que mais chama a atenção.
Nesse contexto, portanto, a batalha dos Bancos Centrais contra alta de dois dígitos dos preços da economia real certamente não pode ser considerada vencida.
Os investidores entenderam a mensagem e, desde agosto, abandonaram o "trade da recessão" para voltar no "trade da inflação", a tendência que penaliza em primeiro lugar os ativos que mais sofrem com a inflação: os títulos da dívida pública.
Com isso, os mercados estão testemunhando um aumento brutal nos rendimentos e uma queda nos preços dos papéis do tesouro.
"Só que esse movimento de queda nos preços dos títulos vai gerar problemas nos balanços de fundos de investimento e de bancos. Não sabemos ainda em qual proporção, mas com certeza passaremos por um período turbulento no mundo corporativo do mercado financeiro", salienta a sócia da SPX.
Outra prova de que o mercado de títulos da dívida pública está enfrentando uma forte turbulência e ainda não encontrou um caminho para a estabilidade é o índice de volatilidade Move, que é o equivalente para os títulos do que o Vix é para ações.
O Move saltou para 125 pontos, nível mais alto já registrado desde o começo da pandemia de Coronavírus, em fevereiro/março de 2020, quando o pânico global levou a uma enxurrada de vedas nos mercados.
Mas há também um outro lado da moeda: os investidores com uma visão de médio-longo prazo estão cientes de que certas taxas começam a ser atrativas, confiando no fato que a inflação estar destinada a recuar nos próximos meses.
Portanto, mesmo se existe o risco que os valores atingiam novas mínimas, muitos gestores estão iniciando nesta fase planos de acumulação de títulos de médio prazo.
Nesse contexto, o momento sombrio dos títulos da dívida pública global pode ser visto de duas maneiras. Do lado do trading, os títulos de curto prazo são verdadeiras “facas caindo” e podem machucar. Entretanto, do lado do "investing", os mesmos títulos começam a ter uma certa atratividade.
Se a história dos mercados financeiros ensina alguma coisa, é que nos anos seguintes a 1949 o mercado voltou a ver a luz no final do túnel inflacionário. Veremos se será o mesmo desta vez, sempre se a guerra na Ucrânia e a longa cauda da pandemia permitirem.